O Feito

A tarde estava quase terminando, o sol já se escondia por traz da mata de grandes arvores, e de dentro de uma varanda, alguém observava um homem brincando com seus dois filhos no belo gramado diante da casa. Era Luzia, uma bela e sensual morena, com cabelos na altura dos ombros muito negros e lisos que olhava para seu marido André enquanto as crianças corriam de um lado para outro numa brincadeira de pega - pega que já durava um bom tempo. O gramado muito grande era plano e possuía apenas uma grande árvore plantada no seu centro, e que as crianças usavam como pique. Ele começava bem em frente da casa e se estendia ate uns duzentos metros onde se encontrava com uma mata fechada enquanto os pastos cheios de gado completavam a paisagem dos outros lados. Luzia a formosa morena, observou seu marido que, um pouco cansado foi diminuindo o ritmo da brincadeira e procurando se sentar, enquanto seus filhos, Francisco e Joana, um casal de gêmeos com aproximadamente sete anos, ainda cheios de energia e muita disposição, continuavam naquele atropelo incessante. Os nomes das crianças haviam sido dados para homenagear os pais de André Sr. João e Dona Francisca e também homenageavam os santos de mesmo nome. Ele sentou-se no gramado um pouco ofegante e ficou a observar os filhos em sua continua correria ate que de repente, uma rajada de vento meio sem motivo, atravessou o gramado em grande velocidade num movimento circular que lembrava um redemoinho. André foi tomado por uma mistura de medo e preocupação que o levou imediatamente a um estado de alerta, e que o paralisou por alguns instantes. Sem que percebesse, seu olhar que antes estava em seus filhos, deu uma volta completa ao redor do gramado terminando exatamente com a visão de sua esposa dentro da varanda. Eles se olharam mutuamente e mesmo a distância, sem dizer uma só palavra os dois perceberam que havia algo de anormal. Com a chegada do tal vento que veio como um alerta ele viu passar diante de seus olhos, pequenas fagulhas de imagens do que havia lhe acontecido e do que ele teve que fazer no passado para que pudesse estar ali naquele momento vendo seus filhos crescerem saudáveis. Ele mal começou a relembrar os fatos e, sem muito pensar, chamou a atenção das crianças, pedido para que elas juntassem seus brinquedos e o acompanhasse para a segurança de sua casa. Elas o obedeceram e, sem muita demora apanharam suas coisas e os três se puseram, a passos largos, a caminho da varanda onde estava Luzia. Poucos minutos depois, eles que não estavam a mais de cem metros da casa, entraram na varanda da frente, alcançando assim a indispensável proteção que eles acreditavam ter garantido, a sobrevivência da família ate aquele momento. A casa simples e rústica, porem confortável, perecia uma casa comum, e não era qualquer visitante que notaria que ela era construída num formato diferente, alem de estranhamente trazer em cada canto do telhado um cruzeiro de madeira. Ao entrar em casa, ele e as crianças foram recebidos por Luzia que ao olhar em seus olhos identificou claros sinais de preocupação estampados em sua face. Procurando manter a calma e com um tom de voz absolutamente sereno, Luzia ordenou às crianças que fossem se lavar para em seguida jantarem. As crianças obedeceram prontamente, o que permitiu que ela permanecesse com o marido na varanda por alguns minutos. Os dois se abraçaram num gesto de aconchego quase automático e, lado a lado por alguns instantes contemplaram calados o por do sol até que Luzia que buscava aconchegar-se mais em seu peito sentiu certo descompasso nas batidas do coração dele, o que a levou a indagar sobre o motivo da preocupação. Aconteceu novamente? Ele está por perto não é verdade? Perguntou ela enquanto ele permaneceu calado por mais alguns segundos na tentativa de fazê-la esquecer do assunto. Porem ao olhar em seu rosto lembrou-se que ao seu lado estava não uma mulher qualquer, mas a mulher que havia enfrentado ao seu lado grandes perigos e que, portanto o amava e conhecia profundamente. Consciente de que jamais conseguiria esconder dela, qualquer de seus sentimentos, ele virou-se e a beijou antes de explicar que mais uma vez, o inicio da noite lhe trazia de volta a lembrança dos piores momentos de sua vida. Apesar de acreditar que ali eles estavam seguros, àquela hora sempre fazia com que ele sentisse aquele famoso arrepio nas costas, característicos de que sentem medo. Ao ouvir tal afirmação, ela que conhecia tão bem quanto ele, a causa daquele medo fez imediatamente o sinal da cruz, mas procurou acalmá-lo dizendo que tudo aquilo agora já era passado. André queria muito acreditar nesta afirmação porem, mesmo não querendo reviver, um milésimo que fosse de tudo que viveu, estava sendo cobrado todos os dias e sabia muito bem de suas limitações. Ele disfarçou seu medo e aproveitou-se da maneira como estavam abraçados para novamente beijar sua esposa, desta vez com a atenção toda voltada para ela. Este beijo agiu como um divisor entre a preocupação de antes e o desejo que surgia e, tornou-se por sua doçura, convite formal para um segundo, um terceiro... Quando já estavam em meio ao quarto ou quinto beijo, já não se lembravam mais do assunto que pouco tempo antes, atormentava suas mentes já que, a ocupação atual era muito mais interessante e certamente iria levá-los a momentos ardentes, não fosse é claro, o fato de eles serem interrompidos pela correria das crianças que, após lavarem as mãos e os rostos, estavam famintas e prontas para devorarem o jantar. De dentro do salão que era ligado à cozinha, ela ouviu seu filho chamando para avisar que já estavam sentados à mesa. Estando ainda na varanda e mesmo sem querer afastar-se do marido, ela fez um esforço e saiu puxando-o pelas duas mãos, enquanto caminhava de costas para a porta e ainda de frente para André a fim de conduzi-lo até a sala. Antes que entrassem pela porta, num gesto de quem não quer deixar uma situação agradável, ele a puxou de volta para seus braços, deu-lhe mais um rápido beijo e disse em um murmúrio maroto que, naquele momento a fome que sentia não era exatamente do tipo que se pode matar com o jantar. Ela entendeu a intenção nas palavras do marido e, para não criar uma situação embaraçosa diante dos filhos, antes de chegarem ao salão ela afastou um pouco os braços dele, virou-se de costas rosando rápida e sensualmente as nádegas em sua virilha. Depois disso, ela olhou em seu rosto, e percebendo que o marido ficara ao mesmo tempo eufórico e embaraçado, deu um leve sorriso enquanto abaixava voluntariamente a cabeça num gesto de quem diz, “é isso que quero”, para só então, caminhar maliciosamente até a mesa. Logo após ter sido servido o jantar, e absolutamente livres de qualquer preocupação, a família se reuniu na sala para conversarem um pouco enquanto esperavam a hora de irem para suas camas. Levados pela euforia criada pêlos acontecimentos de antes do jantar, ir para a cama era tudo o que o casal queria e, tudo estava sendo providenciado neste sentido. Por mais de uma vez, a mão de André, que estava abraçando Luzia com o braço esquerdo, foi levada ate sua coxa, mas devido à presença das crianças parou por ai. Tudo levava a crer que aquela seria uma noite maravilhosa. Luzia uma morena de estatura média, cabelos longos e negros e olhos verdes, estava especialmente sensual e provocante, dentro de um vestido feito de algodão e corte simples, mas que deixava suas curvas exuberantes realçadas. Quanto a André, não era um homem muito alto, media aproximadamente um metro e setenta centímetros, era branco e tinha olhos verdes. Ele não era muito forte mais especialmente valente. Apaixonados um pelo outro, certamente ambos esperavam muito daquela noite e isso deixou o casal fora de sua realidade tamanha era a vontade que sentiam em colocar em prática o que a imaginação projetava. Tomados pelo desejo porem, eles haviam esquecido quem eram, porque viviam sempre com medo, e principalmente, qual foi a herança que receberam por terem desafiado forças muito superiores. A noite continuou e esquecidos desses detalhes eles seguiram em direção àquilo que seus desejos pediam. Após terem levado as crianças para suas respectivas camas, e terem dispensado os empregados, o casal se dirigiu ao seu quarto. Com o desejo a flor da pele, Luzia foi tomar um banho enquanto André verificava se a casa estava trancada. \ao entrar no quarto André sentou-se na beira da cama, e sem nenhum motivo aparente foi invadido por uma angustia repentina que não sabia de onde vinha e que sinceramente não queria descobrir. Por um momento sua atenção quase foi desviada daquilo que era seu objetivo e preocupado ele deitou-se de costas olhando para o teto enquanto se dividia entre alimentar seus desejos e tentar descobrir o que o preocupava. Isto o fez demorar a retornar à realidade, o que só aconteceu, quando ele ouviu pela porta entreaberta do banheiro, o barulho da água que batia no chão. A preocupação que antes tomava parte de seus pensamentos começou a dar lugar à criatividade de sua imaginação, deixando sua cabeça ocupada com as imagens do que ele imaginava de Luzia nua dentro do banheiro. Mesmo meio confuso com tudo que estava sentindo, ele imaginou a água que caia sobre aquele corpo moreno cheio de curvas extremamente generosas. Viu as mãos dela que deslizava sobre os próprios seios enquanto esfregava o sabão, as nádegas formosas, a pele morena que brilhava com a água, as coxas bonitas e bem feitas... Em pouco tempo a imaginação fértil possibilitou a ele se ver ensaboando suas costas, nádegas, seios, ao mesmo tempo em que podia encostá-la contra a parede para sentir seu corpo encaixado no dela... Acreditando ser perda de tempo continuar imaginando, resolveu entrar em ação e num repente ergueu-se na cama a fim ir participar daquele banho e das possibilidades que ele permitia. André levantou-se, tirou suas roupas e pegou uma toalha antes de sair em direção ao banheiro. Ao dar os primeiros passos, mas ainda estando ao lado da cama, a angustia que sentia minutos antes voltou repentinamente e a cada novo passo, o que era euforia transformou-se em preocupação, o sonho voltou à realidade fria e cruel com a qual o casal vinha convivendo durante anos desde que se encontraram. Ele mal podia acreditar no que havia acabado de lembrar. Mesmo ciente do que iria acontecer, continuou, e viveu a cada passo, o crescimento de seu desespero. Eles já haviam passado por aquilo antes, e sabendo do que ia encontrar dentro do banheiro, por instantes pensou em voltar mais a esperança era maior e ele continuou. Ele sabia que o que estava por traz daquela porta, era a confirmação do sofrimento de anos e anos, mas alimentou mais uma vez a esperança, e deu mais um passo para alcançar a porta já entreaberta. Durante aquele ultimo passo ele abaixou a cabeça numa atitude de quem aceita previamente a derrota, permanecendo cabisbaixo por algum tempo como se quisesse fugir daquele momento. Parado ali, ele olhou para traz na tentativa de voltar, observou na penumbra suas roupas jogadas sobre a cama e, com uma das mãos pegou o puxador da porta e vagarosamente terminou de abri-la. À medida que a porta foi se abrindo ele foi erguendo a cabeça mantendo seus olhos baixos ate que sem ter como fugir da realidade, olhou e confirmou sua horrível suspeita. Debaixo da água onde deveria estar sua mulher, havia tão somente água caindo no vazio, e nem de longe lembrava um corpo de mulher com o qual a pouco ele sonhava. O corpo dela, normal para todos, inclusive para ele em outros momentos, simplesmente se tornava inexistente. Isto ocorria todas as vezes que seus desejos insinuavam a possibilidade de fazerem amor. Desesperado com aquela situação, ele sentou-se no chão do quarto olhando para aquele chuveiro que parecia ter sido esquecido aberto e, como criança começou a chorar. De dentro do banheiro Luzia que por sua vez podia vê-lo, mas não podia tocá-lo durante aquele processo, e que havia ouvido o ruído da porta e o choro, reconheceu pêlos lamentos, se tratar de André. Ela, assim como ele, voltou à realidade e absolutamente triste, escorregou o corpo pela parede do banheiro até ficar de cócoras e, olhando fixa para o quarto que mesmo em penumbra dava a ela a triste visão de seu marido chorando sentado ali. Ela também se sentou no chão e também chorou. Durante algum tempo o silêncio tomou conta do ambiente e o que se ouviu, era pura e tão somente, o barulho da água misturado aos soluços de ambos. Passaram-se dez ou quinze minutos, e eles ainda estavam sentados no chão tentando aceitar, mais uma vez, a dura e cruel verdade de suas vidas. A realidade de terem desafiado forças muito poderosas, o que fez com que recaísse sobre eles uma maldição que a tornava suas matérias inexistente e intocável para o outro, todas as vezes que sentiam desejo sexual. A chave que dava inicio ao processo de invisibilidade não era totalmente conhecida do casal, e o momento exato ninguém sabia por isso houve vezes em que eles chegaram até as preliminares, e outras que bastava os pensamentos deles para que acontecesse o sumiço. Eles não entendiam porem, o porquê de terem tido dois filhos, e esse era o enigma que há anos tentavam resolver enquanto continuavam sofrendo. Convencida de sua dura realidade, ela levantou-se e caminhou para a porta onde parou e ficou observando o marido, que ainda se mantinha sentado no chão. Naquela altura o desejo de ambos já tinha ido embora e ele já começavam a ver um ao outro. Andre se entristeceu mais ainda ao ver sua esposa que saía do banheiro com seus cabelos molhados, abatida e cabisbaixa. Depois de alguns segundos ele caminhou lentamente em direção do banheiro para tomar seu banho enquanto Luzia foi para a cama se sentar. Ele tomou o seu banho e voltou em absoluto silêncio, sentou-se na beira da cama por alguns instantes e numa atitude de quem entrega os pontos deitou-se bruscamente. Por um bom tempo ele permaneceu naquela posição e mesmo não estando tranqüilo para pensar, a cena que havia imaginado sobre o banho de Luzia, foi a imagem que ficou em sua cabeça antes de ser vencido pelo cansaço e adormecer.
O novo dia começou bonito, e como sempre podiam ouvir os pássaros que faziam sua tradicional algazarra nas arvores do pomar muito bem formado e cuidado. O sol parecia querer anunciar um novo e maravilhoso tempo e André sentia a estranha sensação de liberdade que às vezes sentimos depois de passar por algum grande problema. Depois de se levantar ele passou pelo banheiro a fim de fazer suas necessidades para só depois ir até a cozinha pegar o seu já tradicional caneco esmaltado, com uma mistura de açúcar e conhaque sobre a qual ele tirava o leite diretamente do peito da Mocinha, sua vaca preferida, para servir de desjejum. Tanto ele como os outros membros da família estavam mantendo a rotina mais, ao começar servir o caneco, André percebeu que o que de inicio parecia normal, de repente já não era tanto. A sensação que teve era de que tudo ao seu redor não estava realmente ali e, intrigado com o fato, ele observou atentamente. Sua surpresa foi imensa, ao ver que ao mesmo tempo em que podia ver e tocar nas coisas, elas sem explicação desaparecia quando ele já não precisava delas. Assim foi com a lata de açúcar que ele pegou, serviu e quando colocou de volta na prateleira, ela já não estava mais ali, coisa que também aconteceu com a garrafa de conhaque. Assustado ele deu um salto para traz encostando-se na parede mais próxima para só então sentir a falta de sua esposa e das crianças. Ele esteve sozinho desde o momento em que chegou e, por algum tempo André ficou parado com os olhos arregalados procurando entender o que estava acontecendo. A ansiedade cresceu rápido e muitos pensamentos passaram por sua cabeça até que consciente que ali havia algo muito errado, ele soltou um grito e desesperado saiu à procura de todos. Ele entrou nos quartos, olhou na sala, e ao tentar sair correndo para ir ao pomar, e ainda estando no terreiro da casa, foi interrompido por uma já conhecida rajada de vento que veio com grande velocidade deixando-o sem pode enxergar tamanha era a poeira levantada com sua força. Sem que pudesse fazer algo contra, André foi jogado com grande violência de volta para dentro da varanda da casa. Meio atordoado ao cair ele percebeu que o vento seguia, dando a volta em direção à frente da casa, e sem muito pensar, ele tomou o mesmo rumo tentando entender o que estava acontecendo. Cada vez mais desesperado, ele correu feito um louco por dentro da casa, mas ao tentar sair pela porta da sala para alcançar novamente a varanda da frente, foi impedido pelo vento que mais uma vez o jogou de volta. Desta vez porem enquanto era arremessado, ele fez um esforço e, por poucos segundos conseguiu abrir os olhos o que possibilitou que, sem muita certeza, ele visse no gramado da fazenda, diante da grande árvore, três vultos. Ao cair no chão, já tendo o vento diminuído ele constatou que esses vultos estranhamente pareciam ter uns três ou quatro metros de altura. O barulho provocado pelo vento foi gradativamente sendo substituído por uma voz grave e distorcida vinda de uma daquelas criaturas que sussurrava a frase: Você não resolveu o enigma... Você não tem direito ainda... Resolva o enigma ... Ele ficou caído por um momento com um dos braços protegendo o rosto, e enquanto buscava força para se levantar vagarosamente, lembrou-se do significado daquela frase mal sussurrada. Tratava-se da maldição que ele e sua esposa haviam recebido e que terminaria quando ele resolvesse um determinado enigma que permitiria que ele e sua esposa pudessem se amar sem medo de que seus desejos terminassem na invisibilidade mutua. Muito tenso e um pouco tremulo, ele se levantou e caminhou lentamente na tentativa de melhor alcançar com a visão a grande árvore no centro do gramado e certificar a veracidade daquela imagem. Ao chegar à cerca de balaustres de madeira que rodeava a varanda da casa, teve uma imensa e horripilante surpresa. Diante da grande árvore e tendo a mesma altura dela, estava o que ele imaginava ser sua mulher, e seus dois filhos trazendo nas mãos imensas espadas que foram erguidas numa atitude de ameaça contra ele. Ele recuou instintivamente em direção à porta, mas antes que entrasse teve sua atenção reclamada por uma das três criaturas, e que parecia ser sua filha, que depois de soltar uma imensa gargalhada usou uma voz muito aguda para perguntar: Acreditou que estava livre de mim André? Antes que ele respondesse, elas deram poucos e imensos passos para cima dele, e antes que ele pudesse esboçar qualquer reação, elas já não existiam, e a pouco mais de dois metros a sua frente encostadas no lado de fora da cerca da varanda, estavam Luzia e seus dois filhos que o esperavam para ir ao curral tomar leite. Ele olhou paralisado, mas com alivio para elas, e ao fixar sua filha, viu em suas mãos a espada que a pouco era empunhada pela criatura. Ele deu um passo para traz, mas sua filha percebendo seu afastamento ergueu com maestria a espada aplicando um forte golpe em sua direção. De forma automática, ele deu um salto para traz na tentativa de escapar, porem foi traído pela diferença de altura dos pisos da varanda e da sala e num tropeço caiu de costas no chão. A menina aproximou-se olhando fixamente para seus olhos e ergueu sua espada numa clara intenção de acertá-lo enquanto ele observava tudo em câmara lenta. A lentidão daquele acontecimento permitiu que ele pudesse ver o momento em que a espada chegou acima da cabeça dela. A menina mantendo-se impassível preparou e desferiu um golpe absolutamente certeiro e tão violento, que enquanto a espada descia, ele pode ouvir o vento sendo cortado por ela. Na ânsia de escapar da morte certa, André tentou rolar no chão para o lado, mas a dor que sentiu em função de uma pancada que recebeu em uma das vezes que foi jogado pelo vento o impediu. Envolvido pelo crescente desespero, e acreditando não ter escapatória, ele soltou um grito tamanho, a ponto de acordar não só a ele mesmo, mas também sua esposa e seus filhos que na verdade dormiam. Era mais um pesadelo daqueles que eles vinham tendo quase todas as noites e que era mais forte nas noites que o casal tentava se amar. Assustados e muito suados, eles se sentaram na cama e por alguns instantes se olharam como se estivessem tentando ter certeza que agora estavam mesmo acordados. Depois de passado um tempo, os dois igualmente assustados, correram ate o quarto das crianças para se certificarem de que estava tudo bem com elas. Feito isso, aliviados, deram um longo e aconchegante abraço buscando encontrar calma para continuarem aquela noite que com certeza não era normal. Ao acordarem naquela manhã que trazia consigo um belo e ensolarado dia, todos os membros da família se mostravam um pouco cautelosos ao chegarem à cozinha para dar seguimento as suas rotinas. Coincidentemente todos hesitaram diante da necessidade de realizar tarefas que em outros dias eram absolutamente normais. Em meio à hesitação todos se olharam como se estivessem verificando se estava tudo bem e, só depois de terem esta constatação, cada qual decidiu por sua conta que poderia prosseguir. André pegou seu caneco para colocar a mistura de açúcar e conhaque um pouco cauteloso por se lembrar da cena acontecida durante o pesadelo, e depois saiu em direção ao curral que ficava no lado esquerdo da casa confrontando com o grande gramado. Ao seu lado estava sua filha, fiel companheira das visitas ao curral todas as manhãs. Eles caminhavam ainda dentro da varanda da casa enquanto ele tentava desconsiderar a sua curiosidade em dar uma boa olhada em direção a grande árvore do gramado, para ter certeza da não existência das imagens da noite anterior. Por alguns momentos ele desviou sua atenção chegando a diminuir seu ritmo de caminhada, mas foi chamado novamente à realidade por sua filha que percebendo sua atitude o chamou e disse pra que ele não se preocupasse, pois, não havia nada de errado com a grande árvore. Ele ouviu o que sua filha dizia e fez um aceno de cabeça, num gesto de concordância com aquela afirmação. A frase dita por Joana o deixou intrigado, e antes que ele perguntasse, ela explicou que tinha tido um sonho onde pessoas grandes estavam na arvore olhando para ele, mas que era apenas um sonho e não havia ninguém lá. Os dois seguiram brincando até a chegada ao curral e como às vezes ele fazia, entrou dentro do curral para tirar o leite diretamente do peito da vaca para os canecos enquanto sua filha já havia subido na cerca para ficar repetindo os nomes das vacas num solitário jogo de memória. Ao entrar no curral ele ouviu o barulho do leite batendo no balde, mas naquele dia algo lhe chamou a atenção, pois seu peão o Sr. João Cavaco, tirava o leite usando apenas uma das mãos, e naquela manhã o barulho do leite no balde, mostrava que quem estava ali usava as duas mãos. Sem entender o que estava acontecendo sua reação foi imediata e olhando para o canto de onde vinha o barulho, e onde ele acreditava estar o seu João Cavaco, brincou afirmando que o peão estava se tornando um ótimo tirador de leite. Mal ele acabou de falar aquela frase, levantou-se de traz da vaca uma figura bem diferente do seu peão. Tratava-se de um homem alto, moreno, usando um chapéu de palha com as abas retas o que imediatamente fez com que André se assustasse.
O homem não foi reconhecido, pois ao se levantar ficou protegido pela luz do sol que ofuscou a visão de André. Antes que este pudesse fazer alguma pergunta, do outro canto do curral veio a voz do João Cavaco que naquele momento estava agachado por traz de outra vaca esperando o bezerro mamar e provocar o pojo para então amarra-lo à mão da vaca e tirar o leite. Ainda abaixado João Cavaco respondeu a brincadeira dizendo: Quem dera patrão! Eu inda num uso as duas mão! Esse moço ai é o Juca Lipurdino, o carpinteiro que vai montar o novo retiro pro senhor! André sentiu um alivio ao ouvir aquela informação, mas não conseguiu se livrar com rapidez da expressão preocupada que só depois de alguns segundos foi refeita Caminhando em direção ao homem deu-lhe as boas vindas enquanto aguardava a Mocinha, vaca de sua preferência, ser amarrada e ele poder encher os canecos com o gostoso leite tirado na hora. Chegando ao local onde Juca tirava o leite, os dois se cumprimentaram e conversaram ate que pudesse encher os canecos e ir em direção a cerca do curral para levar um pra sua filha. A garota pegou com esperteza seu caneco que estava derramando a espessa espuma pelas bordas e sem nenhuma cerimônia o levou a boca para tomar um grande e delicioso gole. Como sempre acontecia, após este primeiro gole, os dois se olhavam e, como duas crianças caíam na gargalhada por constatarem que aquela atitude os havia deixado com imensos bigodes brancos criados pela espuma do leite. Depois de darem boas risadas, os dois se gabavam dizendo ter o bigode maior do que o do outro para só depois passarem a língua nos próprios lábios para destruir o saboroso bigode. Certamente eles continuariam com aquela brincadeira, mas foram interrompidos pêlos passos do Juca que mais uma vez rasgava ruidosamente a lama do curral para trazer o balde com o leite que seria derramado em uma lata coberta por um pano branco amarrado na boca para coar o leite. Ela era deixada fora do curral afim de não ser lambuzada pela forte lama formada por terra misturada a estrume das vacas. O Juca se aproximou dos dois e com um breve, mas marcante sorriso perguntou se eles gostariam de renovar seus imensos bigodes. André respondeu que não e antes que pudesse consultar sua filha ela própria respondeu que queria outra caneca, mas que tinha de ser da Mocinha. Juca então pegou o copo da mão da menina e foi ate a vaca para tirar mais leite, voltando em seguida até a cerca onde ela continuava subida aguardando sua chegada. Ele retornou sem o par de cordas, sinal que não havia soltado a Mocinha que agora sim, poderia ter seu leite todo aproveitado. André que agora já estava do lado de fora da cerca, o observou atentamente enquanto ele entregava o caneco para a garota que logo em seguida foi convidada para descer da cerca e ir para casa. Antes de sair em direção a casa, André olhou para o Juca com um ar de dúvida e pediu a ele que fosse até a casa mais tarde para que os dois pudessem conversar sobre o serviço que ele iria fazer. Pai e filha saíram e após concordar com o patrão, Juca voltou a dar ajuda ao vaqueiro para terminarem logo aquela primeira tarefa do dia. Depois de terminarem de tirar o leite os dois homens pegaram os baldes e a lata cheia que foi deixada na cozinha da casa. Depois foram até a bica d'água para se lavarem e deixar os baldes para serem lavados mais tarde por Dona Gerônima esposa do João Cavaco. Enquanto eles jogavam água nos braços e nas botas de borracha que usavam dentro do curral, os dois ficaram conversando um pouco perto do rego d'água aguardando que Dona Gerônima terminasse de preparar o quebra torto para que todos pudessem comer e dar inicio as suas atividades diárias. João Cavaco estava contando ao Juca o quanto era bom trabalhar com André, pois, tratava-se de um patrão tão exigente quanto justo. Enquanto ele falava, Juca ouvia atentamente, mas também observava a seu redor e, tão logo seu João, que não tinha presa para falar concluiu o que estava dizendo, Juca que era muito observador e que tinha notado o belo pomar ao seu redor disse: É... Ele é exigente... É justo... caprichoso e também pelo que vejo muito religioso. Ele disse aquilo apontando para os cruzeiros de madeira que ficava em cada canto no telhado da casa. O peão ficou meio embaraçado e, sem saber o que dizer se manteve calado permitindo que Juca concluísse perguntando. São oito cruzeiros não são? Antes que seu João respondesse, a Dona Gerônima saiu na porta da cozinha e gritou que o quebra torto estava pronto. Nas fazendas da região naquela época o café da manhã ou o chamado quebra torto era composto por diversos tipos de alimentos tais como arroz, feijão, pão, carne, ovo, bolos, leite etc. Eles subiram pra cozinha e depois de forrarem bem seus estômagos ninguém perdeu tempo. Todos saiam para o trabalho pesado que era encarado com muita seriedade e Juca ficou no gramado em frente a casa aguardando ser chamado por André para que pudessem conversar sobre o trabalho. Enquanto aguardava, Juca que havia ficado intrigado com a quantidade de cruzeiros ao redor da casa, começou a observar a posição de cada um deles tentando descobrir o que a forma como eles eram dispostos significava, e antes que ele chegasse a uma conclusão, André saiu na varanda da casa e chamou João Cavaco que estava no galpão um pouco longe da casa. Assim que este chegou, pediu para que ele mandasse seu filho, Tonho Cavaco, pegar e arriar os cavalos para que eles pudessem ir até o local onde seria construído o novo retiro. João Cavaco obedeceu e chamou seu filho, um garoto de onze anos que gostava de inventar estórias mandando-o ir pegar os cavalos que ficavam fechados no piquete, enquanto André levou Juca para dentro para que pudessem trocar algumas idéias sobre o trabalho que seria realizado. Eles conversaram bastante, falaram de alturas, comprimento, bitola, largura em fim de tudo que era necessário para que o retiro ficasse o mais útil possível segundo a visão do patrão aliada a experiência do carpinteiro. Patrão e empreiteiro conversaram por quase uma hora e durante este tempo por várias vezes Juca percebeu que André parecia se desligar da conversa e se preocupar com outros assuntos, mas, manteve-se em seu lugar e achou que seria muito audacioso de sua parte perguntar ao patrão o que estava acontecendo. Apesar de se manter em seu devido lugar, para Juca ficou claro que ali havia sim alguma coisa acontecendo e, por mais que ele não tivesse a menor idéia do que era, muitas coisas passou por sua cabeça e, desconfiado começou a se perguntar se aquela situação tinha a ver com sua presença. Terminada aquela conversa os dois saíram em direção ao galpão onde o João Cavaco aguardava com os cavalos já arreados e prontos para partir em direção ao local onde seria construído o novo retiro e que ficava a oito quilômetros da sede da fazenda. Ao chegarem ao galpão Juca ficou admirado ao ver a beleza dos animais que estavam à espera deles. Eram três belos cavalos! Fortes, gordos e muito bem arreados! Depois de admirar os animais por alguns momentos, numa atitude absolutamente natural, voltou-se para André e teceu alguns elogios. Puxa vida, que bela tropa de montaria o Sr tem! . Eles devem ser bons de sela e, gordos como estão, devem ser muito bom pra andar não é? André que estava verificando sua arreata deu um leve sorriso e falou meio em tom de brincadeira. É... Aqui cavalo gordo é sinal de velocidade e resistência mas... Tem lugar que não. Juca não entendeu o que ele queria dizer e, conhecedor como era sobre cavalos não pode deixar de perguntar ao patrão o que ele queria dizer. André depois de pensar por alguns segundos respondeu que não queria dizer nada, e isso, mais uma vez fez Juca perceber que algo estranho estava acontecendo ali. Intrigado por não entender a situação, montou em seu cavalo e ficou observando o patrão que também montou em seu animal. Os dois montaram e ficaram prontos para sair, mas ficaram aguardando o seu João Cavaco que permanecia no chão numa atitude um pouco diferente que causava ainda mais estranheza. A impressão que se tinha era que ele estava passando mal, e depois de um tempo observando, Juca já ia perguntar o que estava acontecendo quando André o interrompeu. Então Seu Juca tá pronto para enfrentar o batidão? Eu sempre estou pronto para o serviço patrão! Esse serviço não é pra qualquer um, disse André. É verdade. É serviço duro, mas, eu já estou acostumado! Então está bem, André falou, antes de virar para Cavaco e perguntar se estava tudo bem. Juca olhou para João Cavaco e percebeu que ele parecia estar saindo de uma espécie de transe, porem não demonstrava nenhum sinal de que havia passado por aquilo. Sem perder mais tempo, Cavaco virou-se para seu patrão e falou com voz bastante firme. Podi fica tranqüilo patrão, no nosso caminho só os cavalos é que tem casco! Depois de dizer isto, João Cavaco montou em seu animal com grande agilidade e juntamente com o patrão puxou fila cutucando as esporas no subaco do cavalo que respondeu imediatamente dando uma boa arrancada. Depois de quase uma hora de caminhada por uma estada carreira que levaria ao objetivo dos três homens, alguns assuntos já tinham surgido nas conversas entre André e Juca que caminhavam lado a lado enquanto João Cavaco caminhava um pouco atrás. A estrada era carreira e, portanto muito estreito o que não possibilitava que os três andassem emparelhados. A essas alturas os dois se sentiam mais a vontade um com o outro e já estavam mais descontraídos, porem cansados de tanta conversa, vez por outra surgia entre eles uns momentos de silêncio onde ouvia se apenas o barulho dos cascos dos cavalos batendo no chão duro ou em alguma possa de lama deixada pelas chuvas dos últimos dias. Foi num desses momentos de silêncio, enquanto eles prestavam atenção ao ritmo das patas dos cavalos dentro da água do córrego que estavam atravessando, que os três homens começaram a ouvir algo que no primeiro momento não se sabia bem o que era e nem de onde vinha. Depois de alguns instantes eles perceberam que se tratava do barulho de um vento forte que vinha quebrando a mata naquela direção e que Juca teve a impressão de ser uma chuva se aproximando. Para André e seu peão porem, aquele barulho nem sempre significava chuva, o que fez com que imediatamente João Cavaco fizesse um movimento com seu cavalo tentando circular os dois homens a sua frente enquanto dizia uma espécie de oração. Ele circulou uma vez, e isto passaria despercebido pelo Juca, não fosse o fato de que ele continuou naquele movimento circulatório e ao tentar fazer o segundo circulo girando no sentido horário, um relâmpago cortou o céu de cima a baixo assustando o cavalo de João Cavaco e fazendo com que ele virasse na direção contrária. Neste momento Cavaco gritou para o patrão pular do cavalo na água e também fez o mesmo. Juca continuou em cima de seu cavalo observando toda aquela movimentação e tentando manter seu chapéu na cabeça enquanto João Cavaco puxou André pelo braço fazendo com que ele saísse da água para a terra firme. O vento, que a pouco quebrava a mata, agora fazia com que ficar sobre o cavalo não fosse uma tarefa tão simples como antes. Ele persistiu por alguns minutos mais logo começou a enfraquecer até para de vez. Logo que parou, João Cavaco e André se olharam num gesto de alivio por terem escapado daquela situação, e também pelo fato de Juca ter se mantido sobre o cavalo e desconhecer o real significado daquele momento.
Ele não sabia mais aquele vento forte vindo quase que do nada e justamente quando eles passavam por sobre a água, era justificado pelo fato de que estando sobre a água, todo tipo de perseguição de forças malignas se torna mais poderosa. O ser humano perseguido está menos protegido, quando esta sobre a água e quando passa debaixo de arame, momentos em que está com menos contato com a terra que é a ligação natural com as divindades. O mesmo não acontece quando esta sobre o cavalo, porque o animal nunca está sem duas das quatro patas tocando a terra. Novamente os fatos causaram estranheza ao Juca que sem saber o que estava acontecendo, perguntou aos dois homens o porquê de tamanho susto com um simples vento e um relâmpago, comuns para aqueles dias de boas chuvas. André ia responder, mas ficou um pouco embaraçado, o que fez com que João Cavaco interferisse dizendo que havia muito mais coisas neste mundo do que aquilo que podemos ver ou ouvir. Juca concordou que sim por saber que existem muitos perigos sobre a face da terra e por compreender os riscos que se corre quando se trata de fenômenos da natureza. Mesmo assim continuou achando que a reação dos dois homens foi um tanto exagerada, porem calou-se e aguardou que os dois montassem em seus cavalos para poderem prosseguir com a viagem. Naquele dia logo em que foram pro local do novo retiro, empreiteiro e patrão conversaram bastante sobre o trabalho e no fim do dia ao retornarem para a casa de André a combinação de valores, prazos e condições gerais do trabalho estava feita. Juca construiria todos os elementos que compõe um retiro de fazenda, ou seja, curral, salgadeira, tronco, barracão, rego d'água, bica d água, monjolo, paiol e principalmente a casa para o retireiro. Tendo acertado todos os detalhes técnicos e financeiros relacionados ao trabalho, Juca decidiu que iria viajar no outro dia cedo até Alto Araguaia para buscar suas ferramentas e contratar apenas um ou dois companheiros para ajudá-lo no trabalho inicial, já que ele só precisaria de mais pessoas depois de certo estágio do trabalho. Por saber o quanto demoraria pra cumprir aquela tarefa, ele queria retornar o mais rápido possível para aproveitar bem o período da seca que já estava para começar. Assim ele procedeu e poucos dias depois estava de volta à fazenda e o trabalho desenrolava com grande facilidade causando satisfação a André que a essas alturas se sentia mais tranqüilo com o empreiteiro. Essa tranqüilidade o aproximou e, a cada dois ou três dias, ele ia até o local onde Juca e seus homens trabalhavam a fim de verificar o andamento do serviço e de partilhar momentos de boa conversa. O tempo foi passando e sem que ninguém tivesse como objetivo principal a construção de uma amizade, foi exatamente isto que veio a acontecer, e a certa altura eles se sentiam totalmente à vontade para conversar sobre alguns assuntos, enquanto que outros, sempre ficavam fora das conversas. Eles contavam causos um para o outro, davam sugestões sobre o andamento do trabalho um do outro, mas quando o assunto era família, Juca sempre notava que André pensava duas vezes antes de fazer qualquer comentário. Apesar da vontade que sentia em perguntar o porquê de tanta cautela, ele se colocava em seu lugar de empreiteiro e respeitava a maneira de ser do patrão. Muitos dias já haviam passado e, Juca estava quase acabando de cortar a madeira necessária para a construção do retiro e que depois seria toda serrada com serra de mão. Terminando este estagio do trabalho, sua próxima tarefa era carrear a madeira para o local da construção para ser serrada, o que seria feito no carro de bois de propriedade de André. Juca esperou pela vinda de André ate o retiro, mas aquele já era o terceiro dia que o patrão não aparecia. Sendo assim, resolveu ir até a sede da fazenda para ver o que estava acontecendo e para trazer consigo o carro de bois que garantiria a continuidade do trabalho. No quarto dia Juca se levantou muito cedo, e as quatro horas da manhã ele já estava a caminho da sede da fazenda numa viagem a pé que duraria aproximadamente três horas. Ele ia a pé porque seus cavalos tinham que ficar na sede da fazenda devido ao fato de que no retiro ainda não tinha pasto cercado, e soltar os cavalos na larga daria muito trabalho para encontrar depois. Durante o solitário percurso em sua cabeça passava muitos pensamentos em sua grande maioria relacionados com a execução do trabalho porem, em um determinado momento, exatamente ao passar pelo córrego onde ele, André e seu João haviam sido atingidos por aquele vento forte no dia em que foram olhar o serviço, ele não pode evitar e novamente achou estranha a forma como os dois homens agiram. Ao relembrar o fato, sua cabeça ficou povoada com todas as estranhezas que até aquele momento tinha visto. As cruzes que circulavam a casa, a demora de André e seu João em montar nos cavalos na saída do barracão antes desta mesma viagem, e por ultimo o susto pelo vento forte e o relâmpago junto com a atitude de seu João circulando os cavalos. Apesar de tudo isto lhe causar grande estranheza, ele se manteria calado observando, antes de tomar a iniciativa perguntar qualquer coisa ao patrão. Assim, continuou sua caminhada e às seis e meia da manhã enquanto seu João ainda tirava o leite, Juca apontou no gramado em frente da casa e foi logo percebido pêlos cachorros, Trovão e Faceiro, que saíram latindo ao seu encontro, mas que foram detidos por João Cavaco que raiou com os dois fazendo com que eles fossem se deitar. Depois de atravessar todo aquele gramado passando por perto da grande arvore em seu centro, Juca aproximou-se da cerca do curral e cumprimentou seu João, ao mesmo tempo em que pegou um par de cordas, para ajudá-lo terminar de tirar o leite. Ele passou para dentro do curral e foi soltar um bezerro enquanto seu João, que estava tirando o leite de uma das vacas, perguntava como estava o andamento do serviço. Enquanto os dois conversavam, ao mesmo tempo em que tiravam leite, cada qual em uma vaca, André e sua filha Joana saíam de dentro da casa para virem até o curral tomarem seu tradicional caneco de leite tirado na hora. Por coincidência Juca que tinha terminado de tirar o leite de uma das vacas primeiro que seu João e estava em pé, viu que antes de sair da varanda da casa, André parou por um tempo como se procurasse algo na direção daquela arvore no centro do gramado. Ao chegarem ao curral coincidentemente os dois homens já haviam tirado o leite daquelas vacas e estavam os dois despejando o leite através da cerca na lata do lado de fora do curral. André chegou com sua filha e cumprimentou a ambos que responderam prontamente e, como já era de costume seu João foi até o curral dos bezerros para soltar a bezerra Estrelinha, filha da Mocinha, e que ganhou esse nome por ter uma estrela na testa. André nunca tardava em entrar no curral para tirar o leite nos dois canecos, mas, ao terminar de amarrar a vaca, João Cavaco estranhamente notou que o patrão não se aproximou. Sem entender nada ficou de pé ao lado da vaca esperando que André viesse, mas ao invés disso ele pediu que Cavaco tirasse o leite nos canecos. Seu João atendeu prontamente e assim que devolveu os canecos para seu patrão, este chamou sua filha e afastou do curral retornando para casa. Pra quem conhecia André, sabia que aquele não era um bom dia, pois alem de não tirar o leite ele mesmo, naquela manhã nem mesmo a brincadeira dos bigodes de espuma foi feito por eles.
Os dois homens terminaram de tirar o leite e como era de costume foram levar o leite para dentro da casa e os baldes para a bica d'água para serem lavados. Enquanto faziam isso, João Cavaco comentou sobre a atitude de André, dizendo que aquilo não era comum e que algo muito estranho deveria estar acontecendo. Juca ficou um pouco preocupado e indagou sobre o que deveria fazer já que ele estava ali para buscar o carro de boi, e não podendo perder tempo precisava levá-lo, mas também não queria ser atrapalho e trazer mais preocupação. João Cavaco não teve duvidas e autorizou que ele fosse acompanhado de Tonho Cavaco, até o pasto para trazer a boiada carreira para ser cangada e levada pro novo retiro e ser utilizada na explanação da madeira. Sem perda de tempo Juca e Tonho saíram em direção ao pasto e, pouco tempo depois, já estavam de volta com os bois que seriam cangados. Este trabalho foi realizado com a ajuda de seu João e de André que tendo sido comunicado do fato fez questão de participar daquele ritual. Depois de ajudar a cangar a boiada e, de dar uma boa observada em todo o equipamento, seu João que era homem cuidadoso com a traia do patrão, saiu do galpão na companhia de seu filho Tonho deixando Juca e André que ainda conversavam sobre o trabalho. Durante o tempo em que conversavam Juca não pode deixar de perceber o quanto o patrão estava sério e um pouco carrancudo, e acreditando que algo muito ruim estava acontecendo, ou que talvez o patrão não estivesse satisfeito com algo que ele havia feito, resolveu interferir, e num gesto de amizade sem rodeios virou para André e perguntou. Seu André? O senhor não me leve a mal, mas... O quê que está acontecendo por aqui? O senhor está zangado com alguma coisa que eu fiz?... O senhor sumiu lá do serviço e... Antes que ele continuasse, André interferiu dizendo que ele ficasse tranqüilo, pois não era nada com ele, mas ele insistiu dizendo. Mas então o que que é? Eu conheço o senhor há pouco tempo e não sei muito sobre o senhor, mas, o seu João te conhece muito bem e até ele ta percebendo que tem alguma coisa errada. André pensou por algum instante, e por já estar sem saber o que fazer com aquela situação, estar se sentindo cansado, e por perceber que a sua frente estava um homem que certamente não lhe faria mal, tomou coragem e falou! O que está acontecendo não tem nada a ver com o senhor, seu Juca! André estava sentando na mesa do carro de boi e sem muita cerimônia explicou que coincidentemente, nas três vezes em que Juca chegou em sua casa, na noite anterior ele teve um pesadelo e, neste caso havia ficado difícil manter uma boa imagem por ter passado a noite sem conseguir dormir. Não se preocupe! Não é nada com o senhor e nem com o trabalho! Juca ouviu aquilo e percebeu que ali estava um homem que tinha grandes problemas na vida apesar da aparência não indicar. Desta forma resolveu alimentar a necessidade que André certamente sentia em falar, para descobrir a verdade sobre tudo que tinha visto ate aquele momento. Seguindo o que seu coração mandava, Juca arriscando a receber um não disse. Eu sei que não é fácil ficar tranqüilo quando agente tem um problema que parece sem solução... Mas, o senhor fique sabendo que por maior que o problema seja... Ele só parece que não tem solução... Mais tem! André continuou sentado na mesa do carro de boi meio cabisbaixo, e precisando acreditar em alguma coisa, ao ouvir aquela afirmação perguntou. Será que tem mesmo seu Juca? Tem sim! Respondeu Juca com muita convicção acrescentando que a única coisa para a qual não existe solução é para a morte, e continuou: Mais se você tiver Deus no coração, até mesmo ela, pode ser derrotada! André se levantou do carro de boi, deu alguns passos para frente e, depois virou para Juca dizendo que a essas alturas não sabia se Deus ainda perderia tempo em olhar para alguém como ele. E porque que o senhor acha isso? Deus não escolhe cara de ninguém pra olha! Juca tentava achar uma forma de fazer com que seu patrão se sentisse um pouco mais forte diante de uma situação, que ele imaginava ser apenas mais um caso de afastamento das leis de Deus, mas antes que ele concluísse sua fala, André interrompeu perguntando. Será que Deus olha para um homem que... Um homem que vendeu sua alma para o diabo? André falou aquilo e se manteve de pé diante de Juca com muita naturalidade porem, com expressão de grande expectativa. Juca não sabia como agir diante daquela pergunta. Ele não sabia se ficava de pé ou se sentava, se ria ou mantinha-se sério, se tentava responder ou se simplesmente se calava e, depois de alguns instantes caminhando indeciso de um lado para outro, parou diante de seu patrão e com um sorriso amarelo estampado no rosto falou em tom de brincadeira. Ta certo! Gostei da brincadeira seu André! Claro que o senhor não fez isso, porque se tivesse feito, certamente não estaria aqui pra contar a história. Todo mundo sabe que quem vende a alma pro diabo, paga com a própria vida e... Novamente foi interrompido pelo patrão que falou com muita segurança. O que o senhor ta dizendo é verdade...! Não só paga com a própria vida, mas é levado com o corpo e a alma para viver o inferno eternamente! Todos, menos eu!... E esse é o problema! Eu sou o único que conseguiu esse feito! Eu enganei o diabo!... Eu fugi do inferno... Mais agora, sou perseguido por ele! Neste momento Juca que era homem que sempre soube respeitar as pessoas, não se conteve diante de tamanha asneira, e sem ter a intenção de ofender, soltou uma boa gargalhada, pois não conseguia acreditar em uma só palavra do que André estava dizendo! Após a risada ele ia dizer isto para o patrão, mas novamente foi interrompido por André que disse. É claro que o senhor não acredita, não é? E eu não acho que você esteja errado! É muito difícil de acreditar! Mas é a pura verdade! Eu juro por tudo que há de mais sagrado que eu vendi minha alma para o diabo e quando ele mandou me buscar eu fui, mas consegui enganá-lo e fugi daquele lugar. Por isso os pesadelos constantes! Juca continuava incrédulo diante de seu patrão, e ao mesmo tempo em que achava impossível acreditar naquela bobagem, por outro lado, mesmo conhecendo André há pouco tempo, não via nele exatamente a imagem de um mentiroso, o que tornava o assunto ainda mais intrigante. Percebendo que seu empreiteiro não estava acreditando e sentindo uma imensa vontade de desabafar, André pegou Juca pelo braço, caminhou até o lado de fora do galpão, onde estavam os bois cangados esperando para serem atrelados ao carro que ainda estava do lado dentro e falou. Porque que o senhor não passa o dia aqui com a gente e amanhã bem cedo leva o carro de boi para dar prosseguimento em seu serviço? Assim eu posso te contar como tudo aconteceu. Juca hesitou no primeiro momento, pois seus peões estavam terminando de cortar as ultimas toras de madeira, e caso o carro de boi não chegasse, eles ficariam parados. Diante da possibilidade de ouvir aquela história porem, uma pequena folga aos peões não seria algo muito prejudicial, e sendo assim ele resolveu ficar. André ainda segurava em seu braço e os dois tinham saído do galpão, e se sentaram em uma tora partida ao meio e que era usada como banco, e ficava encostada na parede da frente do galpão. O olhar de Juca voltou a ver as cruzes nos cantos da casa e, não podendo segurar mais a curiosidade, virou para André como se esse depois de tantas asneiras, ainda fosse dar alguma explicação aceitável, e perguntou. As cruzes nos cantos da casa... Se o senhor acha que Deus te abandonou, então pra quê elas servem? André olhou naquela direção como se relembrasse de algo e disse. Mesmo sabendo que Deus deve estar com raiva de mim, e por isso ter me abandonado, tenho toda certeza que o diabo continua não podendo com ele!... Elas são a proteção para aqueles que não têm culpa dos erros que cometi. E, só elas são o bastante para proteger o senhor e sua família? Perguntou Juca sem entender direito o grau de seriedade daquela situação que se colocava a sua frente. Não seu Juca!Existe um punhado de outras coisas... Pode ate ser que o diabo não venha respeitar elas, mas ate o momento isso deu certo! Isso funciona como os bichos do mato. Quando um deles mora numa região e marca seu território, o outro pode até entrar, mais sabendo que pode apanhar, ele respeita aquele pedaço de chão. O João Cavaco faz parte dessa proteção, não faz? É... Ele sabe dar nome aos bois... O João Cavaco é um grande homem e viveu toda sua vida antes de me conhecer, prestando serviços na igreja como sacristão e lá ele aprendeu muitas coisas. Ele sabe rezar em latim, aprendeu um pouco de macumba com a mãe dele, e principalmente, é homem com coragem pra enfrentar qualquer situação. Hoje boa parte da minha segurança depende da disposição dele, e isso ele tem de sobra, mais voltando a minha historia, eu vou te contar como tudo aconteceu desde o começo.
SEGUNDO CAPITULO (Narrado pelo protagonista) Essa história começou seu Juca, quando eu resolvi sair da casa de meus pais. Era fevereiro de quarenta e cinco, eu tinha quase dezenove anos, e mesmo não tendo idade o bastante para tomar as rédeas de meu destino, achei que já era hora de começar a ganhar a vida por conta própria. Meu pai era um homem rígido e, havia sido criado no sistema onde o filho só saía da casa dos pais, quando estes dissessem que a hora havia chegado. Apesar de ter sido criado neste sistema e de acreditar que seus pais estavam certos com relação a sua criação, meu pai, o senhor João Bastos, era muito tranqüilo e fazia de tudo para não ficar se aborrecendo a toa, o que ajudou para que ele aceitasse minha decisão com uma certa tranqüilidade. Desde criança eu sempre imaginei que meu destino me reservava grandes emoções, mas vivendo dentro das poucas terras que meus pais possuíam, eu sabia que era impossivel realizar grandes conquistas. A idéia de deixar aquelas terras para aventurar em busca de crescimento me acompanhava desde muito cedo, e assim que achei que o momento havia chegado, resolvi dar inicio a minha jornada. Na minha família nunca foi comum o filho abandonar a casa dos pais, isso só acontecia se o motivo fosse casamento, e por isso ao ficar sabendo de meu desejo, minha mãe Dona Francisca, no alto de seus quarenta e cinco anos de vida, começou a encher a cabeça de meu pai com pedidos para que ele não deixasse que eu saísse no mundo feito pedra que não quer criar lodo. Os apelos de minha mãe não foram suficientes, e mesmo meu pai tendo o costume de atender a maioria dos pedidos dela, desta vez ele sabia que pouco adiantaria, pois parecia que ele já adivinhava que dos seus seis filhos, eu com certeza seria o que mudaria as regras daquele jogo de criação centenário cultivado por nossos antepassados. Cinqüenta e poucos dias se passaram entre o surgimento da conversa em que eu disse que iria embora e a aceitação por parte de minha mãe que, aliás, fez diversas tentativas frustradas. Eu continuava firme em minha vontade, e lentamente ela foi acostumando com a idéia. Era época de colheita e antes de partir eu tinha que ajudar meu pai e meus irmãos a colher uma roça de arroz que tinha sido plantada em setembro passado, pra só depois de realizar esta tarefa, ser liberado para ir embora. A minha ansiedade crescia a cada semana e eu mal podia esperar porem, depois que começamos a colher o arroz, não havia a menor possibilidade de parar, pois meu pai não tinha uma tuia para armazenar o arroz e, sendo assim era preciso fazer a colheita a moda antiga. A colheita a que André se referia, consistia em cortar o arroz e colocar os feixes escorados no toco que sobrava da própria cana do arroz para após uns três dias, juntar aqueles feixes em outros maiores que depois de carregados nas costas eram usados para fazer a pilha que guardaria ele para ser batido conforme a necessidade da família. Este processo de certa forma adiantou um pouco a viagem, já que André escapou de bater o arroz o que permitiu que eles terminassem o trabalho mais cedo do que ele esperava. Marquei a viagem para o dia 06 de Fevereiro de um mil novecentos e quarenta e cinco, logo após o fim da colheita. Minha mãe continuava tentando tirar aquela idéia de minha cabeça de todas as maneiras que ela achava possível porem, em nenhum momento eu aceitava seus argumentos. Vendo que não conseguiria me convencer de que eu não estava preparado para enfrentar as durezas da vida, nos últimos cinco dias antes de minha saída ela passou a insistir que eu deveria levar comigo por segurança, alguns contos de réis que eles haviam economizado durante muito tempo. Eu hesitei em aceitar porque sabia que aquele dinheiro era tudo que eles haviam juntado em muitos anos de trabalho, mas aquilo foi quase uma imposição de minha mãe que neste caso, não deu a meu pai a opção de discordar dela. Meu coração dizia pra eu não pegar o dinheiro, mas sem ter outra saída tive que aceitar, mas fiz questão de dizer que só pegaria porque um dia eu seria muito rico e devolveria o valor multiplicado varias vezes. A insistência de minha mãe me soava como que um aviso, e mesmo sabendo que era um risco, para não desobedecer sua vontade aceitei. No fundo de minha alma eu sabia que não se tratava apenas de uma preocupação de minha mãe com meu bem estar, aquele dinheiro era na verdade, uma garantia de que eu voltaria para ela. Ela tinha certeza que levando aquele dinheiro, não importava o que acontecesse, eu enfrentaria a tudo e a todos para voltar vitorioso e trazendo, na pior das hipóteses, a mesma quantia. Finalmente estava chegando o dia e o que antes era ansiedade agora se transformava em preocupação. Comecei a pensar no que me aconteceria dali para frente e, por mais que eu pensasse, a impressão que tinha era que apesar do mundo que eu ia encontrar lá fora ser totalmente desconhecido, era como se eu tivesse vivido nele todo o tempo. Depois de uma noite tumultuada em que eu praticamente não dormi pensando na viagem, finalmente o dia amanheceu, e como era de costume meu pai se levantou, veio até a porta do quarto em que eu e meus irmãos dormíamos e disse que estava na hora. Aquela era a senha para que todos se levantassem e, quando essa frase era ouvida, ninguém naquela casa ousava ficar na cama. Nem mesmo as crianças. Neste dia não foi diferente e mesmo sendo aquele dia um domingo, todos nos levantamos, vestimos nossas roupas de trabalho, e após lavar o rosto cada qual deu inicio a sua primeira tarefa do dia. Uns foram para o pasto tocar as vacas leiteiras, outro foi campear os cavalos para trazer pra porta, alguém se encarregou de tratar dos porcos e eu fui junto com meu pai para o curral ajudar tirar o leite. Meu pai era homem de pouca conversa e isso ficava mais forte e mais perceptível logo após ele ter levantado. Não era muito comum ele falar diretamente com os filhos, e as instruções daquele dia já haviam sido dadas no dia anterior para meu irmão João Filho, que era o mais velho, e que era encarregado de passar para os outros. Naquele dia porem, certamente não era um dia tão comum e seu semblante mostrava uma leve tristeza. Ao chegarmos ao curral ele pegou seu par de sedem de pear vacas, e antes de entrar pra dentro, com a cabeça baixa olhando para as cordas como se tivesse testando sua resistência falou. Ocê resorveu ir embora... Sair de minha casa pra procurá não sei o que... Eu acredito que o que ocê ta procurano, deve de ser muito maior e mais importante do que o que eu posso te dar! Ele continuou de cabeça baixa por poucos segundos e depois se virando para mim e me mostrando as cordas complementou: Seja ingual estas cordas que é mole mais, é forte, e porisso já me serve há muito tempo! Joga conforme o jogo la de fora... Num quera ser que nem arvore que por ser dura, vai contra o vento e acaba quebrada e derrotada na luta!... Vai com a bença de Deus! Ele terminou de falar e, sem esperar por uma resposta entrou para dentro do pequeno curral feito de lascas a fim de amarrar uma vaca para começar tirar o leite enquanto eu ainda fiquei do lado de fora por algum tempo tentando entender o que ele quis dizer. Depois de algum tempo a tiração de leite estava quase acabando e eu esperava pela chegada de minha mãe que todos os dias ia até a cerca do curral para trazer os canecos esmaltados que nós usávamos para tomar o leite tirado na hora. Naquele dia porem quem veio até a cerca foi minha irmã Aninha de apenas cinco anos. Minha mãe estava emocionada demais para conseguir chegar perto de mim e, pela primeira vez em minha vida eu estava tomando leite no curral num caneco que não tinha sido trazido por ela. Naquele momento comecei a tomar consciência da responsabilidade daquela minha decisão e com sinceridade fiquei um tanto confuso e até mesmo abalado na minha convicção porem em poucos segundos recobrei minha firmeza e mantive de pé meus propósitos. O resto da manhã continuei na mesma rotina de todos os domingos, e fiz coisas como estrumar o Brinquinho, nosso cachorro, nos frangos que seriam mortos para o almoço, ou jogar milho para as galinhas. Não pude deixar de pensar que dali a poucas horas eu estaria me encaminhando para um lugar desconhecido onde toda aquela simplicidade talvez não coubesse. As horas passaram, o almoço ficou pronto e como sempre, minha mãe colocou a comida no prato de cada um dos outros cinco filhos e os entregou a cada um deles, depois voltou às panelas colocou mais um prato e levou para meu pai. Sua atitude era totalmente estranha, pois o costume era ela colocar seis pratos para os filhos e depois fazer o prato de meu pai. Naquele dia depois de ter feito isto, ela veio até a mim e me mandou ir até as panelas retirar minha própria comida. A principio eu não sabia o que aquilo significava e muito confuso hesitei em aceitar, mas ao olhar para meu pai que jamais tinha aceitado um filho seu ir até as panelas, recebi dele um sinal de cabeça confirmando o convite de minha mãe. Naquele momento eu entendi que o que eles queriam dizer é que agora eu estava por minha conta, que eu era dono do meu destino e que apesar de ainda ser considerado como filho e de continuar sendo bem vindo naquela casa, eles estavam lavando suas mãos e passando para mim a total responsabilidade do que acontecesse dali para frente. Logo após ter terminado o almoço fui até o quarto em que dormíamos e peguei meu alforje que servia como mala já que não tinha uma e nem mesmo roupas o bastante para encher uma. Passei pela sala e despedi de Aninha que em meio a um forte abraço me pediu em sua inocência que quando eu voltasse trouxesse pra ela uma boneca tão bonita e grande quanto a que a vizinha tinha e com a qual ela sonhava todas as noites. Para me despedir de minha mãe tive que descer ate a bica d'água que ficava no quintal nos fundos da casa em direção ao chiqueiro. Sabendo que não resistiria, ela foi pra lá para que os outros não a vissem chorando e nossa despedida aconteceu sem que nenhuma palavra fosse dita. Ficamos abraçados e engasgados por um bom tempo e só depois pude subir de volta para a casa e dar ate logo para meus irmãos e para meu pai. Feito isso, joguei o alforje nas costas e sem dar chance para arrependimentos peguei o caminho dentro do piquete dos cavalos que saia da casa e ia ate a estrada principal. Virei à direta e coloquei-me a caminho andando uns trezentos metros sem olhar para traz a fim de me manter forte como acreditava ser, porem quando já estava fazendo a curva à esquerda onde a estrada se escondia atrás do grande serrado, virei meu rosto na direção da casa de meus pais e fui surpreendido com a visão de todos os membros da família, com exceção de minha mãe, em pé no terreiro da casa me olhando. Aquilo nunca tinha acontecido em nossa família e por isso a minha surpresa, mas mesmo assim voltei meu rosto para frente novamente e continuei, e mesmo fazendo um grande esforço para manter o controle, não consegui segurar no peito o grande nó que se formou e que insistiu em me sufocar subindo até minha garganta. Cerrei os dentes com toda a força que tinha no queixo na tentativa de segurar aquele nó lá no fundo, porem depois de relutar muito, e sabendo que não iria conseguir, esperei ficar protegido pelo cerrado alto que havia logo após a curva da estrada para então sair correndo feito louco caminho a fora chorando silenciosamente por uns oitocentos metros mais ou menos.
Depois de correr naquele pedaço do caminho, cansado e com as pernas meio bambas, tropecei nelas mesma e acabei por cair no chão rolando pela areia fofa e quente. Depois de alguns segundos ali caído com o rosto pro chão, rolei e me sentei no barranco na beira da estrada e, ainda sufocado com aquele nó em minha garganta comecei a refletir sobre minha decisão. Ali estava eu, sentado em um barranco chorando por estar saindo de perto daqueles que eu amava. Se eu tivesse que desistir, com certeza aquela seria a hora certa, mas depois de pensar por algum tempo, tive certeza de que não voltaria atrás já que agora o que estava em jogo não era só a minha vontade de conhecer outras terras e de vencer, agora estava em jogo a minha hombridade refletida na promessa feita à minha mãe de que eu traria de volta para meus pais o dinheiro que eles haviam me dado e, multiplicado várias vezes. Por mais que meu coração pedisse que eu retornasse, na minha cabeça era mais forte a vergonha e o medo de desistir e ser considerado por minha família um fraco que começa algo e não termina. Mais tarde eu ia saber que esse risco eu não havia corrido, já que minha família nunca me pediu que saísse de casa, ao contrário, essa era uma decisão unicamente minha, e eles nunca me veriam como um fraco. De qualquer forma eu não consegui perceber o quanto estava errado e sob a pressão do medo e da vergonha, tomei impulso, me levantei daquele barranco de beira de estrada, limpei minha roupa, peguei meu alforje e me coloquei de volta no caminho que me levaria ao que eu tinha proposto fazer. O caminho era longo e o fato de eu estar andando a pé fazia com que ele aumentasse ainda mais e... Nesse momento André foi interrompido por Juca que tendo conhecimento dos costumes da época e não entendendo como alguém podia sair para uma viagem tão longa sem ser num bom cavalo, disse. Um momento. Porque o senhor saiu a pé? Seu pai não podia te dar um cavalo arriado? Na verdade seu Juca, eu tinha um cavalo muito bem arriado e que era considerado um dos maiores machador da redondeza, aliás, nesta época, eu já possuía um bom pé de meia. Eu tinha este cavalo e umas vinte e cinco novilhas de sobre ano, prontas para tirar a primeira produção. Mas quando resolvi sair da casa de meus pais para aquela aventura, decidi que nada daquilo seria usado para sustentar a minha viagem. Achei melhor deixar tudo na guarda de meu pai e sobreviver apenas daquilo que eu conseguisse com o suor de meu rosto. Como eu ia dizendo, sabendo que o caminho era longo apertei o passo para conseguir andar o máximo possível naquele dia e quando o sol começou a baixar, eu já estava muitas léguas longe de casa e por isso tratei de procurar um local para armar minha rede, e passar a primeira noite fora da guarda de meus pais, em quase vinte anos de vida. Quando a noite chegou, eu já estava dentro de minha pequena rede tecida por minha mãe, e que armei entre dois galhos no alto de uma arvore sobre uma pequena fogueira que fiz para evitar a aproximação de bichos, principalmente do tipo onça pintada. A árvore ficava a beira de um pequeno riacho e, antes de subir para a rede e comer parte da matula que minha mãe havia me dado, tomei um banho para tirar do corpo o suor de uma tarde inteira de caminhada. Agora já eram umas sete horas da noite e lá estava eu absolutamente só dentro de uma mata fechada, longe de casa, numa escuridão que só não era maior por causa da fogueira no chão e sem nenhuma arma para me defender, já que eu carregava apenas um canivete. Mais uma vez foi impossível não pensar em voltar e deixar de lado aquela idéia absurda, porem pesando nas coisas a favor e nas contrárias, a conclusão foi pelo prosseguimento. Comecei a imaginar o que eu encontraria pela frente naquela aventura cujo único motivo aparente era minha vontade que parecia ser mais forte do que tudo que eu já havia sentido. Minha cabeça se encheu de pensamentos que na verdade eram desejos que eu tinha mais que desconhecia. Imaginei que logo que chegasse a Alto Araguaia, imediatamente arrumaria um lugar para morar e depois de arrumar um bom emprego, começaria a juntar o dinheiro que meus pais havia me dado para mandar de volta para eles. Depois disso então, juntaria bastante dinheiro para ai sim, realizar os desejos que eu não sabia bem o que eram, já que aos dezenove anos de idade, eu não conhecia praticamente nada da cidade e nem da maneira como seus moradores viviam. O futuro era algo a ser conhecido e conquistado e, mesmo tendo isso como sendo o meu maior desejo, eu não tinha a menor idéia de como fazer. Naquele momento não importava se isto era certo ou era errado! Não importava o que eu ia encontrar! Não importava quanto tempo eu levaria para ficar rico, ou mesmo se eu ficaria! Ali deitado naquela rede apenas uma certeza havia... Eu estava só! Havia centenas de pensamentos povoando a minha cabeça, e eu lutava para tentar conseguir colocar eles em ordem porem, por mais que eu me esforçasse não conseguia chegar a nenhuma conclusão. Isso me levou a certo cansaço mental que ao se juntar com o cansaço físico causado pela caminhada daquela tarde, acabou por contribuir para que eu adormecesse. Naquela noite enquanto dormia tive um sonho engraçado. Sonhei que estava retornando a casa de meus pais, mas tudo ali estava absolutamente mudado e a casa em que eu e meus irmãos fomos criados já não existia. Era minha família porem em um lugar que eu não reconhecia pela enorme diferença física e também pelo padrão de vida absolutamente diferente. No sonho meus pais agora eram muito ricos e já não moravam no Sitio Solidão, e por mais que eles estivessem bem, no sonho eu os via, mas não conseguia chegar até eles. Eles também se esforçavam para me alcançar, mais eu estava impotente sendo segurado por um homem que não era meu conhecido, e que tinha um rosto misterioso. Parecia que ele, sem tocar em mim, me segurava se esforçando para me tirar de meus pais. Apesar de não conseguir chegar ate meus pais, a imagem mais marcante do sonho era o padrão de vida que eles agora tinham, alem daquele rosto estranho e misterioso. Por várias vezes fui acordado às vezes por algum barulho dentro da mata outras vezes por minha própria ansiedade, e logo que conseguia dormir, novamente voltava a sonhar o mesmo sonho. Quando acordei às cinco horas da manhã sentei na rede e fiquei pensando naquele sonho, mais que eu pensasse, não conseguia entender e cada vez que tentava ficava mais preocupado. Se por um lado ver meus pais ricos e morando bem era exatamente o meu objetivo ao sair da casa deles, por outro lado, o fato de não conseguir me aproximar deles me causava uma enorme angustia. Por não saber o que aquilo significava eu tinha medo que pudesse ser um aviso sobre algo que viesse a prejudicá-los no futuro e tudo por minha decisão. Depois de arrumar a minha trouxa, coloquei-me a caminho procurando aproveitar bem a viagem na tentativa de chagar a Alto Araguaia ainda naquele dia. Mesmo estando andando rápido não deixei de me preocupar com as lembranças daquele sonho estranho que insistiu em me acompanhar. Em minha inocência acabei por concluir que ele era de que eu estava certo e isso me motivou ainda mais a continuar minha jornada rumo ao desconhecido. O dia passou rápido entre as longas caminhadas e as poucas paradas, em riachos da região, onde eu descansava e aproveitava para me alimentar. Minha mãe havia feito farofa de galinha caipira que eu tinha usado na janta do primeiro dia e no segundo, me alimentei de pão e de carne seca alem de algumas frutas. A noite já estava se aproximando e eu ainda tinha que andar uns seis ou sete quilômetros para chegar à cidade e sabendo que iria escurecer logo, apertei o passo ainda mais. O conjunto composto pela preocupação com o sonho mais a proximidade do fim do dia alem da ansiedade pela chegada na cidade, fizeram que sem que eu percebesse, começasse a correr. Quando me dei conta do que estava fazendo, movido pelo desejo de chegar logo na cidade que dali em diante passaria a ser minha nova morada, continuei a correr e, à medida que me aproximava da cidade, aumentava as batidas de meu coração, tanto pela corrida, quanto pela ansiedade. Depois de certo tempo trotando pela estrada que parecia não ter fim, do alto de uma estrada carreira que dava acesso a cidade, meio anestesiado avistei pela primeira vez, Alto Araguaia, a cidade que meus pais tanto falavam e que eu jamais havia visto até aquele momento. Ao avistar os primeiros sinais da cidade fui diminuindo gradativamente o ritmo de meu trote ate que parei. Parado ali ficou por alguns instantes observando as luzes fracas que vinham das ruas e das casas que constituíam a cidade. Tratava-se de uma pequena cidade porem, vista do alto e principalmente no inicio da noite, deixou em mim uma ótima impressão pela visão de suas luzes que faziam com que ela se parecesse com uma baixada repleta de vaga-lumes parados. Aquela visão ficaria em minha mente para o resto de minha vida porque pela primeira vez, eu via uma cidade já que até aqueles dias, eu nunca havia saído da casa de meus pais no Sitio Solidão. Depois de ficar ali por algum tempo admirando a singela cidadezinha, coloquei-me a caminho novamente andando agora com certa tranqüilidade pois, mesmo o dia já tendo terminado, eu agora me sentia seguro. A cada passo que dava descendo por aquela ladeira que me aproximava mais daquelas luzes que não cansava de admirar, as minhas sensações aumentavam e se misturavam. Tão logo desci aquela ladeira e atravessei o córrego Boiadeiro, passei pela velha porteira barulhenta feita de tábua e que servia como uma espécie de campainha dos moradores mais próximos. Essa velha porteira de tabua seu André, também já foi local de acontecimento muito importante pra mim! Nela um dia eu vivi um dos momentos mais bonitos de minha história, que um dia eu vou contar. Então seu Juca, só depois de andar mais uns trezentos metros ainda na estrada carreira, é que cheguei às primeiras casas que ficavam distantes umas das outras. Enquanto passava nas primeiras ruas da cidade, notei que as pessoas ficavam sentadas nas portas de suas casas formando uma roda e jogando conversa fora e, aquilo me agradou muito já que vivendo toda minha vida com meus pais no Sitio Solidão, ter alguém que não fosse da família para conversar era tudo o que eu queria. Caminhei para o centro da cidadezinha como se estivesse indo para algum lugar específico. Na verdade eu estava era meio bobo com aquela nova realidade e o que me fazia caminhar era simplesmente o desejo de ver toda a cidade naquele mesmo instante. Depois de andar por mais ou menos uma hora e conhecer boa parte da cidade, perdido em minha ansiedade, cansado e precisando tomar um bom banho para dormir, voltei à realidade e percebi que na verdade eu estava era sem rumo e que se não procurasse ajuda provavelmente não encontraria uma pensão para passar aquela noite. Continuei caminhando, mas agora com o objetivo de encontrar alguém para me dar alguma informação porem, percebi com certa revolta que mesmo sendo ali uma cidade, seu povo tinha costumes totalmente comparados com os do povo das fazendas e, assim como nós eles também dormiam muito cedo. Assim eu já não conseguia encontrar ninguém que pudesse me dizer onde ficava uma pensão. Durante aquele dia enquanto caminhava na estrada, havia feito meus planos de sobrevivência que seria dividido em duas partes: a primeira era arranjar um lugar provisório para morar e, que este tinha que ser tão limpo e bem cuidado quanto era nossa casa, mas, que fosse barato e que eu pudesse pagar com meu próprio suor; a segunda era arrumar um bom emprego que não só garantisse a minha sobrevivência, mas, também me desse à oportunidade de juntar algum dinheiro para que eu pudesse pagar o empréstimo feito por meus pais e mandar uma boa quantia a mais para que eles pudessem viver um pouco melhor. Alias quando pensei em sair de casa, meu objetivo maior era conhecer outras pessoas e lugares, trabalhar, ficar rico criar família enfim, fazer coisas que eu sabia que vivendo dentro do Solidão eu nunca conseguiria realizar pela falta de oportunidade que este tipo de lugar oferece. Quando minha mãe resolveu me emprestar aquele dinheiro com a intenção de facilitar a minha vida, na verdade ela acabou por complicar, pois, daquele momento em diante eu me senti na obrigação de primeiro pagar a eles aquele dinheiro, para só depois, pensar em realizar meus objetivos. Apesar desta realidade naquele momento minha preocupação era outra e por isso continuei andando pelas ruas que a essas alturas estavam totalmente desertas. Quando já estava para desistir da procura, avistei uma casa com a porta aberta e sem perder tempo encaminhei-me para lá. Ao chegar perto percebi que já tinha dado a volta na cidade e que aquela era a pensão “Boa Viagem” de uma senhora chamada Dona Chica. Ela ficava na Rua General Ozório, rua que na verdade marcava o inicio da cidade, e pela qual eu tinha passado despercebido. Imediatamente me instalei e procurei descansar para que pudesse dar seguimento a meus planos para o futuro assim que acordasse no dia seguinte.
A Dona Chica era uma mulher de estatura média com aproximadamente um metro e sessenta centímetros e pesando uns oitenta e cinco quilos mais ou menos. Em pouco tempo eu descobriria que era uma mulher de muito valor, tamanha foi a importância dela em minha trajetória naquela cidade. Vencida a emoção da chegada e o deslumbramento com a pequena Alto Araguaia, no outro dia de manhã imediatamente comecei a procura por uma forma qualquer de emprego para que pudesse me sustentar. Foi nessa fase que constatei com tristeza, que a idéia que eu fazia de cidade era muito diferente da realidade. Enquanto eu morava no Sítio Solidão, eu ouvia contar as estórias de pessoas lá da minha própria região, que saiam de seus sitios ou fazendas para irem para a cidade estudar e trabalhar e que depois de algum tempo, voltavam para nossa região com uma boa situação financeira e com um modo de vida moderno e aparentemente vantajoso. Esse fato me deixava muito excitado e fazia com que eu acreditasse que comigo também seria da mesma maneira, mas o que eu não sabia era que essas pessoas, tinham a seu favor alguns fatores. Condições financeiras razoáveis que proporcionava as condições de estudar, conhecimento com pessoas que já viviam na cidade, e até algum apadrinhamento feito por algum político ou compadre. No meu caso a vontade de vencer, de ser um funcionário público, de trabalhar em escritório era o único fator a meu favor e com sinceridade eu não sabia quanto duraria. A descoberta dessas diferenças veio um pouco tarde e não dando mais para recuar, comecei a andar pela cidade, ainda com uma boa dose da empolgação inicial, a fim de encontrar o emprego tão necessário. Aempolgação seria totalmente destruída ainda nos primeiros dias, logo após receber alguns “não” e algumas “portas na cara” acompanhadas pela pergunta “O que você sabe fazer?”. A resposta era sempre menor que a pergunta já que vivendo na roça, as únicas coisas que aprendi foram os serviços da roça e do gado, coisas que em uma cidade, mesmo que pequena, não tem muita serventia a não ser para ir trabalhar nas fazendas da região, o que para mim, não era aceitável devido aos meus objetivos. Minha saída da casa de meus pais sempre teve como propósito a mudança de vida que me levasse ao que eu imaginava ser uma vida mais digna do que, capinar, cortar de machado e foice entre outros trabalhos pesados. Eu já estava na cidade há cinco dias, e tudo que havia conseguido até aquele momento, alem da saudade que já sentia de minha família, era matar em mim a empolgação que a essas alturas já estava se transformando em desespero, que só conseguia ser acalmado, pêlos conselhos e pelos carinhos de Dona Chica. Ela havia se transformado, em bem pouco tempo, numa espécie de segunda mãe para mim e, sempre que eu estava cabisbaixo, ela chegava e com poucas palavras conseguia me reanimar. Após mais de dez dias tentando sem sucesso, conseguir um serviço, nem mesmo o carinho de Dona Chica conseguia me levantar o animo e a essas alturas eu já pensava até mesmo em desistir de minha aventura. A idéia da desistencia começou a se tornar freqüente em minha cabeça, mas cada vez que eu pensava nisso, eu me lembrava de meus pais me dizendo para que eu desistisse. Mesmo sem ofender a eles e sem ser rude, sempre mantive a firmeza em direção ao que tinha proposto. Desistir agora era extremamente vergonhoso e por mais que eu às vezes pensasse nisso, logo voltava à realidade e constatava que a única saída era sofrer as conseqüências de minha decisão e achar uma maneira de resolver aquela situação. Com esta firmeza e com medo da vergonha diante de minha família é que no décimo terceiro dia sai mais uma vez em busca do trabalho, tão importante para confirmar ou não que eu estava com a razão quando fui tão firme ao não obedecer meus pais. Quando sai pela manhã, trazia em mim uma gostosa sensação de que aquele seria um dia diferente e que tudo daria certo, e isso me trouxe uma animação que ate então eu próprio não sabia que tinha. Tratei de aproveitar bem a animação e andei pelas ruas daquela cidade como se nunca tivesse recebido um não sequer durante todos aqueles dias que ali estava. Naquele dia entrei em toda casa de comercio que encontrei e mesmo para os comerciantes que já haviam me dito não outras vezes, fiz questão de perguntar se estavam precisando de empregado. Os “não” daquele dia parecia não fazer efeito e mal tinha saído de um armazém, de um açougue ou outro tipo de comercio e já entrava em outro. Andei quase todo o dia e quando já chegava por vota das quatro horas da tarde, percebi que a boa sensação que senti de manhã parecia não ser nada e aquele tinha sido um dia exatamente como os outros. Apesar de minha boa vontade, mais uma vez eu voltaria para a pensão sem ter conseguido nada e teria que mais uma vez, deitar em minha cama e rolar pra lá e pra cá sem conseguir dormir preocupado com aquela situação. Descontente e novamente cabisbaixo, vim caminhando com o olhar perdido pela Rua General Ozório onde ficava a pensão e não percebi as pessoas que estavam sentadas ao redor de uma das mesas colocadas por Dona Chica na sombra que cobria a calçada da frente nos fins de tarde. Só percebi quando já estava a uns cinqüenta ou sessenta metros e, minha distração fez com que eu levasse um susto. Este não foi por aquelas pessoas estarem ali, pois isso era absolutamente comum nos fins de tarde, mas por quem eram as pessoas que estavam sentadas naquela tarde. Normalmente aquele espaço era ocupado pelos moradores da pensão ou pêlos que ali se hospedavam, na maioria homens viajantes que faziam negócios de cidade em cidade. O fato de não haver muito movimento na pensão, e deles não serem muitos, fazia com que nós acostumássemos uns com os outros e por isso eu já sabia que eles sempre ocupavam aquele espaço naquela hora do dia. Naquela tarde porem as pessoas presentes naquele ambiente chamavam muito mais a atenção do que as dos outros dias. Tratava-se de uma forte e elegante senhora bem vestida, acompanhada por uma jovem imensamente bonita e também bem vestida e que aparentava aproximadamente dezesseis ou dezessete anos. Elas estavam sentadas em uma das mesas e pareciam observar com grande curiosidade a minha chegada, o que me deixou com certa dúvida se tratava apenas de curiosidade, ou se a minha presença era algo esperado por elas. De qualquer maneira a partir daquele momento o motivo delas estarem ali já não era tão importante, e mesmo que fosse, certamente seria esquecido pelo clima que se criou no exato momento em que eu e a jovem nos olhamos. Era uma mocinha de porte médio, com um corpo que eu imaginei ter sido feito com as mãos, tamanha foi a atração que senti no momento que olhei para ela. Usava um vestido azul claro que parecia que era feito sem molde, já que era quase reto, e tinha finas alças que segurava ele sobre aquele corpo de menina nova porem com curvas generosas. Seus cabelos eram curtos e cortados de uma maneira que eu nunca tinha visto até aquele dia. Parecia ter sido cortado daquele jeito para permitir que a gente visse todo seu pescoço segurando aquele rosto de anjo que possuía duas bolitas azuis no lugar dos olhos. Durante alguns segundos fiquei um tanto paralisado e mesmo sabendo que eu estava provocando uma situação engraçada com minha ação, o que me incomodava bastante, não pude fazer muita coisa, pois me sentia muito atraído pela imagem que acabava de aparecer na minha frente, e que eu jamais imaginava poder existir. A bela imagem daquela jovem me olhando como se quisesse me fazer ou me dizer algo, conseguiu me segurar por um bom tempo, e quando provavelmente eu já estava sendo ridículo, senti a necessidade de tomar uma providencia. Meio contra a vontade e um tanto sem jeito, caminhei cabisbaixo no rumo da porta de entrada da pensão sem nada falar ou demonstrar. Eu estava quase terminando de atravessar a calçada que levava a porta da sala de recepção da pensão quando fui interrompido pela voz firme, porem gentil, daquela senhora que como se me conhecesse de longa data me cumprimentou dizendo. Boa tarde meu bom rapaz! Espero que esteja tudo bem com você! Me parece um pouco tonto! Meio sem jeito pela cena anterior onde acreditei estar sendo ridículo diante de tão bonitas senhoras, parei diante da porta mantendo meu corpo voltado na direção da entrada e, olhando para o lado onde elas continuavam sentadas, disse boa tarde com meu olhar novamente fixo nos olhos daquela moça. Após responder ao cumprimento recebido e dizer que estava tudo bem, fui para meu quarto onde me mantive durante certo tempo até sair para ir ao banheiro tomar meu banho. Enquanto tomava banho e me trocava não pude parar de pensar um só instante no acontecido e na imagem de anjo que me tirava qualquer preocupação. Por mais que eu tentasse desviar meu pensamento, aquela imagem era tão forte que nada fazia com que eu deixasse de ver as duas, e principalmente a menina, bem diante de meu nariz. Eu só conseguia ver... Só conseguia ver aqueles olhos me olhando de uma maneira que parecia ter uma grande paixão que na verdade não tinha motivo para existir. Aquele final de tarde me trouxe uma sensação que eu nunca tinha sentido e que misturava a decepção por mais um dia sem arrumar emprego com a euforia que me invadia e que certamente era por ter conhecido alguém tão diferente de tudo que eu já tinha visto. Isso me causou uma ansiedade que parecia que não ia acabar, e naquele dia como era de costume, aproximadamente às seis e meia da tarde fui para o refeitório da pensão para jantar. Ao entrar imediatamente meus olhos correram o ambiente a procura de uma determinada imagem, e fiquei decepcionado quando constatei que ali estavam apenas as pessoas costumeiras. Como sempre fazia, cumprimentei a todos, porem com certa frieza típica de quem esta decepcionado, e com pouca animação me sentei no lugar de costume que foi escolhido por permitir uma boa visão do local. Logo que me sentei, Dona Chica veio conversar um pouco e antes que eu falasse algo ela abriu um leve sorriso e falou com ar de alegria: Já sei! Finarmente arrumou sorviço, não é? Não! Não arrumei não Dona Chica! Foi mais um dia igual aos outros, mas foi bom... Quando a pessoa tem o serviço, é um serviço que eu não sei fazer! Quando é um serviço que eu sei fazer, é do tipo que eu não queria mais pra minha vida! É fio! As veis nois tem que fazer coisa que num qué por um tempo pra mode dispois consigui miorá! Dona Chica me olhou, e depois de me analisar um pouco perguntou: Ora, Ora, Então o que foi que te aconteceu pra ocê tá com essa cara tão boa? Não arrumou o sorviço e mesmo assim tá parecendo que acho o nin da égua! Vamo minino me conta o que aconteceu! Antes que eu pudesse responder, pela porta do refeitório que dava para o corredor que levava para a sala de recepção e que passava em frente aos quartos, entraram Dona Diná, aquela senhora elegante, acompanhada por Josefine, a linda garota de olhos azuis. A elegância e a beleza das duas que já havia sido notada por mim naquela tarde, cujos nomes só vim saber naquela hora, ditos por Dona Chica, chamou ainda mais minha atenção e de todos que ali estavam ao apontarem na porta, arrumadas como se fossem a uma festa. Antes de se sentarem em uma das mesas para jantar, elas passaram por perto de nós e nos cumprimentaram com um aceno de cabeça. Depois que as senhoras passaram, todos voltaram sua atenção para seus afazeres, menos eu, que tive que ser despertado de uma viagem pela Dona Chica que chamou minha atenção dizendo. Então é essa a razão de oce tá rino atoa, não é? Dei um leve sorriso e antes que eu respondesse, ela completou. Olha filho... toma cuidado... Fez uma pausa e continuou: Toma muito cuidado com o que oçe vai fazer! Essa moça não é pra ocê... Eu olhei para ela com um misto de espanto e confusão e perguntei o que uma menina tão bonita e tão delicada podia fazer de mal para mim. Dona Chica permaneceu calada alguns instantes e depois sentando-se numa das cadeiras para chegar perto de meu ouvido como se estivesse tentando disfarçar aquela ação, falou com um certo ar de brincadeira: Aquele que panha uma rosa, tem que sabe que pode se machucá nos espinhos!... É priciso sabe que a beleza é uma arma muito perigosa!... Essa minina deve de se de famia rica e cheia dos estudo, e oce fio, é rapaiz bão mais que num istudo. Toma cuidado! Ela falou aquilo e se levantou para ir dar as ordens na cozinha enquanto eu desviei minha atenção apenas por poucos instantes para pensar no que ela tinha falado, e com sinceridade suas palavras apesar de fortes não me atingiram a ponto de fazer pensar corretamente. Durante o jantar eu não tive nenhuma iniciativa para tentar falar com Josefine ou com Dona Diná já que não tinha nenhum motivo aparente para me aproximar delas. Assim, fiquei por uma hora mais ou menos, sentado no refeitório e, sem poder me aproximar das duas, comecei a pensar nos motivos que trazia ela para aquela cidade tão pequena e com bem pouco a oferecer. Será que elas estavam procurando por alguém? Quem sabe o marido de Dona Diná e consequentemente pai de Josefine... Ou então... Sei lá, um parente qualquer. O fato é que durante aquele jantar muitas coisas me passaram pela cabeça, mas o que mais me chamava a atenção era a beleza da menina. Depois de certo tempo, e percebendo que elas haviam notado minha curiosidade com relação a elas, resolvi me levantar e ir para meu quarto descansar para no outro dia começar nova procura por trabalho, mas fui interrompido pelo mesmo gesto vindo delas que também se levantaram para sair.
E Pelo jeito que o sinhô tá dizendo, a essa altura já era paixão que o sinhô tinha no peito. È seu Juca! È verdade! Era uma grande paixão. A paixão de um menino que não sabia que naquele dia começavam seus maiores problemas. Mais porque? Ela num correspondeu? Correspondeu sim seu Juca! Correspondeu sim. Mais então?... Então? André disse olhando para o horizonte. Amanhã a gente continua a conversa porque já está ficando tarde e é hora é de se recolher. Seu João arruma lugar pro seu Juca dormir, mostra pra ele onde pode tomar um banho e depois vamos jantar. Naquele final de tarde enquanto fomos até o córrego para tomar um bom banho, curioso tentei por duas vezes, conseguir alguma informação de Seu João Cavaco sobre o desenrolar da história, mas tudo que consegui foi a afirmação de que o que fosse pra mim saber ia ser contado pelo Seu André. Fomos até o córrego tomamos o banho e voltamos pra casa onde aguardamos a dona Gerônima chamar para a janta. Enquanto aguardava observei que na casa principal havia bem pouco movimento. Era como se todos já tivessem se recolhido. Pensei em perguntar o porquê, mas depois da resposta que havia recebido lá no córrego achei melhor guardar minha curiosidade. Depois da janta fiquei na expectativa de me encontrar com o patrão, mas pra minha decepção ele não apareceu para continuar a conversa e assim não tardei muito para ir deitar. Já deitado na cama que foi arrumada, comecei a pensar na história que Seu André estava me contando e, tentei imaginar como ela seguia, mas logo veio a lembrança de meu trabalho e a preocupação que eu causaria aos peões se não voltasse logo. Comecei a pensar, mas antes que conseguisse chegar a qualquer conclusão acabei pegando no sono e dormi. No dia seguinte quando acordei o Seu João Cavaco já estava no pasto buscando as vacas para tirar o leite como ele sempre fazia. Não demorou muito e pude escutar sua voz firme falando com o gado que para ir para o curral passava por um trieiro ao lado da casa onde dormi naquela noite. Como sempre foi de meu costume, levantei e fui até a bica d´agua para lavar o rosto e depois segui também para o curral pra ajudar na tiração do leite. Ao chegar ao curral ainda com escuro, pude ver o vulto do Seu João e sem demora o cumprimentei. Bom dia Seu João! Bom dia Seu Juca! Como passou a noite? Muito bem! Apesar da preocupação, eu estava cansado e peguei no sono logo. Tá preocupado porque Seu Juca? O serviço num tá atrasado! É verdade Seu João, mas serviço quanto antes agente terminar é melhor. Isso lá é! Mas no ritmo que tá ino vai acabá bem de pressa. Continuamos aquela conversa por um bom tempo nos intervalos entre uma vaca e outra até que fomos interrompidos pela chagada do Seu André que como era de costume trazia com ele sua filha Joana, acompanhados pelos primeiros raios de sol que já havia apontado no horizonte. Seu André chegou e depois de nos cumprimentar manteve a rotina que era bastante conhecida por seu funcionário de confiança. Por conhecer tão bem seu patrão, terminou de tirar o leite daquela vaca que estava tirando, e imediatamente soltou o bezerro da mocinha, a vaca da qual ele sempre bebia o leite tirado na hora. Com maestria seu João Cavaco esperou o tempo certo para o bezerro mamar e, assim que o pojo desceu, já com a vaca amarrada, amarrou o danado do bezerro na mão direita de sua mãe, permitindo assim que o leite pudesse ser tirado. Seu André se aproximou da vaca com os dois canecos e sem muito entusiasmo, encheu os dois com o leite quente que ele e sua filha faziam tanta questão de beber todos os dias. Mais tarde, depois de todos os afazeres estarem realizados, enquanto eu, Tonho Cavaco e o seu André esperava o seu João tocar os bois, percebi que ele estava novamente preocupado, e acreditando que talvez ele não estivesse muito determinado a continuar a história, curioso perguntei: Quer dizer então que o sinhô tava apaxonado pela francezinha? Ele demorou um pouco para responder, e antes de fazer isso pediu ao Tonho que fosse ajudar seu pai. É... É verdade seu Juca... Uma paixão daquelas que agente num sabe o que fazer! Nesse momento fomos interrompidos por uma enorme e gostosa gargalhada de Tonho Cavaco que apontando para seu André falou antes de sair rindo: Ele fico paxonado!... Seu André fico paxonado!... Observamos aquela cena engraçada e meio embaraçosa por alguns segundos e logo que ele se afastou, pudemos voltar à nossa conversa. Vamos sentar no banco de frente ao galpão pra gente continuar a conversa enquanto o Cavaco busca os bois! Seu André disse isso e pegando em meu braço me encaminhou naquela direção já voltando ao assunto principal. Ontem o senhor me perguntou se ela não havia correspondido e eu respondi que sim e o senhor não entendeu! Pois bem seu Juca, ela correspondeu e isso é que é o pior porque ali estavam começando meus verdadeiros problemas. Mais porque? Nada melhor que um amor correspondido! Se ele fosse um amor verdadeiro o senhor estaria certo, mas... Infelizmente não era... Josefine, se já não bastasse ser possuidora de um corpo muito bonito, de um par de olhos que mais pareciam bólitas azuis, possuía também mais duas coisas que me deixaram absolutamente louco por ela. Uma voz meiga e um sotaque francês muito gostoso que conheci ainda naquela noite quando ao terminarem seu jantar e saírem em direção ao corredor que dava acesso tanto aos quartos como também à porta da rua, pararam próximo a minha mesa onde havia permanecido esperando falar com D Chica. Depois de me cumprimentarem, trocaram algumas palavras comigo que já estava de pé para também sair. Antes de se levantarem da mesa Dona Diná num gesto feito com um dos braços indicou para Josefine o caminho que deveria fazer. Esse caminho, eu não sabia por que, passava justamente ao lado da mesa onde estávamos sentados eu e outro senhor que também se hospedava na pensão há dois dias e que iria embora no dia seguinte. Ao aproximarem de nossa mesa, dona Diná segurou a menina pelo braço fazendo com que ela se voltasse para nossa direção e gentilmente nos cumprimentou agora com palavras, fazendo com que Josefine também fizesse o mesmo. Novamente fiquei paralisado diante daquela maravilhosa menina que depois de dizer boa noite, virou-se para mim e disse. Miciê! Como está quente essa noite, non? Acrredito que nada melhor agorra, que sentar-se lá forra, pra sentir o vento bater no rosto, nom meciê? Aquelas palavras soaram como um convite, que insistia em não desaparecer de minha mente e nem de meu coração. Ela e dona Diná disseram mais algumas poucas palavras e saíram na direção que haviam se proposto. Por algum tempo fiquei ali ainda sem entender bem o que estava acontecendo até que o senhor que estava na mesa comigo falou algo no sentido de confirmar que aquela aproximação possuía uma intenção clara de chamar minha atenção. Antes que pudesse continuar, André foi interrompido por João Cavaco. Patrão, eu já terminei de canga os boi e já passei azeite no eixo do carro! Se o seu Juca quiser já pode segui viagem! Como está sua programação de hoje seu João? Tem muita coisa patrão! Se não tivesse nos dois ia acompanhar o Juca pro retiro! Amanhã tem pouco o que faze! Então vamos fazer o seguinte seu Juca! Eu mando o Tonho ir ao retiro avisar a pionada e o senhor fica mais hoje por aqui! Oh seu André, eu sinto muito mais... Não se preocupe seu Juca, é ate bom dar um descanso pros peão para eles ficar mais animados! Vendo a insistência de André e curioso por aquela parte da história, Juca consentiu. Depois de dar as ordens para João Cavaco para descangar os bois e fazer isso novamente no outro dia muito cedo, André continuou. Depois que aquele moço me disse aquilo, fiquei meio sem graça e então comecei a voltar à realidade e perceber que não era só eu que havia notado tal atitude. Na mesa ao lado alguém também olhava e sorria com ar de confirmação e incentivo, enquanto que de pé no fundo do refeitório, dona Chica que recolhia os pratos de uma mesa, também me olhava como se estivesse tentando adivinhar as intenções contidas naquelas cenas. O olhar dela porem, me soou como um alerta e ao contrário do que todos esperavam, ao sair não fui em direção à porta da rua, mas sim, na direção da porta de meu quarto. Deitado em minha cama por várias vezes tentei descobrir, uma maneira de agir para conseguir arrumar o trabalho que era tão importante, mas todas as minhas tentativas foram destruídas pela imagem de Josefine. Eu tinha quase certeza que ela estava me olhando com interesse durante o jantar, o que de qualquer maneira não era o mais importante, já que seus olhares perderam para suas palavras. O que me preocupava, era o fato de que mesmo tendo ainda uma boa parte do dinheiro que me havia sido dado por minha mãe, sem trabalho ele sumiria rápido e ai, alem de não ter como sobreviver caso isso acontecesse, não teria também como levar de volta para minha mãe o dinheiro multiplicado como eu havia prometido. Aquela noite foi bastante tumultuada para mim, pois alem da imagem daquela maravilhosa menina que insistia em povoar minha mente, em um ou dois momentos, tive a impressão de que alguém andava pelo corredor, e ao passar pela porta de meu quarto parava por alguns instantes. Fiquei um pouco preocupado, mas como ninguém havia me alertado sobre qualquer risco naquela pensão, entendi aquela impressão como se não fosse algo muito importante e logo dormi tranquilamente.
O novo dia nasceu e como sempre eu fazia, levantei muito cedo, e ao sentar na beira da cama para fazer minhas orações, fiquei distraído a ponto de errar o Pai Nosso por três vezes seguidas. Naquela hora pensei que pudesse ser um sinal de azar, mas tomado pela euforia dos acontecimentos do final da tarde anterior, acabei por mais uma vez não dar importância aos avisos que estavam sendo dados. Aprontei para sair, e quando já estava do lado de fora do quarto, não sei por que, me veio na mente a imagem muito forte daquele pequeno, mais importante pacote de dinheiro que minha mãe havia me dado e, que eu sempre guardava debaixo do forro do fundo de meu alforje. Parei e pensei por um momento, mas não dei importância, e sem muita demora fui até o refeitório tomar o gostoso e forte café da dona Chica, para só depois, quando já era mais ou menos seis e meia da manhã sair para mais um dia de procura de trabalho. Naquele dia tudo que tentei fazer no sentido de ter um bom aproveitamento foi em vão. Enquanto andava pela cidade, sem que eu percebesse, aquele que era meu principal objetivo tinha ficado em segundo plano e, quando me dei conta disso o dia já estava quase no fim. Se por um lado o fim do dia representava mais um fracasso quanto a emprego, e isso me decepcionava muito, por outro me trazia a proximidade do tão esperado reencontro com aquela garota que tanto havia mexido comigo. Ao decidir retornar para a pensão, grande parte de meu caminho foi percorrido despercebidamente já que na minha frente apenas a imagem dela existia. Toda aquela euforia não me deixou pensar em como deveria agir quando a reencontrasse novamente, por isso, ao me aproximar da pensão comecei a imaginar o que deveria fazer. Confesso que tive muitos pensamentos diferentes e que nenhum deles me parecia ser o melhor, e resolvi deixar que as coisas acontecessem conforme o destino encaminhasse. Assim eu fiz, e chegando a rua da pensão, carregado de ansiedade, foi natural que meus olhos buscassem a imagem dela em todas as mesas que estavam colocadas na calçada. Foi inútil minha busca, pois ela não estava lá como eu havia imaginado. Um pouco sem graça por achar que as pessoas notariam minha decepção, passei pela calçada um pouco rápido, e entrei no corredor. Dentro daquele corredor não muito largo, foi inevitável que minha curiosidade me levasse a busca de qualquer sinal de que ela estava em seu quarto e a curiosidade fez com que eu passasse diante da porta do quarto delas com os ouvidos tão abertos e a atenção tão voltada para o que acontecia lá dentro que, mesmo que não houvesse ali um barulho, eu ouviria como ouvi a voz dela perguntando a sua companheira se o vestido escolhido estava bom pra ocasião. Naquele momento é que fiquei sabendo que não se tratava de mãe e filha, mas sim de madrinha e afilhada, condição que foi revelada pela frase “Estou bonita com este vestido madrinha?”. Certo de que aquela maravilhosa garota ainda estava na pensão, não restava a mim, nada alem de ir para meu quarto tomar um bom banho, colocar uma boa roupa e naturalmente não esquecer o perfume que comprei logo que cheguei, mas, que ainda não havia usado. Na verdade, aquela era a primeira vez que eu usava um perfume em toda a minha vida, já que vivendo com meus pais no Sitio Solidão, esses luxos nunca existiram. O tempo gasto para realizar as tarefas a que me propus foi bastante curto, o que permitiu que antes mesmo que a duas saíssem de seu quarto, eu já estava sentado em uma mesa do refeitório aguardando a hora de ser servido pela dona Chica. Poucos minutos se passaram e como era o costume da pensão, dona Chica trazia um prato feito a sua maneira e colocava na mesa para cada hospede. Ela chegou com o prato e não perdeu tempo para mesmo antes de colocar ele na mesa, fazer a pergunta que já era tradicional entre nós naqueles dias em que eu estava morando com ela. E então fio? Arrumou arguma coisa hoje? Não dona Chica eu não consegui nada! Respondi pra ela com uma tristeza que não estava muito aparente e que era disfarçada por minha expectativa. Ela por sua vez parecia que fazia aquela pergunta apenas para não deixar que eu pensasse que ela não dava importância para o assunto, mas provavelmente, ela já não guardava nenhuma esperança de que eu encontrasse algum trabalho que não fosse nas fazendas. Esperta como ela era não deixou de notar que meu comportamento estava diferente naquele final de dia, e seu comentário veio a mim com imensa naturalidade: É muito boa essa água de chero que oce ta usano! É inté capaiz de oce consegui o que ta quereno desse jeito! O minino ta bunito, ta cheroso, mais num esqueci do que te falei onte! Ela estava se referindo aos conselhos que tinha me dado no dia anterior e que eu havia esquecido diante da imagem da formosa Josefine. Pouco tempo depois que dona Chica deixou minha mesa para ir servir outros hospedes, a cena que eu tanto esperava aconteceu. Pela porta de entrada para o refeitório entraram aquelas duas mulheres que estavam mudando toda a rotina da pensão “Boa Viagem”. Diferente do dia anterior quando ao entrar as duas cumprimentaram a todos de maneira igual, naquele inicio de noite não sei se por verdade ou por força de minha imaginação, tive impressão de que Josefine cumprimentou apenas a mim, deixando os poucos hospedes que se encontravam no refeitório acreditando que ela tinha algo contra eles. Respondi a seu cumprimento meio sem graça e continuei fazendo o que tinha ido fazer ali. Logo que terminei de jantar, ainda me sentindo um pouco sem jeito, levantei da mesa e com um simples olhar deixei parecer que estaria e sua espera. Naquele momento tive a impressão que o recado foi bem entendido. Sai daquele local e me encaminhei para a porta da rua, a fim de sentar em uma das cadeiras pra pegar a fresca daquele inicio de noite. Não demorou muito e pra lá vieram, dona Diná e Josefine, alem de outros hospedes que eram acostumados com aquele sistema de sentar nas cadeiras colocadas nas calçadas em frente à pensão para fazerem o quilo da janta. Quando elas chegaram, no inicio foi criado um silencio sem explicação que transformou o ambiente numa espécie de igreja enquanto aguarda o inicio da missa, mas pouco a pouco as pessoas foram ficando mais tranqüilas e as conversas começaram a acontecer por iniciativa de dona Diná. Neste ambiente eu acabei por me sentir a vontade até certo ponto, pois bastava eu olhar para Josefine, e uma ansiedade, aliada a um aperto no peito me dominava e me deixava sem saber que rumo tomar. Dentro deste clima de ansiedade e insegurança no qual eu estava mergulhado, durante o tempo em que permaneci ali, apenas uma vez houve algum contato entre eu e Josefine. Isto aconteceu no momento em que ela tomou a iniciativa e num gesto ousado virou-se para mim e perguntou com seu estranho sotaque. Miciê não é casado, é? Eu não tinha a menor idéia de como responder já que, eu nem mesmo entendi direito a pergunta e nem sabia se era feita pra mim ou não. Antes que eu respondesse, se é que conseguiria, Dona Diná olhou firme para a menina e num tom de voz firme porem, acompanhado de certa meiguice, falou: Josefine! Isso é pergunta que se faça? Nada mais foi dito em relação aquele assunto, e ali foi criada uma situação onde nenhum dos presentes seria doido de insistir, uns por não querer entrar na conversa, outros por achar que a garota havia sido indiscreta. Foi o caso de dona Dina. Eu apesar da situação sem graça que fiquei entendi aquela pergunta como sendo um sinal claro de que eu podia ir em frente e buscar uma maior aproximação. Algum tempo depois me levantei para ir para meu quarto, e sentindo que havia a oportunidade de conseguir o que eu queria, ao dar boa noite fiz questão de dizer pra onde estava indo. Acredito que pouco a pouco cada um foi se levantando para também irem dormir, e não passava das oito horas da noite já não se ouvia nenhum resto da conversa que antes existia. Ao entrar em meu quarto apenas um pensamento passava por minha cabeça, como eu iria fazer para me aproximar daquela menina que com certeza deixava claro que existia uma possibilidade. Fiquei matutando sobre o assunto até muito tarde da noite, e quanto mais meu pensamento criava rosca na cabeça, menos eu achava a melhor solução. Em meus pensamentos, resolver aquela situação não era tarefa fácil, já que eu imaginava tratar da aproximação com uma menina que possuía uma imagem de total pureza, apesar das suas atitudes. Depois de muito pensar, sem nem mesmo fazer minhas orações, acabei pegando no sono para ser acordado mais ou menos uma hora depois com alguém batendo na porta de meu quarto. Acordei assustado e meio confuso por se tratava de uma batida tão baixa que quase não se ouvia. Esperei um pouco para me certificar que a batida vinha mesmo da minha porta ou se não seria da porta de um dos outros quartos e a dúvida acabou quando pela terceira ou quarta vez, alguém insistiu em bater. Era mesmo no meu quarto, e ao me certificar disso, fiquei indeciso quanto ao jeito de agir e por isso demorei ainda uns 20 ou 30 segundos para só então caminhar com cuidado até a porta. Quando me aproximei da porta, meio com medo, perguntei quem estava batendo, mas a pessoa do outro lado ficou em silencio. Isso me assustou ainda mais e me fez repetir a pergunta que só foi respondida depois da terceira vez em que perguntei. Para minha mais absoluta e inesperada surpresa, com aquela voz deliciosa e aquele sotaque inconfundível, do outro lado da porta houve o esforço no sentido de emitir uma resposta, mas o som que saiu foi apenas um Miciê !... Depois de contar esta parte da história, André ficou um pouco distante o que provocou um grande silêncio, reação natural em quem se lembra de algo importante, mais Juca interferiu dizendo. Então a mocinha foi tupetuda o suficiente pra procura o senhor na porta de seu quarto? Não só pra me procurar na porta do quarto, mas também para assim que eu abri a porta, entrar pra dentro! Nossa senhora! A menina tava apaixonada pelo senhor seu André? É seu Juca!... E acreditar que ela estava apaixonada por mim foi o meu primeiro grande erro dos vários que cometi nesta história! Erro? Mais como que uma moça que resolve ir até o quarto de alguém num ta apaixonada por esse alguém? Eu não consigo entender! Mais nesse caso ela deve ter falado o que ela queria e voltado rápido pro quarto pra sua madrinha não desconfia, não é? Não!... Ela entrou e nem mesmo me pediu pra ficar, pois ela empurrou a porta, e antes que eu pudesse falar qualquer coisa, com o dedo na boca fazendo sinal pra eu ficar calado, ela se aproximou de mim e me deu um beijo daqueles... Jesus, Maria e José! E como que ficou essa situação? Muito complicada seu Juca! Muito complicada. A situação ficou sem controle e quando me dei por conta, e recobrei a consciência, eu e ela já estávamos totalmente nus abraçados sobre a minha cama depois de ter feito amor.... André era homem discreto e mesmo já tendo confiança em Juca, contou a história superficialmente, omitindo os detalhes. Juca não ficou sabendo que depois de entrar no quarto e sem nada falar, Josefine deu um grande e apaixonado beijo em André que o deixou totalmente sem ação. Ele não esperava sequer a presença dela naquele quarto, quanto mais o beijo. Depois de beijá-lo, com a mesma voz sensual e meiga, ela se afastou um pouco enquanto ele continuava com as costas pregadas na porta. Depois de afastar lentamente por aproximadamente um metro, ela que ainda estava dentro de seu vestido azul reto e com alças finas que caíram, primeiro à esquerda e depois à direita deixando cair o vestido e mostrando a André seu corpo lindo e sua pele branca e macia coberta apenas pela calcinha. Ao ter aquela visão inédita, a curiosidade e o desejo brigaram dentro dele sem chegar a uma conclusão de qual era maior. Por um bom tempo ele permaneceu ali observando enquanto suas reações não inéditas, mas nunca antes tão intensas provocavam estranheza e confusão total em seu coração. Ele se aproximou dela como se estivesse próximo a tocar uma jóia jamais imaginada, e numa reação natural ergueu sua mão esquerda para pegar nos seios dela. Depois de conseguir isto, com a certeza de que iam se amar, sem ter habilidade no assunto, o instinto fez com que ele a abraçasse e lentamente a levasse para a cama. Deitados naquela cama de pensão, nus e cheios de desejo, aquela menina linda com um corpo delicioso e que até aquele momento parecia muito ingênua, não teve nenhuma dificuldade para encaminhar a situação de forma a permitir que eles se amassem de uma maneira que ele jamais imaginou que pudesse. Nós dormimos juntos naquela noite e ela só voltou pro seu quarto quando o dia já estava amanhecendo. Durante a noite que passamos juntos eu me senti como se fosse um rei adorado por sua rainha e, mesmo que o mundo inteiro me dissesse o contrário, nada me afastaria daquela menina que eu acreditava estar virando mulher em meus braços. Quando ela foi sair do quarto, duas coisas me preocupavam. A primeira era a chegada dela no quarto de dona Diná, já que essa podia acordar e causar um grande tumulto. A segunda, como eu deveria enfrentar aquela situação dali em diante. Eu não sei bem como explicar o que estava sentindo, pois se por um lado, eu estava tão feliz que era capaz de fazer qualquer coisa pra deixar Josefine satisfeita, por outro lado alguma coisa me dizia que aquele relacionamento não tinha muita chance de dar certo. Naquele momento, lembrei das palavras de dona Chica quando me dizia que ela era de outro mundo, e quando me disse que aquele que colhe a rosa tem que suportar os espinhos. De qualquer maneira, o que estava feito estava feito, e sabendo que de uma forma ou de outra eu não podia fazer muita coisa, resolvi deixar de lado a preocupação e tentar saborear aquele momento que eu acreditava que seria o primeiro de muitos outros.
André e seu Juca se envolveram tanto com aquela história, que nem perceberam o quanto o dia passou rápido. Já estava no final da tarde e para os dois era como se eles não precisassem parar para comer ou mesmo beber água, mas precisavam sim, e o fizeram durante o dia de maneira tão automática que nem notaram. Querendo ou não já estava no final da tarde e alguma providencia deveria ser tomada no sentido de interromper a conversa porem, sem sentir essa necessidade, ambos tentaram fingir que dava pra continuarem, e interessado na história, Juca voltou a puxar o assunto. O senhor disse que achava que o relacionamento não tinha muita chance de dar certo! Porque que o senhor pensava assim? Eu não só pensava! Eu sentia! Sentia que não existiam muitas coisas a nosso favor. Eu era um rapaz sem experiência da vida, pobre e sem estudo, enquanto que ela era moça fina, cheia de dengos e que eu imaginava ter muito dinheiro, já que até aquele momento eu tinha poucas informações a respeito dela e me baseava na qualidade das roupas que as duas vestiam. Em que uma relação assim pode se apegar? No amor? Eu nem sabia o que era amor! Eu apenas sentia aquela vontade de dar pulos, de sair correndo e de gritar quando passava por ela, e sentia aquele aperto no peito nos momentos que ela estava longe. Além disso, eu imaginava que ela estava ali acompanhada por sua madrinha apenas a espera de alguém importante como o pai ou um rico parente que as levaria para alguma fazenda nas redondezas. Na minha cabeça ter qualquer relacionamento com aquela menina não passava de um ato de irresponsabilidade de nossa parte, que duraria apenas pelo tempo que esse pai ou parente rico, demorasse para vir buscar as duas e, mesmo assim eu não fui capaz de evitar algo tão forte quanto eu jamais tinha sentido. Nesse momento André que estava contando a história meio resumidamente, entendeu o motivo da diminuição de sua empolgação. Era o fim de tarde e aquela sensação que ele odiava sentir havia voltado. Era o medo que ele sentia todos os finais de tarde e que parece que vinha com o objetivo único de lembrar que sua vida não podia ser um mar de rosas. Assim sendo ele chamou seu Juca para que fossem cuidar de tomar o banho do fim do dia para depois então jantarem. Juca concordou, mas lembrou ao patrão que no outro dia teria que se levantar bastante cedo para levar o carro de bois até o local da empreita. André ao ser relembrado lamentou o fato e disse apenas que se não desse para continuar na próxima manhã, a conversa continuaria num outro dia a ser combinado entre eles. Depois de cada um ter feito suas obrigações e tomado seu banho, todos se encontraram na sala para o jantar. Enquanto jantavam, de maneira meio automática André perguntou a Juca se estava gostando da história e isso provocou um clima de surpresa em Luzia que, por algum tempo, olhou meio confusa para o marido como se estivesse tentando confirmar se o que ele dizia tratava-se mesmo do que ela pensava. André desviou seu olhar por alguns instantes da comida e também olhou para Luzia num gesto de confirmação que veio acompanhado de uma breve explicação. Sem nenhum constrangimento e ou medo, ele voltou seu olhar para os filhos e falou serenamente: Eu estou contando nossa história para o seu Juca, minha amada! Luzia continuou olhando para o marido agora como se indagasse se aquela era a melhor decisão, já que eles conheciam o Juca à tão pouco tempo, e não tinham nenhuma certeza a seu respeito. Desta vez, porem não recebeu resposta apenas o silencio e um leve sorriso de André, que entre eles dizia tudo o que o outro queria saber. O jantar transcorreu normalmente e como sempre faziam, logo após todos foram para a varanda da casa a fim de fazer o famoso kilo da janta. Durante aquele período poucas palavras foram trocadas e, quando elas começaram a surgir, foram usadas para as despedidas e a confirmação de que já era hora de dormir. Antes que todos fossem cada qual para sua cama, André que estava observando o pouco da paisagem que podia ser vista na escuridão que se formava, pediu pra Luzia que mandasse arrumar alguma matula pra ele e pro seu João Cavaco, pois eles passariam o dia seguinte no local onde Juca estava construindo o retiro novo. Naquela noite ao irem se deitar, André chegou a conclusão que a parte da história que estava contando era um pouco complicada para ser dita, pois tratava-se da intimidade que ele havia tido com Josefine. Depois de avaliar um pouco ele chegou a conclusão que realmente não deveria falar sobre aquele assunto por dois motivos básicos. O primeiro era a própria vergonha que sentiria de comentar sobre sua intimidade com quem quer que fosse. O segundo era a necessidade de tomar cuidados para que sua esposa não ouvisse nada que poderia vir a magoá-la. Luzia sabia de sua história, pois ele já havia lhe contado e sabendo da capacidade dela em perceber tudo a sua volta era melhor não arriscar muito. Ciente disso ele sábia que não contaria pro Juca os detalhes daquela parte da história e, ao relembrar o que tinha contado durante o dia, mais agora observando os detalhes, foi impossível não sentir saudades daqueles momentos de intimidade que jamais sairiam de sua mente. Já deitados, mesmo amando sua esposa como amava, depois de se despedir de Luzia com uma boa quantia de beijos, ele se virou na cama olhando para o teto e as imagens de seu romance começaram a voltar. Seria impossível esquecer as emoções vividas naqueles momentos que, alem de maravilhosos, eram inéditos em sua vida. Ele tinha tido a dupla felicidade de conquistar aquela garota maravilhosa e ao mesmo tempo ter tido sua primeira experiência sexual. Com a vinda das lembranças, ele pode sentir novamente o gosto daquela boca incrível, o calor daquele corpo possuidor de formas absolutamente perfeitas, a respiração ofegante causada pela surpresa que crescia a cada vez que podia ver mais um pedaço do corpo dela, a tentativa de salivar e molhar a boca seca pela emoção, a sensação gostosa de tê-la dentro de seus braços, os arrepios causados pelo tato quando seus dedos suavemente sentiram a curva acentuada de suas nádegas e a respiração acelerada que ela apresentava quando beijava sua orelha... Totalmente envolvido nestas lembranças ele adormeceu tranqüilamente até que de repente, toda a movimentação causada pelos pesadelos de todas as noites, recomeçou trazendo a horrível sensação de não saber se estava acordado ou não e, assim depois de mais uma noite tumultuada, o dia chegou, e após realizarem a rotina do inicio da manhã, e repetirem o ritual usado em todas as saídas da área de proteção da casa, os três homens estavam em plena caminhada rumo ao retiro. Diferente da outra vez em que fizeram aquele caminho, desta vez André e João Cavaco iam a cavalo enquanto que Juca do alto do carro-de-boi comandava os dez bois carreiros que o puxavam. Devido à diferença no meio de transporte entre eles, houve certa dificuldade para que a conversa fosse mantida, mas, mesmo assim, em um volume mais alto eles conseguiam se comunicar. A distancia que precisava ser mantida entre os cavalos e o carro-de-boi obrigava que eles agora falassem quase gritando e, foi nessa condição que Juca olhando para André comentou. Parece que a dona Luzia num gosto muito do senhor ta me contando a história, não é verdade? É... Ela é muito cuidadosa ... Ela sempre pensa muitas vezes antes de confiar em uma pessoa! E porque tanto cuidado assim?... Existe motivo pra isso? Motivo é o que não falta! Ela tem todos os motivos pra não confiar em ninguém, mas isso a gente fala depois! O senhor é que sabe! Respondeu Juca, esperando que André continuasse a história de onde tinha parado. Isso não aconteceu, pois consciente que não falaria de sua intimidade, iria começar o assunto em um ponto diferente e depois da chegada no novo retiro para que ficasse mais fácil a conversa. Ao chegarem, Juca, André e João Cavaco conversaram por um bom tempo com os peões que haviam ficado terminando de tirar a madeira. Como Juca havia previsto, o dia anterior foi de descanso para os peões devido ao fato de terem terminado muito cedo o serviço. Os peões não ter como continuar o trabalho pela falta do carro-de-boi, foi um fato que não fez Juca se lamentar, pois ele achava que os peões mereciam o descanso por estarem com o serviço adiantado. Só depois de Juca dar as ordens necessárias aos ajudantes que retomaram o serviço agora na companhia de João Cavaco, é que Juca e André puderam sentar a sombra de uma arvore para continuarem a conversa que recomeçou com o seguinte comentário de Juca. Se o senho achava que num ia dar certo o relacionamento com a menina, porque que aceitou ela na sua cama? Porque era impossível não aceitar seu Juca!... Tenho certeza que nem um homem na face da terra seria capaz de passar por perto dela e não sentir nada, principalmente se soubesse que ela estava disposta a ter esse relacionamento com ele. Isso eu posso garantir seu Juca! Nenhum homem no mundo ia conseguir olhar praquela danadinha e fazer de conta que não queria ela! Nenhum homem! De qualquer maneira, acreditando ou não naquele relacionamento, o fato é que eu e ela tínhamos chegado numa situação onde não tinha mais volta e tudo que eu podia fazer era assumir a responsabilidade do acontecido quando tudo fosse descoberto. Aquele dia quando ela saiu de meu quarto, por alguns instantes fiquei com a atenção voltada para o que podia acontecer na chegada dela no quarto de dona Diná. Achei que ela podia ser descoberta logo e isso causaria uma reação na Madrinha dela que podia ser muito ruim, e por isso fiquei muito atento escutando tudo. Depois de certo tempo prestando atenção e sem nada ouvir, conclui que estava tudo bem e que ninguém estava sabendo do acontecido. O fato de que aquela situação era segredo, não mudava os meus sentimentos, e assim sendo ao me arrumar para sair naquela manhã à procura por trabalho, eu tinha na cabeça e no coração mais uma preocupação para fazer companhia pras que existiam. Eu sabia que minha responsabilidade com aquele ato era muito grande, e isso se tornou ainda maior quando ao entrar na cozinha pra tomar meu café, dona Chica depois de me servir afirmou de maneira direta mais com certo carinho e orgulho. Ta preparado pra enfrenta os ispinho? Sem entender direito, mas tendo uma idéia sobre o que ela estava falando, assustado, fique algum tempo sem falar nada até que perguntei por que ela estava fazendo aquela pergunta. Novamente sem nenhum rodeio e de maneira bem direta ela falou: Oce panho a rosa, e agora vai ter que enfrenta os espinho! E eu acho que essa roseira é das bem ispinhuda! Ela terminou de falar e como era de seu costume deu continuidade a seu trabalho antes mesmo que eu pudesse pensar direito no que ela estava me dizendo. Depois de tomar o café, como sempre eu fazia voltava a meu quarto para dar uma olhada se eu tinha deixado tudo arrumado e, principalmente para certificar que o dinheiro emprestado por meus pais estava no mesmo lugar que deixei. Feito isso, sai pra rua caminhado normalmente, porem naquela manhã havia uma diferença significativa dos outros dias. Naquele dia eu sai sem nenhum plano pra seguir, pois minha cabeça estava ocupada demais para ainda caber outra preocupação. Andei bastante durante o dia e enquanto andava fazia os planos para o futuro que gostaria de ter com Josefine. Mesmo que eu não acreditasse naquilo, e não acreditava, a simples hipótese de viver com ela me animava alem do normal e, dessa maneira pensei no quanto seria bom poder viver com uma garota tão bonita quanto ela e o que seria necessário fazer para que nosso relacionamento desse certo. Nesta hora, em meio a minha euforia, fui tomado por uma imensa preocupação. Imaginei que não deveria ser nada fácil agradar uma garota acostumada ao luxo e a total satisfação de seus desejos. Fiquei desesperado principalmente com a parte da satisfação dos desejos relacionados a questões de alimentação, vestuário, enfim sobrevivência de uma maneira geral. Depois de muito pensar sobre o assunto, parei e sentei numa calçada meio descabriado por chegar à conclusão de que minhas preocupações com a diferença de modo de vida eram muito maiores do que eu imaginava. Eu sabia que aquele relacionamento dificilmente vingaria, e mesmo tendo essa certeza, não conseguia conter a euforia que tomava conta de mim pelos acontecimentos da noite passada. Apesar da euforia, eu sabia que ao chegar à pensão, tudo poderia ser diferente do eu estava imaginando. Ela poderia nem querer falar comigo ou talvez até mesmo me denunciar para a policia. Naquela época isso resolvia a questão, porque ai eu seria obrigado a me casar com ela. Sem ter certeza de nada o resto de minha caminhada foi acompanhado por esses pensamentos. O certo é que o dia foi marcado por duas sensações muito diferentes. Numa, meu peito quase se arrebentava de dor por saber que aquela menina provavelmente nunca poderia ser minha mulher para sempre, e na outra, o mesmo peito parecia que ia explodir de tanta alegria. A historia ficava ainda pior quando as duas sensações se juntavam, ai então eu não entendia o que sentia, e perdia o controle emocional. Foi nessa enorme confusão que eu voltei para a pensão de maneira meio automática e, só fui perceber que estava chegando quando entrei na Rua General Ozório e me dei conta que em poucos minutos estaria revendo aquela garota maravilhosa. A idéia de reencontrar com ela veio meio de repente e me deu um belo susto por eu não ter a menor idéia de como agir diante dela. Eu não sabia se nesse encontro eu morreria de vergonha e tentaria nem mesmo olhar pra ela, o que poderia deixar ela sem graça e confusa, ou se ela é quem teria a atitude de se sentir envergonhada e nem mesmo me olhar. Pensei por um instante e imaginei o que aconteceria caso isso acontecesse. E se fosse diante das pessoas, o que eu poderia fazer pra dizer a ela que estava tudo bem? Como dizer a ela que independente dela ter sido um pouco avançada, aquilo não me importava? Como explicar que alem de eu adorar a atitude dela, não teria nenhuma dificuldade em enfrentar tudo a seu lado? Eu precisava tentar passar essas informações pra que ela pudesse se sentir tranqüila, mas isso seria muito difícil e minha preocupação era exatamente pelo fato de eu acreditar que ao vê-la estaríamos sim diante de outras pessoas. Passado o susto inicial pelo reencontro que eu acreditava que aconteceria dentro de poucos minutos, minha cabeça se ocupou em tentar antecipar a ação da minha chegada, e imaginei que talvez eu tivesse sorte o bastante para quando chegar na pensão as duas, Josefine e dona Diná, estarem em seu quarto, o que me permitiria poder entrar e só mais tarde enfrentá-las. Não sei se por destino ou por pura sorte foi exatamente o que aconteceu. Quando me aproximei da pensão, sentados nas mesas colocadas na calçada estavam apenas alguns hospedes já conhecidos, e um senhor que eu ainda não tinha visto, mas que segundo o que dona Chica me falou mais tarde, já era bastante conhecido de todos que costumavam freqüentar a “Boa Viagem”.
Algo porem me chamou a atenção naquele senhor. Tive a nítida impressão que já o conhecia porem a minha ansiedade não me permitiu dar a atenção devida ao assunto. Ao entrar cumprimentei as pessoas de maneira bastante rápida, passando em seguida pela porta de entrada da pensão e indo diretamente a meu quarto. Fiquei lá ate mais tarde e mantive minha rotina, mas nesse dia meu desejo de sair do quarto e ir para o refeitório parecia ter diminuído, e só fui jantar mais ou menos pelas sete horas, meia hora mais tarde que o normal. Antes de chegar ao refeitório, pensei que desta vez não teria escapatória e o encontro com D. Diná que ao mesmo tempo era desejado e temido, iria acontecer com certeza. Entrei no salão e para minha surpresa as figuras que eu esperava encontrar não estavam lá. Fiquei meio confuso e sem perceber, meu olhar correu todo o salão e suas muitas mesas e, a procura foi em vão já que lá, assim como na chegada da rua, também não estava a presença marcante daquelas mulheres. Dona Chica, que era pessoa muito observadora, não deixou de notar minha ansiedade, tanto que, ao vir me servir tirou um tempinho para sentar comigo e trocar algumas palavras. Com a maneira direta e sincera de falar que ela tinha, ao sentar disfarçou para não me assustar e iniciou a conversa com a já tradicional pergunta. E então fio... Como é que foi o dia hoje... Arrumo argum trabaio? Na verdade hoje foi bem pior que nos outros dias dona Chica! Eu andei, andei e parece que não sai do lugar! É... Mais é difici mesmo ir pra outro lugá e num leva a própria cabeça num é? Naquele momento percebi o porquê dela ter sentado em minha mesa pra conversar. Aquilo não era nem um pouco comum naqueles muitos dias que eu estava hospedado ali. Dona Chica em sua sabedoria parecia que tinha percebido alguma coisa muito importante e perigosa e estava tentando de toda maneira me proteger da falta de experiência em achar tudo tão inocente mais que cheirava a coisa ruim. Eu por minha vez acreditava que tudo estava normal e a única coisa que me preocupava era o reencontro que ainda não tinha acontecido. Por isso, minha atenção não estava cem por cento nas palavras dela e a cada pessoa que entrava no refeitório eu me assustava. Ela falava comigo de maneira pausada, e por perceber minha desatenção, acabou testemunhando outro fato marcante naquele dia. Pela porta de entrada do refeitório ao invés de entrar Josefine e Dona Diná, em um determinado momento entrou aquele senhor que estava sentado em uma das mesas à tarde e que me foi apresentado pelos outros hospedes. Seria absolutamente normal a entrada dele se não fosse pelo fato de que a partir do momento que ele apareceu na porta, o ambiente pareceu se transformar totalmente e eu não ouvi mais nada daquilo que dona Chica ou qualquer outro hospede estava falando. Tudo se tornou em um imenso silencio enquanto ele passava por nós, e meu olhar não conseguia se desviar do olhar dele que parecia um imã atraindo toda minha atenção. Esse fato durou bem pouco tempo, mas o suficiente para que dois detalhes importantes fossem percebidos por mim. O primeiro era um sorriso absolutamente meigo e cativante que fazia com que qualquer pessoa que visse, ficasse totalmente amiga dele. O segundo foi um gesto que ele fez com a cabeça no sentido de nos cumprimentar e que parecia o gesto feito pelas imagens de santo na igreja. Inclinando a cabeça para frente e meio do lado, que em qualquer situação é absolutamente normal nos cumprimentos, neste caso me pareceu ser mais um gesto de afirmação de uma inocência e bondade exageradas. Tive a impressão que se tratava de um gesto que apesar do objetivo, tinha a intenção de dizer, “não adianta espernear por que as coisas vão correr conforme o que está escrito”. Aqueles poucos segundos passaram bem mais lentos do que deveriam e finalmente quando passou, reforçou em dona Chica a necessidade de me alertar para os perigos que estavam me rondando. Voltei à realidade e fui obrigado a perguntar pra dona Chica qual teria sido sua ultima frase e ela não querendo perder tempo, deu continuidade ao que estava dizendo. Olhando para aquele senhor que agora estava de costas pra ela caminhando pra uma das mesas, com ar de certa desconfiança, ela disse segurando em minhas mãos: Fio... Esse mundo que nos vive, tem muito mais coisa do que aquilo que a gente vê... Oce é um rapaiz certo nas suas coisa, mais é bastante sem expiriência. Oce deve de toma muito cuidado com aquilo que vai faze e com quem vai lidá... Pensa por duas veis antes de toma uma decisão... E num isqueci do que eu falei! ... “Aquele que panha uma rosa, tem que sabe que pode se machucá nos espinhos!...” Eu sei que oce já panho a sua rosa!... Agora pode vim a outra parte! E os ispinho num brinca fio! Escuita o que eu to falano! Ela parece ser moça rica e cheia de mimo! Oce ta preparado pra isso? Ela falou aquilo e sem esperar que eu desse qualquer resposta levantou da mesa para continuar seu trabalho de servir a janta pras pessoas que já esperavam. Antes de sair porem, olhando para aquele senhor ela deu a volta ficando de costas pra ele e encostando bem na mesa que eu estava perguntou. O que oce viu quando o moço bunito entrou, deve de se outra coisa pra toma cuidado! Continuei sentado a espera de minha vez de ser servido e, enquanto isso não acontecia, passei por uma espécie de afastamento da realidade para tentar, sem muito sucesso, decifrar as palavras daquela simples, mas sábia senhora, que desde o momento em que me viu pela primeira vez só havia me dado carinho e proteção. Perdido na tentativa de entender o que tinha sido dito pela dona Chica e pela imagem de Josefine que não me largava, por um momento virei pra traz e olhei para aquele senhor que causou aquela situação. Podia ate ser diferente, mas sinceramente sua imagem de homem elegante e educado não me passava nenhuma preocupação e sua presença ali não significava nada, segundo minha intuição. Isso ajudou que eu esquecesse dele com certa facilidade, apesar da cena de sua chegada ficar martelando por algum tempo. Eu continuava sentado aguardando ser servido e também a espera que a qualquer momento Josefine entrasse por aquela porta. Trinta ou quarenta minutos depois, eu já havia sido servido, já havia terminado de jantar e, muitas pessoas passaram pela porta, menos ela e sua madrinha. Pensei em perguntar para dona Chica sobre as duas, mas com medo do que tinha acontecido, e apesar de eu saber que a dona Chica sabia de tudo, resolvi esperar mais. Depois de jantar levantei e fui na direção da porta da rua onde sempre sentávamos para fazer o kilo e, ao passar pelo quarto de Josefine tive a impressão de ter ouvido um resto de choro que vinha lá de dentro. Sem poder parar para observar, pois era muito cedo e todos estavam saindo do refeitório para passar por aquele corredor, fiz de conta que não era nada e fui diretamente para a calçada me sentar em uma das cadeiras. Depois de trocar poucas palavras com as pessoas que estavam lá fora, com a desculpa de que estava cansado, resolvi ir deitar. Despedi de todos com uma vontade imensa de perguntar pra alguém o que havia acontecido com as duas senhoras, mas não tive essa coragem e, sem ter muito o que fazer, sai direto para meu quarto. Ao passar novamente diante do quarto de Josefine, automaticamente estiquei o ouvido para tentar ouvir algo que me desse alguma pista dos motivos que tinham levado as duas a não irem jantar naquela noite, mais nada ouvi. Entrei pra meu quarto e logo que deitei tentei fazer minhas orações, mas sempre parava no meio delas, perdido nas preocupações com o que podia ter acontecido. Duplamente preocupado, tanto pelo acontecido na noite anterior entre eu e Josefine, como também pela falta delas no refeitório, depois de algumas tentativas em rezar, acabei pegando no sono. Cansado, e com a cabeça pesada de tanta preocupação, o sono também se tornou pesado, tanto que precisou que Josefine batesse várias vezes na porta de meu quarto para que eu acordasse. Acordei assustado por não saber direito se era um sonho ou realidade e por isso, demorei alguns segundos para tomar ciência da situação e agir conforme a necessidade. Depois de constatar que era a realidade e que era Josefine quem estava batendo na porta, num pulo rápido alcancei a tramela da porta para abrir o mais rápido possível. Minha alegria e expectativa cresceram imediatamente, porem ao contrario do que havia acontecido na noite anterior quando ao chegar em meu quarto ela havia buscado condição para me dar um beijo, desta vez ela entrou com o rosto molhado de lagrimas e sem dizer uma só palavra caminhou com a cabeça baixa para sentar na beira de minha cama. Fiquei em pé perto da porta e logo imaginei que as lagrimas eram porque dona Diná havia descoberto nosso caso e o caldo havia entornado de vez, mas eu estava enganado. O motivo era outro. Sem muito rodeio e por estar me sentindo muito mal com aquela situação toda, perguntei pra ela o que estava acontecendo, porem antes que ela respondesse, continuei a conversa afirmando que ela não precisava se preocupar, pois qualquer que fosse a situação, eu iria me responsabilizar pelas conseqüências de nossos atos. Josefine me deixou falar bastante e depois ergueu a cabeça como se estivesse surpresa, mas também aliviada com minhas palavras. Após um tempo ela falou com a voz mais doce que podia existir que não se tratava daquele assunto e que dona Diná não sabia de nada. Isso me trouxe um alívio que logo deixou de existir quando ela pronunciou sua frase seguinte. Aparentando ingenuidade ela disse que se dona Diná soubesse do acontecido, certamente a mataria, pela desonra que aquele ato representava, mas que não era essa a situação. Perguntei então do que se tratava e ela com ar de envergonhada não respondeu de imediato. Caminhei em direção a cama e me sentei ao lado dela para poder pegar em sua mão delicada e macia, e novamente perguntar o que estava acontecendo. Ela ainda demorou, mas desta vez fez a tentativa de dar uma resposta. Meio engasgada explicou que o motivo pelo qual elas não haviam ido ao refeitório naquela noite, era o fato de estarem envergonhadas por ainda não terem acertado nenhuma parte de sua conta com dona Chica. A principio achei aquilo um tanto estranho, pois não conseguia entender porque duas pessoas que se vestiam tão bem, não tinham dinheiro para a própria sobrevivência. Fiquei bastante surpreso e também confuso com aquela revelação e confesso que não tive ação no inicio, mas logo senti a necessidade de dar alguma solução, ou pelo menos uma idéia sobre como resolver aquilo. Sem muito tato para conduzir o processo perguntei o que estava acontecendo. Vocês perderam o dinheiro, ou foi alguma outra coisa? Ela explicou que não havia perdido o dinheiro e que o problema é que seu padrinho, o marido de dona Diná, havia ficado na cidade de São Paulo resolvendo alguns negócios e que só chegaria a Alto Araguaia depois de quinze ou vinte dias. Disse também que quando elas tinham saído de São Paulo, seu padrinho tinha dado uma boa quantia de dinheiro e tinha prometido mandar mais por um mensageiro que deveria chegar dentro de quatro ou cinco dias. Essa explicação despertou minha curiosidade e perguntei a ela qual era o tipo de negócio que seu padrinho mexia. Ela respondeu que ele trabalhava no ramo de compra e venda de grandes boiadas e que duas ou três vezes ao ano ele descia para o centro oeste para comprar gado para os frigoríficos paulistas. A conversa sobre seu padrinho e seus negócios continuaria com certa facilidade, caso eu insistisse, porem a preocupação com suas lagrimas ainda existia e eu acabei por retornar ao assunto da divida. Perguntei a ela o que elas estavam pensando fazer para resolver o caso e ela se mostrou um pouco perdida no assunto. Insisti em saber qual a direção que ela e dona Diná pensavam dar para o problema e ela me respondeu apenas que ainda estavam pensando. Sugeri que fossem falar com dona Chica para conseguir um prazo de pagamento que permitisse a elas encontrar uma solução e ela argumentou que ao entrarem na pensão e serem indagadas quanto ao pagamento, haviam dito que tinham o dinheiro para isso, e que, portanto, agora não tinham coragem de seguir minha sugestão. Notei que o caso delas era apenas vergonha de não poder naquele momento sustentar uma aparência que tentavam mostrar e que podia não ser a realidade. Ao chegar nessa parte Juca que continuava ouvindo atentamente interrompeu André para fazer uma pergunta que o obrigava a dar um desfecho para aquela parte da história. Mais o senho não estranho que se tudo que ela disse fosse verdade, ela mesma ia faze o que o sinhô disse sem precisa fica chorando? Não seu Juca! Na hora eu não sei se por estar tão envolvido com ela, ou se por outras forças, mas eu não pensei nisso! E isso seu Juca, acabou sendo o meu primeiro grande erro dessa nova fase na minha vida! E o que que o senho fez? Depois de pensar por alguns minutos e não querendo desagradar a ela com aquela chateação, comecei a imaginar como que eu podia ajudar, e mesmo sabendo que eu não podia dispor de nem um réis comecei a considerar a possibilidade de emprestar a elas, por alguns dias, o dinheiro de minha mãe para receber de volta logo que o padrinho dela chegasse. E o senho emprestou? Acreditando que toda aquela situação estava sendo causada apenas por vergonha em assumir a falta de dinheiro diante de dona Chica, virei para ela e garanti que ia tentar achar uma solução para o caso delas. Depois de conversar um pouco mais comigo, ela se levantou e disse que precisava ir embora para não deixar que ninguém a visse ali dentro de meu quarto porque nem mesmo dona Diná sabia que ela estava ali, já que ela disse apenas que ia ao banheiro. Aquela conversa, mais a atitude de me dar mais um ardente beijo antes de sair, me deixou um pouco mais confiante em relação aquilo que ela disse e, isso me levou a pensar mais forte sobre o assunto logo que ela saiu. O sono que antes era pesado, ao ponto de fazer com que eu demorasse para abrir a porta na chegada dela, agora tinha sumido e com certeza não voltaria fácil, o que me deu bastante tempo para pensar no assunto. Pensei bastante, mas acabei não chegando a nenhuma conclusão. No dia seguinte porem, logo que me levantei e minha decisão já estava tomada graças a um sonho que tive.
Quando consegui pegar no sono novamente, retornou aquele mesmo sonho que eu tinha tido na noite em que dormi na arvore quando sai da casa de meus pais. Aquele mesmo sonho em que meus pais estavam muito ricos, mas morando em outro lugar, e no qual eu não conseguia chegar ate eles porque alguém, que desta vez não via quem me segurava. Ao levantar mantive minha rotina de toda manhã e quando fui até o refeitório para tomar o café agi normalmente como se nada tivesse acontecendo. Ao entrar notei a presença de Josefine e de Dona Diná que estavam sentadas já tomando seu café. Depois de cumprimentar a todos, procurei uma maneira de me sentar de frente para Josefine e assim poder dar um sinal a ela sem que as outras pessoas percebessem, o que não foi muito difícil. Depois de me sentar na posição mais adequada, tentei agir normalmente e fazer com que ela pudesse ver e entender meu sinal. Consegui passar o sinal pra ela com certa facilidade sem ninguém perceber, e depois disso levantei da mesa e voltei para meu quarto. Algum tempo depois, quando certamente ela e sua madrinha já tinham voltado para seu quarto e os outros hospedes saído para suas tarefas, ouvi as batidas na porta do quarto que abri com muita rapidez. Josefine entrou depois de observar se ninguém tinha visto sua chegada e imediatamente eu a peguei pelas mãos e a sentei na minha cama... André empolgado continuava contando a historia enquanto Juca curioso e que ouvia atentamente percebeu uma transformação no seu jeito de falar. Isso ocorreu quando contou que imediatamente após sentarem na cama, ele não resistiu à doçura e a sensualidade daquela menina e, confiante na relação que acreditava estar se solidificando, puxou-a pelos ombros com delicadeza para roubar um beijo que para ele foi indescritível. Foi assim seu Juca! Depois daquele beijo, sem muito rodeio eu disse a ela que depois de muito pensar sobre sua situação, resolvi que iria ajudar emprestando a ela e a sua madrinha, todo o dinheiro que tinha guardado. Disse também que eu não poderia emprestar por muito tempo por também ter dividas com a pensão. Que precisava do dinheiro de volta imediatamente após a chegada do mensageiro de seu padrinho com o dinheiro delas. Quando dei a ela a noticia seu rosto se transformou e pude notar o quanto ela havia ficado aliviada. A transformação só foi menor que a reação dela, ao me ver tirar do fundo de meu alforge, um grande pacote de notas de Réis que passei para as suas mãos. Ela olhou bem em meu rosto com ar de quem está aliviada e agradecida, depois esticou as duas mãos em minha direção, pegou o bolo de dinheiro fechando ele entre as mãos que foram levadas juntas até seu queixo. Por alguns segundos ela continuou a me olhar e sem nada dizer aproximou se de mim e novamente me deu um daqueles beijos, do tipo que a gente nunca mais esquece. Passado aquele momento ela agradeceu e afirmou antes de sair do quarto que imediatamente o mensageiro chegasse, ela saldaria aquela dívida, e que enquanto isso não acontecesse, ela e sua madrinha ficavam muito agradecidas. Depois que ela saiu do quarto dizendo que ia imediatamente saldar a divida com dona Chica, eu esperei mais uns dez ou quinze minutos e também sai para cumprir mais um dia daquela rotina de procurar emprego e que sinceramente já estava cansando. Não sei por que, mas naquele dia eu estava especialmente animado e de certa maneira acreditava que alguma coisa especial iria acontecer. Andei por bastante tempo e pela primeira vez alguém me acenou com a possibilidade de um trabalho. Havia a possibilidade de ser contratado como balconista em um armazém cujo funcionário estava indo embora para outra cidade. Este fato me causou uma sensação de dever cumprido, o que me fez decidir ir mais cedo para a pensão a fim de almoçar e de contar a novidade para dona Chica. Retornei para a Pensão Boa Viagem e quando entrei, notei um silencio com o qual não estava acostumado, e que ocorria porque naquele horário, por volta das dez e meia da manhã quase ninguém ficava lá. Entrei e não vendo ninguém fui até o refeitório onde encontrei dona Chica que estava sentada em uma das mesas catando uma peneirada de arroz pro almoço enquanto outras cozinheiras estavam em outras mesas escolhendo feijão. Ao me ver entrando pela porta, dona Chica estranhou, e foi logo perguntando o que havia acontecido para eu estar de volta tão cedo. Sentei na cadeira do outro lado da mesa e fui logo contando a novidade que foi bem recebida por ela. Dona Chica ficou toda feliz e entendendo que aquele era um momento especial procurou valorizar afirmando que quando a gente tem boa vontade e persistência as coisas acontecem naturalmente. E foi justamente na tentativa de valorizar e de me dar força no que estava acontecendo que ela, Dona Chica, sem saber da realidade acabou soltando a frase que eu nunca queria ter ouvido. Com toda sua simplicidade e maneira de ser direta naquilo que fazia e dizia, foi que ela falou: Inda bem que as coisa ta se ajeitano! Oce ta arrumano um bão serviço! Vai pode trabaia sussegado! É dona Chica eu estou muito feliz com tudo que esta acontecendo comigo! Eu acho que agora as coisa anda! Eu to mais tranqüila purque sei que oce agora vai trabaia e num vai bota a mão na cumbuca pra corre perigo ! Eu estranhei ela falar daquela forma, e por isso perguntei do que se tratava e ela respondeu. Eu to falano daquela minina que oce tava todo arripiado pro lado dela, mas que agora já num é pirigo! Ela mal terminou a frase e percebendo que havia algo estranho naquela conversa eu perguntei por que ela estava dizendo aquilo, e ela continuou. É que ela e a tar da tia ou madrinha dela, pagaro a conta hoje e foro embora bem cedinho! Dissero que ia vorta pra São Paulo! Quando ela pronunciou aquela frase, o mundo a minha volta simplesmente acabou. Eu não tinha uma idéia do real significado daquele fato e. Só tomei consciência do que aquilo significava depois de muito tempo sentado ali naquela mesa sem perceber qualquer coisa a minha volta. Tudo e todos simplesmente sumirão. Eu estava totalmente aéreo e sem chão pra pisar. Durante aquele tempo em que estive sentado ali, milhões de coisas passaram pela minha cabeça, e ao mesmo tempo, que eu imaginava que o que Dona Chica tinha me falado era apenas um erro dela, por outro lado eu também não tinha muitas esperanças de que eu não havia caído num golpe muito bem dado. O fato é que independente do que era a realidade sobre Josefine e Dona Diná, ali estava eu morando numa cidade em que conhecia poucas pessoas, sem o dinheiro para a sobrevivência e principalmente sem ter condições para devolver em dobro, como havia prometido a meus pais, o dinheiro que eles haviam me emprestado. Mais qual era a verdade sobre as duas mulheres? O senhor soube alguma noticia delas? É... Eu soube sim! bem mais tarde em uma situação que quando chegar a hora eu conto mas... Lá estava eu seu Juca ... Sem ter a menor idéia de como me sair daquela situação, morto de vergonha e principalmente sem cabeça para pensar direito. Havia porem a possibilidade do emprego tão esperado, mas essa esperança acabou logo quando eu voltei ao armazém e o proprietário gentilmente me informou que o funcionário que ia para outra cidade, desistiu da mudança e ia continuar trabalhando com ele. Neste dia, talvez em função da falta de condições de pensar, e com a ajuda de forças maiores que eu vim conhecer mais tarde, começou a ser tecidas as teias de uma trama que me levaria a cometer o meu segundo grande erro. E qual foi ele seu André? O senhor vai saber seu Juca...
TERCEIRO CAPITULO Quando chegaram nesta parte da historia, na verdade já havia se passado aquele dia, e os dois homens, não haviam ficado todo ele, sentados ali na sombra da arvore, Ao contrario, como André sentia uma grande necessidade em colocar tudo aquilo pra fora, ele havia acompanhado o Juca durante todo o dia enquanto este direcionava o trabalho junto a seus peões. . Os homens que trabalhavam com Juca estavam explanando a madeira que havia sido cortada e entre uma ida e outra do explanador, (local que é feito perto de onde o serviço vai ser desenvolvido, que é desmatado e onde se coloca a madeira cortada), até a mata, os dois homens aproveitavam para conversar. O dia passou como num relâmpago e quando a noite se aproximava, mais uma vez Juca notou a preocupação do João Cavaco com alguns rituais que deixavam claro a busca de proteção para André. Apesar de perceber estas ações, Juca não queria deixar seu patrão achando que ele queria saber mais do que devia e sendo assim evitava falar sobre o assunto. Depois de feitos os rituais e, de todos já terem tomado seu banho num riacho próximo que serviria de fonte de água para a bica d água e o monjolo do novo retiro, todos estavam no barraco beira chão improvisado com folhas de babaçu aguardando a hora do jantar. Naquele momento porem as poucas conversas que surgiam eram sobre assuntos relacionados com o trabalho de construção do novo retiro já que, nem Juca e nem André achavam adequado continuar falando de um assunto que dizia respeito apenas ao próprio André e que ele havia resolvido dividir com alguém pela primeira vez. Desta forma aquela noite não trouxe nada de muito especial e todos acabaram dormindo bastante cedo como é o costume nesses acampamentos cujo objetivo é apenas e tão somente o trabalho, que, diga – se de passagem, é bastante pesado. O outro dia começou quando o sol ainda nem tinha nascido, e eles não tinham ouvido o galo cantar já que ali ainda não tinha nenhum. Mesmo assim todos pularam cedo das redes ou das camas improvisadas com varas verdes que formavam o jirau que sustentavam o fino colchão em que dormiam. Assim que lavaram o rosto e tomaram um café, cada qual saiu em busca da ação que mesmo sem ninguém falar, já sabia ser obrigação. Alguns foram amolar as ferramentas, outros foram pro mato campear os bois para continuar o trabalho. Uns poucos ficaram por ali sentados aguardando a hora certa para começar e Juca que era o responsável pelo serviço procurou dar encaminhamento a tudo para que dessa forma pudesse ficar um pouco mais a vontade e assim poder dar a atenção necessária a André. Depois de ter dado a partida no trabalho e certificar que tudo estava correndo dentro do planejado, Juca retornou ao barraco onde encontrou André que trocava algumas palavras com o cozinheiro, único peão com permissão para continuar ali, pois ele tinha muito arroz e feijão para catar para poder fazer o almoço para toda aquela turma. Eles permaneceram por perto durante algum tempo e não demorou muito para que a conversa entre eles recomeçasse puxada pela insistência de Juca em saber qual era a verdade sobre aquelas duas mulheres. André não deu muita importância às indagações de Juca por não querer falar sobre aquele assunto que trazia ao mesmo tempo duas sensações. A tristeza de ter perdido alguém e revolta por ter sido enganado por este alguém. Não tendo e não querendo escapar da tarefa de continuar a contar a história, os dois homens se afastaram novamente do barraco e André então contou que logo que soube da noticia dada pela Dona Chica, ficou mais confuso do que preocupado já que não passava pela sua cabeça a real intensidade dos problemas que ele teria em conseqüência daqueles fatos. Ele não tinha a menor idéia de como começar, ou melhor, de como recomeçar a caminhada no rumo que tinha traçado. Era uma quarta feira quando Josefine foi embora, e André sentia mais perdido do que cachorro quando cai da mudança, expressão usada por ele para voltar ao assunto. Naquela primeira semana ele teria conseguido fazer com que a vida transcorresse normalmente, e mesmo ele não tendo pago as despesas da semana, Dona Chica não teria dificuldade em deixar o fato de lado. Dona chica já havia se acostumado com André depois de um bom tempo, e não colocava em dúvida sua honestidade e o seu compromisso em pagar no fim de cada semana suas despesas. Assim sendo ela não percebeu, ou fingiu que não perceber o atraso que foi mantido na segunda, na terça, na quarta e só na quinta feira é que o atraso deixou de ter, por parte do próprio André esse tratamento. Naquela manhã ao entrar no refeitório, estava estampado em seu rosto o desanimo e a preocupação, sensações muito fortes que um rapaz criado em um sitio afastado e sob um regime bastante rigoroso, não conseguiria esconder de uma velha e experiente senhora como Dona Chica. Nos dias anteriores ela já havia percebido que ele havia diminuído muito o volume de almoços e jantas e por isso naquele dia logo que entrou ocupou uma das mesas recebeu a visita de sua amiga Dona Chica. Ela veio trazendo consigo o bule de café, e nem mesmo ofereceu a ele, servindo automaticamente enquanto se sentava puxando conversa. Depois de sentar – se diante dele e descansar por aproximadamente quinze segundos, tempo em que observava atentamente o rosto do rapaz que naquele momento parecia apenas um menino assustado, é que ela pediu a ele que falasse sobre o que estava acontecendo. Muito envergonhado por saber que aquele fato representava sem dúvida nenhuma uma imensa derrota tanto pessoal quanto social, com a cabeça baixa André falou: A senhora se lembra do conselho que me deu... Sobre a menina Josefine? Dona Chica balançou a cabeça, primeiro num sinal de positivo, como se dissesse sim, e a segunda vez em sinal de negativo como se dissesse: não é possível que aconteceu o que eu previa. André então ergueu levemente o olhar na direção dela e pelos seus olhos ela pode ver que ele estava afirmando que ela estava certa ao alertar sobre aquele relacionamento. Desta vez ela é quem abaixou a cabeça como se estivesse pensando se deveria ou não perguntar a ele o que realmente havia acontecido, e depois de pensar rapidamente não teve dúvidas. Erguendo de volta a cabeça em cujo rosto estava estampado a preocupação e falou: Já sei! Aquela danadinha deu trela pra oce e depois não dexo nem nuticia não é? André respondeu que sim num movimento de cabeça e por algum tempo ficou calado meio que perdido na dúvida se deveria ou não continuar com aquela conversa e dizer pra sua amiga a verdade sobre o fim de seu relacionamento. Durante o tempo em que ele permaneceu calado perdido em suas dúvidas, ele nem mesmo percebeu que Dona Chica estava dando opiniões erradas a respeito da situação e, portanto não ouviu ela dizendo que já sabia que aquele relacionamento não tinha nada pra dar certo, pois tratava-se de duas pessoas de mundos diferentes. Ela falava das diferenças sociais dos dois e que não acreditava que uma garota de família rica e que andava tão bem vestida como Josefine iria conseguir conviver com um rapaz de família humilde e que se vestia de maneira bastante simples como era o caso dele. Quando já havia passado algum tempo e André foi retornando a realidade, sem perceber que ela achava que o assunto era apenas do coração, ele disse numa frase bastante seca e direta que não sabia como resolver o problema. Novamente Dona Chica começou a emitir opinião no sentido de dar conselhos de como ele deveria esquecer a garota e dar continuidade em sua vida e, desta vez André percebeu melhor as palavras dela e estranhou como ela direcionava a conversa apenas para a questão do coração. Esta conversa meio sem sentido em que cada um deles falava de um assunto diferente terminou quando ela tentando animá-lo disse uma frase que foi muito bem ouvida por ele. Sabe de uma coisa fio? Vai toma seu café e esqueci essa menina ! Oce é novo e vai arruma uma namorada bem mio que ela! André se recusou a ir tomar o café dizendo que não estava com fome, mas, como Dona Chica já o conhecia, sabia que não era verdade, pois, uma coisa que ele tinha logo de manhã era o apetite aberto. Esse fato a alertou para a existência de algum problema maior e perguntou. Teve mais arguma coisa que ela fez e que oce nun conto? André novamente abaixou a cabeça escondendo o olhar para que ela não percebesse tão rápido, mas sem ter muito pra onde correr acabou por olhar diretamente nos olhos dela antes de dizer. A senhora sabe dinheiro que elas usaram pra pagar a conta aqui da pensão? È... e Eu sei sim... O que que tem ele? Num me diga que o dinheiro era... Era!... O dinheiro que elas usaram pra pagaram a conta era meu... Há meu sinho do ceu! Disse dona Chica quase interrompendo. Hoje de manhã ela veio ao meu quarto e eu emprestei pra Josefine tudo que me restava.... Não sobrou nada! Dona Chica novamente expressou algo do tipo “Meu pai eterno...” e virou sua cabeça para o lado na tentativa de pensar em alguma coisa, ao mesmo tempo em que aproveitava para verificar se algum hospede estava manifestando algo pela sua ausência nas mesas. Quando retornou seu olhar para André encontrou um rosto muito abatido e cortado por uma lagrima que havia rolado solitária. Tendo a personalidade forte que Dona Chica tinha, era natural que ela tomasse uma atitude positiva em relação ao rapaz porque, alem dela se sentir responsável por ele, de certa forma ela se sentiu culpada por não ter percebido que tipo de personalidade aquelas duas mulheres tinham, e assim poder alertar André sobre o risco real. Quando ela em sua simplicidade disse a ele que “aquele que colhe a rosa tem que enfrentar os espinhos”, ela estava falando do risco que ele corria em se apaixonar da menina e não ser correspondido na medida justa, mas em nenhum momento havia passado pela sua cabeça, que senhoras tão bem vestidas e tão atenciosas pudessem ser o que agora pareciam. Tudo passou pela cabeça de Dona Chica, e na tentativa de formar uma opinião verdadeira sobre Dona Diná e Josefine, agora ela via claramente que deveria ter tido mais cuidado em analisar as hospedes que até aquele dia gozavam de sua aprovação. Ainda sem saber o que fazer diante daquela situação e estando pressionada pela necessidade de atender aos outros hospedes, Dona Chica se levantou da mesa e retomou suas tarefas enquanto André continuou sentado por mais alguns minutos. Enquanto estava sentado ali naquela mesa pensando no que deveria fazer, sem uma explicação lógica ele olhou para um dos cantos daquele refeitório e seu olhar encontrou, sentado em uma das mesas numa posição confortável e elegante, aquele senhor que por diversas ocasiões esteve próximo e de forma um tanto misteriosa. Depois de ser percebido por André o senhor se levantou de sua mesa para sair em direção à rua, e ao passar pela mesa de André parou como se fosse indagar algo. Ele se curvou levemente em direção a mesa e quase no ouvido de André disse: “A solução está mais perto do que você pensa”. Depois retornou a posição de caminhada fez um aceno de cabeça para depois seguir em frente. Ainda sentado à mesa André praticamente não deu importância para aquelas palavras já que seu sentido estava todo voltado à imagem daquela linda, meiga, sensual e agora, para ele, desonesta garota com sotaque francês. Mesmo sem saber o que fazer ele se levantou depois de contemplar aquele local por alguns instantes e também tomou a direção da porta que dava pra rua, para como sempre fazia, sair em busca do trabalho que agora era ainda mais necessário.
Neste momento Juca interrompe fazendo o seguinte comentário: É... Não deve ter sido nada fácil recomeçar tudo de novo! Não foi mesmo seu Juca! Naquele dia eu sentia que existia algo de diferente no ar. Eu sabia que não era um dia normal e, a sensação que eu estava sentindo era bastante estranha. Era como se eu soubesse que aquele momento era na verdade uma despedida daquela pensão, só que eu não sabia por que estava despedindo. Afinal eu poderia sair à busca do emprego tão necessário, e ao fim do dia retornar para a pensão e continuar a vida. Já estando na porta da rua depois de ter saído de casa enquanto pensava, e não conseguindo identificar o motivo da sensação que eu sentia, ao pisar na calçada antes de chegar a rua eu parei e num relance de superstição pensei comigo mesmo. Será que vai me acontecer algo de mau? Será que hoje é meu dia de morrer? Vários pensamentos passaram pela minha cabeça, mas sabendo que não poderia deixar de seguir meu caminho, tomei coragem e prosseguiu. Em minha caminhada em busca de trabalho, eu pensava que não fui pra cidade pra continuar fazendo trabalho braçal porque aquilo não representava nenhum crescimento para mim. Quando decidi sair de minha casa e enfrentar o mundo, meus planos eram muito maiores, e eu queria no mínimo ser funcionário de uma empresa, mas meu objetivo na verdade era ser “Funcionário Público”. Meu pai, Sr. João Bastos, dizia, nos poucos momentos que se dignava a falar das coisas da cidade, que ser funcionário publico era coisa de grande honraria. Que a pessoa passava a ser representante do governo e, por isso quando fui pra cidade na minha cabeça só tinha esse pensamento. Naqueles dias depois de tantos tropeços esse desejo já não representava muito, e eu sabia que agora o que importava não era ser funcionário publico e sim ter trabalho que me desse a sobrevivência para depois então poder pensar na busca de qualquer sonho. Aqueles últimos dias, mais que nos outros, as horas passavam rápido e minha busca por trabalho parecia ainda mais difícil depois de ouvir do dono do armazém que seu funcionário tinha decidido continuar no emprego. A hora do almoço chegou e sem ter vontade de encarar as pessoas conhecidas e também por não ter fome, decidi que não iria voltar pra pensão. O fim do dia também chegou rapidamente confirmando que aquele não era um dia comum, e baseado na mesma falta de vontade de encarar as pessoas e agora também por vergonha de ter que dizer mais uma vez pra dona Chica que eu não tinha conseguido trabalho, alem do fato de saber que, eu só poderia comer e dormir na pensão se pedisse fiado, tomei uma decisão que ia mudar pra sempre minha vida. Era quase inicio da noite e eu estava sozinho numa rua, diante de um terreno baldio, e depois de olhar para um lado e para o outro, num gesto de um derrotado, eu abaixei a cabeça enquanto senti subir por meu corpo uma sensação de fraqueza. Meus olhos encheram d´agua fazendo minha vista ficar embasada. Eu permaneci assim por alguns instantes, olhei novamente para os dois lados da rua pra ter certeza que não vinha ninguém, e dei mais ou menos uns vinte passos e entrei naquele terreno para dormir naquele resto de construção. Eu não sabia, mas naquela hora eu tava selando meu destino. Naquela hora eu estava numa encruzilhada e podia pegar um dos dois caminhos que ela oferecia, e o caminho escolhido foi determinado por aqueles vinte passos. Porque os vinte passos tinham tanta importância assim? Porque ao entrar ali naquele terreno eu estava optando por ser um “ninguém”. Eu estava deixando de lutar, estava me sentindo derrotado e esse era o caminho que as pessoas de coragem não escolheriam, mas que eu escolhi. Mais parece que foi acertado o caminho ora! Afinal de contas o senhor se tornou um homem respeitado e muito bem de situação financeira! Mais a que custo Sr. Juca? O custo foi muito alto e sinceramente eu não sei se tudo isso que o senhor vê e chama de respeito e sucesso vale a pena diante da forma como venho sendo cobrado todo esse tempo. Naquela noite escolhi meu caminho, e tudo que havia acontecido até aquele momento ainda não era nada, e o pior estava por vir. Eu entrei naquele terreno com a intenção de ficar ali enquanto pensava um pouco no que fazer, e acreditava que seria só por algumas horas. Logo que entrei, percebi umas coisas velhas, caixas, panelas, tudo sem valor, mas que estavam mais ou menos organizadas. Imaginei que fossem coisas deixadas lá pelos donos do lugar, e como o local parecia abandonado, não previ nenhum tipo de presença humana que causasse perigo. A única coisa que me preocupava era o medo de cobras ou outro bicho peçonhento qualquer. Crescendo em um sitio como o solidão, desde muito criança aprendemos que animais desse tipo te atacam apenas para se defender, mas seus ataques geralmente levam a morte. Ali tinham alguns pedaços de caixas de papelão, umas duas caixas de madeira, algumas panelas velhas e uns pedaços de pano ainda mais velhos. Observando aqueles objetos não dei muita importância e apenas sentei numa daquelas caixas de madeira e comecei a pensar no que estava acontecendo comigo. Durante quase uma hora fiquei tentando entender a minha vida e por mais que eu pensasse nunca chegava a lugar nenhum. O tempo foi passando e o sono, acompanhado da fome chegaram. Quanto ao sono estava fácil resolver já que bastava juntar aquelas caixas de madeira, forrar com as de papelão, e uma cama estava improvisada. Na casa de meus pais era muito comum dormirmos em condição parecida com aquela nos anos em que tínhamos que fazer roça muito longe de casa. Já quanto à fome, esta ia ter que esperar pro outro dia com toda a certeza. Improvisei a cama como havia pensado e me deitei rapidamente porem, não conseguia pegar no sono devido à preocupação com o que pudesse aparecer ali. Assim fiquei um bom tempo brigando contra a fome, a preocupação com bichos e o desespero pelo que estava acontecendo. Às vezes começava a cochilar e acordava assustado e quando finalmente consegui dormir já era tarde da noite e eu estava muito cansado pelo dia cheio que tive e pelo desconforto que o local oferecia. No entanto, aquilo que parecia ser uma noite tranqüila se transformou em um inferno que eu ainda não havia imaginado ate aquele momento. De repente e sem saber de onde e de quem estava vindo, fui acordado na base de cacetadas que eram dadas com bastante vontade. A escuridão não permitia identificar o que estava acontecendo, mas as cacetadas eram reais e causavam muita dor. Tentei me levantar, mas as ações de defesa me mantinha sempre meio abaixado, e nas primeiras três ou quatro pancadas não tive reação porque estava tentando entender o que acontecia. Foi só após a sexta ou sétima que tive condições para reagir. Cansado de apanhar, avancei sobre o agressor com a intenção de o fazerele parar de bater e com alguma dificuldade consegui dar um empurrão nele em meio aos gritos que ele dava para me intimidar. Depois que consegui me livrar dele, ao mesmo tempo em que também passei a gritar com ele, devagar a situação foi acalmando, mas eu continuava sem saber quem era. Quando depois de alguns minutos tudo se acalmou, então tomei a atitude de tentar conversar. Tentando mostrar que eu tinha como me defender, perguntei se queria continuar a briga torcendo pra que ele dissesse que não. Graças a Deus foi o que ele fez gritando para que eu saísse dali. Fiquei um pouco apreensivo e ainda demorei alguns segundos para me movimentar. Sem ter muitas opções fui saindo com medo que ele reagisse e continuasse a bater. Ele porem afastou um pouco e notei na escuridão que ele foi em direção aquele monte de roupas velhas. Fiquei novamente muito preocupado e alerta por achar que ele estava indo pegar alguma arma e me preparei para que se fosse o caso pudesse sair dali correndo. Felizmente não era nada disso, e de dentro daquelas roupas ele retirou um pedaço de vela feita artesanalmente e uma caixa de fósforos. Ele ascendeu a vela e só então pudemos nos reconhecer mais ou menos. Tratava-se de um homem pequeno e muito nervoso que era chamado de João da Sorte. Com barba por fazer, maltrapilho e com as pernas das calças arregaçadas, certamente ele não tomava um banho há meses. Aliás, enquanto lutávamos pude perceber sua necessidade de banho já que seu mau cheiro era sufocante e podia ser sentido de longe. O João da Sorte era muito conhecido na cidade pela sina que carregava. Não se sabe muito bem porque mais ele era meio louco e acreditava estar predestinado a encontrar um grande tesouro enterrado em algum lugar daquele município. Assim ele passava seus dias cavando buracos a procura daquele tesouro. Ele escolhia um lugar, geralmente no meio do mato, e começava a cavar. Cavava enquanto podia e quando já não conseguia mais jogar a terra pra fora do buraco, desistia daquele local e saia a procura de outro. Daí o nome João da Sorte. Ele era um homem de poucas palavras e quando às vezes falava a gente mal entendia o que dizia, mas naquela noite não sei por que cargas d água, meio com palavras meio com gestos, depois de separar pra ele o melhor das caixas de papelão, ele me disse que podia ficar. Não falamos mais nada um com o outro e cada qual procurou seu canto pra tentar dormir. Eu me sentei sobre uma daquelas caixas de madeira que coloquei num dos cantos daquele resto de construção e escorado em duas paredes tentei dormir. Apenas tentei já que o susto que eu havia levado, somado a dor das pancadas, tinha sido tão grande que tinha me deixado totalmente aceso e sem sono. O tempo foi passando e o João da Sorte tranquilamente já estava dormindo, mas meu sono nada de chegar. Mesmo vendo a tranqüilidade do João enquanto dormia, na minha cabeça passava a idéia de que ele podia apenas estar disfarçando para que eu me descuidasse e ele pudesse me pegar de paulada novamente. Por mais que eu tentasse relaxar e dormir não conseguia e assim a noite prosseguiu. Eu às vezes cochilava e logo acordava, tanto pelo desconforto de estar ali sentado quanto pelo medo de ser novamente atacado. Esse processo se repetiu varias vezes e cada vez que eu acordava olhava pro lado do João e mesmo na escuridão podia ver que ele dormia tranquilamente. O sono e o cansaço acabaram por me derrotar e a ultima vez que cochilei já era quase dia claro. Mesmo assim cochilei, e neste caso ao acordar o susto foi ainda maior porque vi o João da Sorte que estava em pé bem na minha frente com um pedaço de pau na mão. Achei que ele ia me atacar novamente, mas na verdade ele estava apenas tentando me acordar me cutucando com aquele pedaço de pau. Iniciei uma reação, mas logo percebi que não se tratava de um ataque e sentei novamente em meu caixote cama. Ele se virou meio sorrindo e abaixou para retirar de dentro de um saco que trazido consigo, um mamão maduro que me ofereceu como café da manha. Devido a fome que eu sentia, aceitei o mamão que foi dividido por nos dois, e depois daquela noite desesperadora, pouco a pouco foi nascendo uma relação de confiança entre nos dois e logo estávamos dividindo aquele local com muita tranqüilidade. O João da Sorte ficava pouco por ali já que seu destino sempre o levava para outros locais em busca de seu tesouro perdido e só o trazia de volta quando a fome e o cansaço ficavam muito grandes e ele finalmente desistia daquele buraco. Sua desistência nunca foi permanente e quando ele retornava trocávamos poucas palavras, apenas o bastante pra eu saber que mais uma vez ele não havia encontrado nada e que sua busca retornaria logo logo. Enquanto o João ia e vinha eu continuava tocando a minha vida. Os dias se passavam e eu agora já não buscava mais o emprego que tanto precisava. Por mais que eu tentasse não permitir que acontecesse comigo o que acontecia com o João, depois de muitos dias vivendo naquele resto de construção, lavando minhas roupas sem ter sabão, tomando banho também sem sabão, ou apenas com restos de sabão que as pessoas largavam nos barrancos dos rios, eu já não achava ruim o mau cheiro das coisas do João e daquele lugar. Na verdade eu também já tinha o mesmo mau cheiro, mesmo que de vez em quando eu conseguia tomar um bom banho com sabão de diquada ou até mesmo com sabonete. Era muito comum as pessoas daquela cidade irem tomar banho no córrego Boiadeiro ou no rio Araguaia, e por fazerem isso sempre nos mesmos locais e todos os dias, elas já deixavam seus sabão onde pudesse usar no dia seguinte. Era só eu observar onde elas deixavam e depois roubar. É verdade, eu mesmo faço isso o tempo todo! Mas porque que o senhor não voltava pra pensão. Afinal a dona Chica não gostava do senhor? Esse foi o meu segundo grande erro. O erro de não ser humilde o bastante para aceitar ajuda. Muitos dias já tinha passado, e a vergonha que eu agora sentia por ter sido enganado pela menina Josefine, tinha se juntado a vergonha de ser um mendigo de rua. Eu deveria ter voltado pra pensão naquela primeira noite quando fui atacado pelo João da Sorte. Eu tinha que ter sido humilde pra aceitar a ajuda que Dona Chica queria me dar, mas, pra mim aquilo era uma questão de honra. Eu criei o problema e eu tinha que resolver. Não podia deixar que as pessoas assumissem as conseqüências do que eu tinha feito de errado. Isso não era certo e se eu permitisse como eu iria encarar minha família depois. Como o fracassado que agora eu era é que não podia ser. Mais como que o senhor conseguia viver numa cidade tão pequena e não encontrar as pessoas que te conhecia, como a Dona Chica, por exemplo? Não era muito fácil e por diversas vezes a Dona Chica ficou sabendo do meu paradeiro e mandou me buscar, mas eu fugia das pessoas e me recusava a aceitar qualquer ajuda. Eu sentia muita vergonha e sempre me recusei a voltar. Quando às vezes eu estava andando na rua pedindo comida pra um e pra outro e via que ela estava vindo em minha direção, dava jeito de sair rápido e me esconder. Eram raras as vezes que ela saia da pensão devido a seu grande volume de trabalho e depois de muito tempo e com as minhas recusas ela foi desistindo. Quanto tempo o senhor passou nessa vida? Uns sete ou oito meses mais ou menos! E nesse tempo sua família não ficou sabendo de nada? Eu achava que não, mas, ao contrario do que pensava as noticia chegavam com muita dificuldade ate minha família. Cada vez que eles recebiam noticias minhas, e isso eu só vim saber muito tempo depois, era um período de muita tristeza e de muita vergonha entre eles. E porque eles não tomaram uma providencia? Porque não foram te buscar? Afinal seu pai podia fazer isso. Podia! Podia mais jamais faria! Na sua maneira de ver a situação ele achava que, se eu sai de casa deixando uma vida simples, digna e com o conforto que o local oferecia, aquilo tinha sido uma escolha minha, e, portanto se eu quisesse voltar a decisão também teria que ser minha. Não cabia a ele, ou a minha mãe ou a meus irmãos tomar aquela decisão. Eu tinha que sofrer as conseqüências de meus atos para poder aprender o que era melhor pra mim. Ele tinha razão e eu sabia muito bem disso e por isso não podia voltar. Voltar praquela casa como um fracassado era viver no fracasso pro resto de minha vida. Eu teria que olhar pra meu pai e aceitar tudo que ele pensava mesmo sem concordar. Teria que olhar meus irmãos e não poder oferecer nada de bom que pudesse contribuir com a vida deles. Teria que olhar pra minha irmã Aninha e dizer que a boneca dos sonhos dela continuaria sendo sonho. Tudo aquilo era demais para eu se quer pensar em aceitar. Bem mais tarde eu vim saber que houve dias em que minha mãe quase ficou louca de tanta preocupação comigo. Dizem que ela fez de tudo para convencer meu pai a mandar me buscar, mas ele não aceitava, e ela era obrigada a obedecer. Era assim entre eles. Se houvesse entendimento entre os dois através de conversa, mesmo que as vontades do outro fosse diferente naquele assunto, eles não deixavam de fazer aquilo que foi combinado. No meu caso, talvez por saber que para mim seria uma desonra muito grande, e por saber que nenhum homem consegue conviver com essa desonra, meu pai não aceitou que fossem me buscar em nenhuma das vezes que minha mãe argumentou sobre isso. Deve ter sido um período bem difícil! Foi seu Juca! Foi quase o pior período da minha vida! Porque o pior ainda estava por vir, mas o fato é que naquele momento eu era... Sem nenhuma dúvida! Um mendigo... Só que isso eu conto depois.
André falou isso para finalizar a conversa já que o dia estava terminando e os peões estava retornam ao barraco para pegarem suas toalhas e sabonetes e irem pro riacho tomar seu banho. Ele passou o dia tão envolvido com a história que nem percebeu que a hora estava adiantada e que não teria condições de retornar para sua casa. Devido aos cuidados que precisava tomar sempre que a noite caia, ele e o seu João Cavaco decidiram ficar mais um dia no retiro. Aquilo não era preocupação pois estando dentro de sua casa, onde havia proteção permanente, Luzia e seus filhos não corriam riscos... Fim de mais um dia e a rotina acontecia. O banho no riacho, a espera pela janta, a janta e depois enquanto o cozinheiro lava as panelas afim de deixar tudo pronto para o dia seguinte os homens fazem uma pequena fogueira no terreiro do barraco, se sentam ao redor dela e conversam sobre o trabalho do dia e outros assuntos que podem surgir naturalmente. Não raramente um ou outro, conta um causo, enquanto faz o quilo da janta pra então irem dormir sempre muito cedo. A noite foi relativamente tranquila E o terceiro dia de André no retiro como sempre começou com a rotina dos peões. Levantar, lavar o rosto, comer o quebra torto, pegar suas ferramentas pra amolar e logo em seguida sair pro trabalho. André por sua vez sabia que não podia ficar mais por ali e que teria que voltar rapidamente pra sua casa onde Luzia e seus filhos esperavam. O dia teria que ser bastante produtivo e isso lhe causava uma ansiedade que logo foi percebida por Juca. Quanto ao Seu João Cavaco que era um homem bastante calado, depois de cuidar de seus afazeres de proteção ao patrão sempre acompanhava os peões no trabalho, mas naquele dia ele ficou próximo dos dois homens. Percebendo a apreensão de André, Juca que retornava depois de ter ido ao explanador conferir a quantidade de madeira existente e de dar as ordens do dia, aproximou e perguntou ao patrão qual seria o nome do retiro que seria construído ali. André pensou por alguns segundo e levantando a cabeça respondeu que ainda não tinha pensado naquilo e Juca continuou: Então quer dizer que o senho já foi mendigo? Quem te vê hoje nem imagina! É verdade seu Juca mais a vida dá muitas volta e o que a gente é hoje pode não ser amanhã. E como é que aconteceu essa mudança? Depois que me tornei um mendigo a vida se transformou numa verdadeira bagunça. Parecia até que era alguma coisa feita, e por mais que eu quisesse reagir eu não conseguia. Hoje relembrando de tudo pelo que passei, ou contando a historia, parece tão fácil a solução, mas naqueles dias as coisas foram bem diferentes. Eu poderia ter simplesmente voltado pra casa de meus pais, poderia ter ido para uma fazenda próxima da cidade pra trabalhar, mas por mais que eu soubesse que estas fossem as opções para a solução algo não me deixava ir atrás delas. Eu acho que duas coisas contribuíam pra isso acontecer: A primeira era a vontade de vencer fazendo algo diferente do que eu fazia no sitio Solidão, ou seja, eu não queria continuar levantando cedo, pegando no cabo da enxada, da foice ou do machado pra largar só no final do dia, com as mãos toda cheia de calos. Eu queria mais do que isso. Eu queria poder levantar de manhã, colocar uma roupa boa e seguir em direção a uma repartição pública ou a algum escritório, trabalhar o dia inteiro e de tarde voltar pra casa com a roupa ainda limpa e as mãos sem calos. A segunda coisa que me segurava naquela situação, eu tenho a impressão que era a imagem da menina Josefine. Não sei porque mas, eu acreditava que a qualquer hora ela reapareceria trazendo de volta todo meu dinheiro e me pedindo desculpas pelo acontecido. Isso me obrigava a não me afastar da cidade, mas não dava a calma suficiente para encontrar a solução. Mais parece que mesmo tendo sucesso o senho desistiu do seu sonho porque continua morando na fazenda! Só que agora eu sou o dono e posso pagar pra pessoas trabalhar para mim, o que é muito diferente da situação antiga onde eu teria que trabalhar para outros fazendeiros e na roça. Por mais que seja estranho seu Juca, eu continuo sem uma profissão. Não sou como o senhor que é um grande carpinteiro que sabe construir de tudo. Naquela época havia ali uma situação bastante favorável pra acontecer o que aconteceu em minha vida. Um sujeito vindo da roça, que só sabia trabalhar em serviço de roça, mas que não queria serviço de roça. Um sujeito que queria muito ser funcionário publico ou de algum escritório, mas que nunca tinha estudado. Essa situação foi bastante capaz de me levar a viver tudo que vivi por um bom período enquanto fiquei mendigando e perambulando dentro da cidade passando por coisas ruins. Andei lado a lado com a morte, às vezes por riscos de picada de cobra dormindo no chão naquele resto de construção, ás vezes por pessoas que assustadas com a minha imagem procuravam me afastar delas. A vergonha e a solidão tomaram conta de minha vida, mas o que mais me maltratou foi as vezes que passei fome por vários dias. Esse é o pior sofrimento que um ser humano pode passar. Você sentir a fome te apertar e não ter de onde tirar o alimento, ficar dependendo das pessoas te dar uma sobra qualquer de comida, agüentar a má vontade de uns e até mesmo a crueldade de outros não é tarefa fácil. Mais será que é errado a pessoa querer crescer? Querer melhorar de vida? Eu acho que todo mundo quer isso ora! Certo seu Juca! Eu acho que não é errado querer melhorar de vida. Errado é achar que o campo não pode dar uma vida digna para todos. Antigamente era muito difícil, mas hoje já existe muitas maquinas que pode fazer o trabalho de muitos homens e com isso melhorar o ganho do homem do campo. É isso é verdade! Eu ouvi falar que se a gente quiser, pode plantar e colher toda a roça a custa das maquinas. Só que isso deve ser muito caro não é? Nem tanto seu Juca! Nem tanto! De qualquer maneira, o fato é que por não conhecer essas facilidades que as maquinas podem trazer, eu achava que voltar pro sitio Solidão ia me levar de volta pra mesma vida, e isso eu não queria. Minha decisão de continuar em Alto Araguaia, mesmo estando vivendo como mendigo, trouxe muito sofrimento e maldades, e a que mais me marcou, foi uma vez em que estava acontecendo a tradicional festa de leilão da igreja da cidade e eu resolvi me aproximar. Cheguei ali por perto e fiquei observando sem entrar no meio das pessoas porque eu não queria encontrar nenhum conhecido e também porque eu sabia que se entrasse, logo alguém me expulsaria de lá. O tempo todo eu observei as pessoas comprando coisas de comer e de beber, e cada pessoa que comia alguma coisa assanhava ainda mais a minha fome. Cada frango assado que o leiloeiro pegava e saia em meio as pessoas tentando vender pelo melhor lance era uma tortura para mim que estava a vários dias sem comer direito. As pessoas arrematavam os frangos ou outra prenda qualquer e normalmente não levavam pra casa. Comiam ali mesmo, acompanhado de muita bebida. Havia nesta festa a tradição de uma prenda chamada de bandeijada que ao ser arrematada por alguém, este a levava pra sua casa pra comer junto com alguns convidados que ele selecionava ali mesmo na festa. O senhor já ouviu falar disso seu Juca?. Já... já ouvi falar muito e até já participei da montagem de algumas... O senhor sabe como é que funciona a montagem dela? Não eu não sei! Nunca tinha ouvido falar nisso! Na verdade funciona assim: Quando vai chegando o período da festa da igreja, o padre escolhe os novenistas que ficam responsável pela montagem das bandiejadas. Cada um dos novenistas é responsável pela sua e monta conforme sua criatividade. Nela geralmente tem frango assado, leitão assado, travessa de pastel, de bolo, de doce enfim tudo de comer e de beber. Ai o novenista oferece aquela bandejada pra uma pessoa com muito dinheiro. Aquela pessoa vai tentar arremata em leilão aquela bandejada. Acontece que outras pessoa que também tem dinheiro pode tenta consegui fica com a bendeijada do outro. Se isso acontece, a pessoa pra quem a bandeijada foi oferecida fica envergonhada diante da cidade. Por isso é que o novenista tem que capricha bastante pra pode dispertar o interesse do maior numero de pessoas pela bandeijada dela e assim faze o preço fica bem alto e arrecadar bastante dinheiro pra igreja. É bastante interessante seu Juca. Eu não sabia que tinha tanta importância assim. Tem...Tem muita importância pra nossa gente. Na verdade é uma tradição muito forte naquela cidade e na região! O nome bandeijada é exatamente porque ela é montada numa bandeja de madeira forrada com papel, que mede mais ou menos 0,80x1,20 me feita especialmente praquela ocasião. Pois então seu Juca! Foi por causa de uma dessas bandeijadas que eu passei a maior humilhação da minha vida. Naquela noite eu estava de longe observando tudo e sentindo o cheiro das comidas que haviam por ali. Havia um homem que pelo jeito devia ser bastante rico e que não sei se tinha sido indicado para arrematar uma bandeijada ou se era um desses que tenta arrematar a bandeijada do outro. Era um senhor bem vistoso, bem vestido, e que usava barba. Em determinado momento, ele arrematou uma, e não sei se porque estava acompanhado de várias pessoas que enchiam várias mesas juntas, ou se por outro motivo que eu não sei, ele não levou a prenda pra casa e resolveram comer ali mesmo. Lembro que isso me chamou a atenção porque eu via eles retirarem de dentro dela frangos que eram picados ali mesmo, salgados de diversos tipos e finalmente um leitão assado que parecia uma delicia. Enquanto havia a festa acontecendo eles comeram e beberam daquela bandeijada ,e quando quase todos da festa já tinham ido embora, as pessoas que estavam com ele, e que já eram as ultimas que permaneciam ali, também se levantaram pra ir. Depois que eles saíram e deixaram sobre as mesas que estavam apenas a bandeja de madeira vazia e a sujeira provocada pelos restos, eu acreditando que não seria visto por ninguém comecei a me aproximar do local. Com bastante cuidado fui chegando e observando tudo. Não havia sobrado quase nada, apenas ossos e pedaços de salgados. O pouco que tinha restado ainda dava pra alimentar muito bem um homem que comia mal a muitas semanas e que nos últimos dois ou três dias não tinha comido praticamente nada. Olhei dentro da bandeja e pra minha surpresa o que vi me deixou extremamente animado. Não sei se por não gostarem ou por não terem como cortar adequadamente, eles haviam deixado inteirinha a cabeça assada do leitão. Quando eu vi aquilo, e já estando totalmente descuidado quanto a permissão de minha presença naquele local, não tive duvidas e fui em direção aquela cabeça que mataria a minha fome por aquela noite. Levei minha mão em direção da bandeja pra pegar a cabeça e quando já estava quase alcançando veio uma voz de traz de min falando: Ta querendo o que aqui seu vagabundo? Eu afastei minha mão daquela direção e num relance me virei assustado em direção a voz. Era aquele homem rico que tinha arrematado a bandejada e que tinha voltado ate ali pra procurar uma chave que não estava encontrando. Eu continuei ali parado enquanto ele se aproximou com um olhar firme e constante em meu olho. Foi estranha aquela situação, pois em nenhum momento tive medo dele. Apesar de sua atitude firme e desdenhosa, parece que algo me dizia que ele não tinha intenção de me bater, e por isso continuei firme onde estava, mas sem dizer uma só palavra. Ele continuou andando pro meu lado olhando firme em meus olhos, e passou pro outro lado da mesa. Já do outro lado e sem desviar seu olhar ele ergueu a mão em direção da bandeja, pegou a cabeça do leitão e com a outra mão pegou a chave que procurava e que estava meio debaixo da bandeja. Ergueu a cabeça do leitão como se estivesse me mostrando, e com um simples gesto virou sua mão pra que a cabeça caísse no chão. Eu fiquei ali parado olhando pra cabeça que cai, e mesmo depois de ver ela batendo no chão, não fiquei abalado. Acho que no fundo eu sabia que de uma maneira ou de outra eu iria comer aquela cabeça, mesmo se estivesse suja de terra. Depois que ela caiu ele escorou com as duas mãos na mesa, inclinou o corpo em minha direção passou a mão em minha roupa para limpar a manteiga e falou: “Seu destino ta traçado... amanhã, meia noite, na encruzilhada depois do Ribeirão Claro...” Ele falou isso, retirou um relógio de ouro do bolso da calça, me entregou e saiu como se nada tivesse acontecido. Eu fique um bom tempo parado ali tentando entender o que aconteceu com aquele relógio na mão e olhando para aquela cabeça de porco caída na terra. Movido pela fome que sentia, mesmo sem nada entender, principalmente o porque de um homem que negou me dar aquela cabeça, iria me dar um relógio de ouro e, achando aquilo tão sem importância diante da fome que eu sentia, sem muito pensar dei a volta na mesa, e abaixei pra pegar a cabeça. O local era de chão batido e eu sabia que a cabeça tinha se sujado. Com a fome que eu estava sentindo, aquilo não importava muito. Sentei no chão pra começar a comer o que pudesse e agarrei a cabeça meio que rasgando a pele do porco que a essas alturas já estava fria. Consegui comer alguns pedaços com uma ganância que nem eu sabia que tinha. Comi aqueles pedaços meio que engolindo inteiros e pra facilitar peguei uma garrafa vazia de pinga que estava em cima da mesa, quebrei seu fundo e usei um caco grande para cortar outros pedaços de pele e carne. Depois de um certo tempo naquela luta, com uma pedra redonda que achei por perto comecei tentar quebrar a cabeça pra comer o miolo. Já havia comido um pouco mais a fome ainda estava muito grande. Dei duas ou três pancadas e consegui partir ela de tal maneira que com as mãos puxei as partes pros lados para poder comer o que havia lá dentro. A fome não me deixava nenhuma chance de ser cuidadoso ou higiênico, e sem demora peguei boa parte daquele miolo e comi em mastigadas rapidas. Preocupado que aparecesse alguém eu não sabia se comia ou se olhava pros lados, e quando peguei sem olhar, mais uma porção daquele miolo, senti algo mexendo em minhas mãos. Olhei pra ver o que era e tive a visão mais feia e nojenta que tinha tido ate aquele dia. De dentro da cabeça do leitão onde deveria ter o miolo do qual eu já tinha comido boa parte... Haviam mais ou menos oito ou dez lombrigas solitárias que se movimentavam numa dança vagarosa entre elas... Minha mão também estava cheia daquelas lombrigas, e o susto que eu levei só não foi maior que a reação natural do meu organismo que me fez vomitar o pouco que eu tinha comido e muito mais. Joguei aquela cabeça rachada no chão, levantei meio zonzo pela reação que tive e pela quantidade que vomitei, escorei na parede pra não cair no chão e por um bom tempo fiquei ali tentando controlar meu estomago que insistia em jogar pra fora o que já não tinha. Quando eu já achava que estava me recuperando, o estomago novamente reagiu e a ânsia de vomito tornou a acontecer seguidamente por varias vezes me fazendo caminhar para um canto. Durante esse segundo momento de reação de meu estomago é que me lembrei quem era aquele homem que arrematou a prenda e que provocou aquela situação. Tratava-se daquele senhor que morava na pensão da Dona Chica e que volta e meia eu encontrava me olhando de forma estranha e sem explicação. Eu não o havia reconhecido porque agora ele ostentava uma barba serrada muito bem cuidada. Depois de me lembrar quem era aquele homem e me sentindo muito fraco devido as reações que tive, ajoelhei no chão diante daquela coisa horrorosa que estava jogada ali, olhei bem pra ela e certifiquei que aquilo era real. Após olhar algum tempo e estando ainda de joelhos, abaixei minha cabeça, e mais uma vez me sentindo derrotado, sem que eu pudesse controlar comecei a chorar compulsivamente. Durante uns cinco minutos enquanto chorava tendo o silencio como companheiro, pela minha cabeça passou toda minha história, desde quando eu me entendi por gente até aquele momento que certamente eu jamais esqueceria. Vi minha vida simples porem cercada de respeito, vi meus irmãos sempre amigos e cuidadosos me dando conselhos pra que eu esquecesse essa história de sair de casa, vi meu pai sempre sério, mas muito correto, me lembrei das poucas rezes que eu tinha e que havia ficado sob o cuidado de meus irmãos, vi meu cavalo baio bem arriado que sempre serviu o sitio e principalmente a mim. A cada imagem que surgia em minha cabeça eu me sentia mais humilhado e derrotado por saber que eu não precisava passar por tudo aquilo. O desespero cresceu ainda mais quando me lembrei da imagem de minha irmã Aninha me pedindo uma boneca e da minha palavra garantindo a minha mãe que devolveria em dobro o dinheiro que ela havia me emprestado e que agora eu já não tinha. Com essas duas ultimas imagens povoando repetidamente minha cabeça, fiquei tão desesperado que meio que por instinto levantei minha cabeça como se procurasse por Deus e dei um enorme grito como se pedisse socorro... Naquele momento Juca que ouvia a historia atentamente, mas com certo nojo do que André narrava, observou as lagrimas que encherão os olhos de seu patrão que foi silenciado por um tempo ao engasgar, e então interferiu. Meu Deus do céu! É muita humilhação pra qualquer ser humano!... É seu André... Quem vê o sinhô hoje não imagina que sendo ainda tão novo, já passo por tanta coisa assim! O tempo que Juca levou para falar isso tentando encontrar as palavras certas que pudessem confortar André, foi o bastante para ele se recuperar da engasgada e continuar. Alguns segundos depois voltei a realidade, e me lembrei que estava em um barracão de festas e que podia haver outras pessoas por perto. Comecei a me levantar depois de enxugar as lagrimas que correrão pelo meu rosto e tomei a direção que me levava pra meu esconderijo. Ao sair olhei pra cabeça do leitão jogada no chão, mas não dei muita atenção a ela já que estava muito abalado com o que aconteceu, e principalmente, com as imagens que vi. Quando já estava quase saindo do barracão uma ultima imagem me veio a cabeça e acabou por me chamar bastante a atenção. Nela aparecia aquele senhor de barba pegando não do chão, mas de cima de uma bandeja, a cabeça do leitão totalmente limpa e pronta a ser comida, e me oferecendo com toda boa vontade. A imagem era absurda, mas parei minha caminhada e por alguns segundos fiquei tentando definir se devia ou não dar atenção a ela. Mesmo não querendo olhar mais praquela cabeça, me virei pra traz em direção a ela e, pra minha surpresa, ela não só estava numa bandeja, mas também estava sobre a mesa, aberta pelas pancadas que eu havia dado e com o miolo totalmente limpo e com um aspecto delicioso. Fiquei olhando estarrecido sem querer acreditar, mais a curiosidade foi maior e acabei me aproximando da mesa com bastante desconfiança. Enquanto eu caminhava em direção a mesa observei bem a meu redor pra ver se via a pessoa que em tão poucos segundos, entre o momento que me levantei do chão e a minha quase saída do barracão, havia pegado a cabeça, limpado e colocado na bandeja sobre a mesa. Não vi ninguém e resolvi ir embora sem tocar nela, e mesmo estando sentindo a fome que sentia, certamente ela não seria de maneira nenhuma a refeição que eu desejaria por muito e muito tempo. Virei em direção a saída e comecei a caminhar cabisbaixo e pensativo em tudo aquilo que estava acontecendo e enquanto caminhava, a cada dez metros mais ou menos eu olhava pra traz pra ver se aquela cena da cabeça na bandeja sobre a mesa era real, e a cada vez que olhava constatava que ela era sim muito real. Na terceira vez que olhei porem, outro susto ainda maior, pois dentro do barracão onde tudo havia acontecido, não tinha apenas uma pessoa, como antes imaginei. Ali havia pelo menos vinte ou trinta pessoas que comiam e bebiam alegremente e que participavam de uma festa que jamais havia sido interrompida por nenhum mendigo faminto, e muito menos por nenhuma cena de nojo. Ao ver aquelas pessoas ali agindo normalmente, dei alguns passos em direção a elas pra ir ate lá tirar aquilo tudo a limpo, mas fui contido pela impressão que tive de que tudo aquilo não tinha passado de um sonho e que o melhor a fazer era ir pro resto de construção onde eu morava e caçar jeito de dormir.
E foi o que fiz! Fui embora andando a passadas largas e tentei esquecer tudo aquilo. Depois que cheguei e que me deitei, por mais que eu tentasse, as imagens e as duvidas povoavam minha mente. De todas as imagens porem a que mais martelou minha cabeça foi a daquele senhor me dizendo aquela frase de forma tão firme quanto ele tinha dito. Parecia que ele sabia o que falava e que sabia o que era melhor pra mim e que iria insistir pra não me deixar outra escolha. Aquela noite passou com muita dificuldade já que eu não consegui dormir analisando minha vida. Quando amanheceu o dia trinta e um de dezembro de mil novecentos e quarenta e cinco, depois de ter dado um único cochilo pouco antes de o sol nascer, acordei me sentindo bastante cansado. Por alguns momentos me senti aliviado por imaginar que tudo aquilo havia sido apenas um sonho ruim e minha vida ainda era a mesma de quando sai do sitio solidão, mas a realidade começou a me trazer a verdade de vagar. Primeiro foi o cansaço e a fome que me deu a certeza de ser um mendigo e de estar ali naquele lugar apenas sonhando com coisas do tipo festa de santo, bandeijada e cabeça de porco com lombriga no lugar dos miolos. Em seguida logo após me levantar de meus caixotes, a certeza da desonra que eu certamente representava pra minha família. E por ultimo, ao abaixar pra pegar uma velha panela pra tentar fazer nela um café sem açúcar, senti algo pesado no bolso do velho paletó que tinha ganhado de um senhor em uma de minhas mendicâncias. Não me lembrava de ter colocado nada pesado assim no bolso e curioso enfiei a mão pra ver o que era. Pra minha total e espantosa surpresa, tratava-se de um objeto de metal, redondo e muito liso e que ao ser retirado do bolso revelou ser aquele antigo relógio de ouro que o senhor havia me entregado dentro daquele delírio na noite anterior quando voltou até o barracão. Fiquei imensamente assustado por saber que aquele relógio era a prova definitiva de que tudo aquilo não tinha sido sonho e que, portanto, por mais estranho que pudesse parecer aquele fato eu tinha que levar em consideração. Cabia a mim definir que caminho tomar e o que fazer dali pra frente diante daquela realidade que se apresentava. Mas como aquilo tudo podia ser realidade? Como as coisas que existiam deixavam de existir e as que não existiam passavam a existir de uma hora pra outra? Aquilo tudo era muito estranho e confuso e o pensamento sobre esse assunto me tomou quase toda a parte da manhã tentando entender o acontecido. Já quase no final da manhã e depois de muito pensar e nada entender, me lembrei novamente da frase dita pelo senhor na noite anterior, e que dizia que era pra eu estar na encruzilhada depois do Ribeirão Claro até a meia noite. Acontece que para eu poder estar naquele local, naquele horário sem ter nenhum tipo de transporte, eu tinha que sair da cidade até o meio dia pra conseguir ir a pé, minha única opção, e chegar no tempo certo. Em outras palavras eu tinha pouco tempo pra tomar a decisão de ir ou não aquele encontro que eu não havia marcado, mas que agora me parecia ser o compromisso mais sério que tive ate aquele momento de minha vida. Fiquei pensando por um bom tempo e descobri que havia algumas dificuldades para aquela ação, sendo uma das maiores, a fraqueza que eu sentia devido à fome de vários dias. Como eu poderia andar quase duas léguas a pé sem ter me alimentado e pra que. A curiosidade que tomou conta de mim desde que aqueles fatos começaram a ocorrer, crescia cada vez mais, e eu sentia grande necessidade de saber o que eu podia encontrar naquele local. Quanto à fome, eu sabia exatamente onde buscar a solução já que desde que sai da pensão Boa Viagem passei por muita dificuldade mas sempre encontrei algumas boas pessoas que não me negavam um prato de comida. Se eu passava fome, muitas vezes era por vergonha de sair pela cidade pedindo ou por já não pensar como deveria. Trabalho braçal naquela época nunca faltava e uma coisa que jamais poderia ser dita é que os moradores dali eram maldosos. Certamente eu conseguiria me alimentar naquele dia e, diante de minha grande curiosidade acabei por sair a busca da comida pra tentar ganhar forças pra fazer aquela caminhada até a encruzilhada que ficava depois do Ribeirão Claro e próximo a Biquinha, um conhecido ponto de parada para viajantes. Tomei as iniciativas necessárias e quando já era aproximadamente duas horas da tarde eu já tinha comido um bom prato feito e me dado por uma conhecida família que morava depois do Boiadeiro, e já estava na estrada de chão que levava ao local marcado. Não demorou muito pra minha cabeça ficar povoada com as mais diversas preocupações sobre o que aconteceria quando eu chagasse aquela encruzilhada. Em vários momentos enquanto caminhava me vieram imagens de causar medo e por mais de uma vez, com medo, pensei em voltar. Apesar disso para quem estava perdido e envergonhado como eu, nem mesmo a possibilidade de perder a vida era o bastante pra me afastar de mais aquele risco que estava por correr. Medos e preocupações eram deixados pra traz sempre que em minha mente vinha a lembrança da frase dita por aquele senhor em meio a confusão daquela cabeça de leitão, daquelas pessoas que sumiam e reapareciam sem mais nem menos. A todo instante eu parecia ouvir ele dizer: “Seu destino ta traçado... amanhã, meia noite, na encruzilhada do Ribeirão Claro...” Era inevitável a busca pelo significado daquela frase. O que ele quis dizer? Que pra mim não havia solução e que eu deveria me conformar com a vida que tinha levado nos últimos tempos? Ou será que ele estava me dando uma nova oportunidade de desfazer os erros que havia cometido? Ao me lembrar desses erros, o de me apaixonar por uma menina que não conhecia e de não pedir ajuda e por vergonha me tornar um mendigo, foi inevitável que por uma boa parte da estrada me lembrasse do que vivi com a Josefine. Me lembrei daqueles olhos azuis, daquele corpo maravilhoso que eu achava que nunca mais veria outro igual e que ficava ainda mais bonito dentro do vestido reto que sempre usava, daquele jeitinho meigo e carinhoso de agir comigo. Me lembrava da pele macia e do que eu sentia quando tocava nela. Como era bonita aquela danada, pensei, e como ela foi capaz de fazer aquilo comigo? Não pude deixar de sentir uma dose de raiva que acredito nunca chegaria a ódio porque apesar do tempo que fazia que ela tinha ido embora, eu ainda pensava que ela voltaria para desfazer aquele engano. Eu sabia que por mais que minha história com ela me levasse ainda mais baixo do que eu já estava, aquela garota e os momentos que vivemos, seria sempre muito especial. A minha caminhada continuava e mesmo a bela imagem de Josefine não foi bastante para retirar de minha cabeça aquela frase que me trazia pra realidade. “Seu destino ta traçado... Sempre que de novo ouvia, apertava mais o passo na tentativa de garantir minha chegada ao local marcado dentro do prazo dado. Assim foi a caminhada rumo ao desconhecido que, a todo momento me deixou com medo mas também, com uma sensação de confiança no futuro. Por mais estranho que parecia tudo aquilo, por mais que eu soubesse que não se tratava de coisa correta, pra quem estava na minha situação, não via grande perigo no que eu estava fazendo. A impressão que eu tinha era que por mais que fosse perigoso, a minha proteção que nesse momento eu não sabia de onde vinha, ou se ainda tinha não me deixaria sofrer mais. Essa certeza irresponsável foi a força que encontrei e que me permitiu levar minha caminhada até a encruzilhada que existia naquela estrada, local marcado pelas palavras daquele senhor com aparência elegante e com atitudes estranhas. Também durante a caminhada, tantos pensamentos vieram a minha cabeça, e as vezes sobre minha família e a vergonha que eu sentia só de imaginar se eles soubessem como eu estava vivendo, as vezes sobre Josefine e sua beleza destruidora, mas na maioria das vezes sobre aquele senhor. O fato é que foram tantos os pensamentos que nem percebi a rapidez com que estava andando e que me fez chegar ao local marcado muito antes do prazo. Cheguei a encruzilhada era mais ou menos umas dez e meia da noite e logo que identifiquei que aquele era o local procurei identificar alguma presença mas nada tinha ali. Sem saber o que fazer, pois não havia nenhuma instrução, acabei por me sentar um pouco pra descansar da noite mal dormida e do dia inteiro de caminhada. A noite estava muito escura e apesar da lua não estar aparecendo eu estava enxergando quase tudo e não entendia como isso era possível. Era mais um mistério entre os tantos que tinham acontecido desde a noite anterior e os tantos que estavam por acontecer. Apesar de minha estranheza com aquele fato, não dei muita importância e tratei de achar um lugar e uma posição melhor pra ficar. Ao lado da estrada que formava um dos braços da encruzilhada, havia uma arvore imensa que ficava ali como se fosse dona absoluta daquele lugar pelo tamanho que tinha. Sem muito pensar fui pra debaixo dela, me sentei no barranco formado na construção da estrada e que me permitia escorar em seu tronco. Alguns minutos se passaram e o cansaço da caminhada somado com o sono me fizeram cochilar bastante rápido. Durante aquele primeiro cochilo tive um pequeno sonho e nele eu via minha mãe chorando e lamentando a minha perda. Ela estava ao lado de um caixão porem dentro dele não havia ninguém, e ao mesmo tempo em que ela olhava pra dentro do caixão, ela erguia a cabeça pra reclamar com alguém que estava de costas como se essa pessoa fosse a responsável pela minha perda. Os lamentos dela se repetiram umas duas vezes e a pessoa que no meu sonho continuava de costas, gritou com voz de taquara rachada, alguma coisa que colocava o fato de minha mãe ter me dado aquele dinheiro, como sendo o responsável pela minha perda. No sonho fiquei com a impressão que aquela era uma pessoa conhecida, mas acabei por não saber quem era porque assustado acordei num salto enorme. O susto me levou a um estado de alerta total que me fez perceber que naquele local, alem de minha respiração e batida de coração, não se conseguia ouvir mais nada. Não sei bem quanto tempo durou o meu cochilo e em meio a tamanho silencio, pensei sobre o que significava aquele sonho e quem era aquela pessoa com quem minha mãe falava e que insistia em acusá-la por minha perda. Depois de pensar um pouco, mais calmo conclui que se tratava apenas de um pesadelo bobo onde eu tinha morrido e não tinha ninguém no caixão. Minhas preocupações em tentar identificar aquela pessoa deixaram de existir quando aquele silencio todo começou a ser quebrado por um som bastante conhecido, mas que se apresentava um pouco estranho. Vindo no sentido contra o relógio, o barulho aproximava-se cada vez mais, mas agora ao contrario de quando cheguei, eu não conseguia ver nada devido a uma escuridão repentina. Tratava-se do chamado de uma galinha quando quer reunir seus pintinhos e fica cacarejando insistente. Eu não podia ver o que estava acontecendo, mas podia identificar a aproximação cada vez maior daquela algazarra devido à intensidade dela. Depois de uns trinta segundos, comecei a perceber porque me parecia tão estranho aquele movimento, pois sempre que a galinha fazia seu chamado, ao invés de ter resposta de seus pintinhos, o que seria o normal, havia resposta de leitãozinhos famintos e barulhentos. A algazarra foi crescendo e quando o barulho era tão grande que parecia estar a poucos metros de mim, estranhamente comecei a enxergar e pude identificar aquela bagunça. Era realmente uma galinha quase pelada e com poucas penas vermelhas como brasa, acompanhada de doze leitãozinhos carijós que de tão estranhos tinham chifres como vaca. A estranheza era muitas vezes maior que o medo causado por aquela cena. Eu sabia que uma galinha não poderia me fazer nenhum mal, e realmente não fez, mas quase sujei minhas calças quando ao passar por mim, o ultimo leitãozinho parou, se virou de frente pra mim e falou: Ele já esta vindo pra assinar o contrato! Naquele momento eu que já estava de pé acabei quase subindo de costas na arvore devido à postura que fui tomando enquanto tudo acontecia. O susto foi tão grande que não me lembro se mais alguma coisa foi feita ou dita por ele, sei apenas que quando consegui retomar a calma, ele assim como os outros onze, já estavam novamente andando em fila atrás daquela galinha quase pelada que continuava insistindo com seu chamado como se estivesse acabado de tirar sua ninhada. Quanto a mim que estava com as costas tão pregadas na arvore e com os braços passados em volta dela, de vagar fui retornando a posição que antes havia me permitido descansar. Refeito do susto comecei a imaginar o porquê daquela situação tão estranha. Galinha não tem teta como ela poderia dar de mamar praqueles leitões? Será que eles tinham perdido sua mãe e acabaram sendo adotados por aquela galinha, ou será que aquilo era feito de propósito para me assustar? Os chifres provavam que aqueles eram seres criados com objetivo de testar a coragem de qualquer humano que os visse. De qualquer maneira eu sabia que a resposta não viria deles apesar de um deles ter falado comigo, coisa que eu jamais achei que um dia falaria pra qualquer pessoa neste mundo, e portanto naquele momento me restava apenas tentar manter a calma. Mais isso passou a ser o problema. A partir dali qualquer coisa que se mexesse, mesmo que fosse uma folha caindo, certamente me daria outro susto como aquele. Naquele momento fiquei muito influenciado em desistir de tudo e retomar a minha vida de mendigo que não era nada fácil mais que era menos estranha do que o que eu estava vivendo, mas eu não sei de onde veio, mas a calma chegou e consegui ficar com ela por mais uns quinze ou vinte minutos, ate que novamente comecei ouvir barulhos vindos do mesmo lado, mas desta vez pareciam menores. Assustado mesmo assim, me levantei e desta vez me preparei pra que se fosse necessário tentar subir na arvore para me proteger do que fosse que estivesse vindo. Dentro da escuridão, sem poder ver ou ouvindo nada, aquele barulho que parava e continuava, me deixava ansioso e fiz a única coisa que podia fazer, aguardei ansioso. Quando finalmente pude ver, constatei que era apenas um porco perdido na estrada e que devia pertencer ao morador mais próximo. Mantive meu alerta mesmo assim porque parecia ser um cachaço, e eles costumam não ser muito amigo, porem ele passou por mim, e eu já esperava algo estranho quando ele parou perto e ergueu seu focinho para sentir o cheiro no ar, mas ao contrario ele seguiu seu caminho. As estranhezas daquela noite, porem não tinham acabado, e tempos depois ouvindo novamente outra algazarra, levei outro susto e descobri agora não se tratar de um porco mas, de uma porca carijó recém parida que caminhava acompanhada não pelos seus leitões mais, por doze pintinhos cor de brasa que tinham suas unhas que pareciam ser de fogo, e que certamente eram as crias daquela galinha que havia passado algum tempo antes. A porca veio caminhando devagar e quando já estava quase passando por mim se deitou no chão, onze pintinhos se amontoaram em cima dela e começaram a mamar em onze tetas. Fiquei ali abobado observando aquela cena totalmente estranha e depois de ter certeza que aquela porca não me oferecia perigo, e de ouvir o décimo segundo pintinho repetir a frase do porquinho. Era muito estranho ver galinha acompanhada de porquinhos, e ainda mais estranho ver porca protegendo pintinhos. Normalmente porcos costumam comer pintinhos quando eles entram dentro do chiqueiro, mas naquele local isso se mostrava muito diferente da realidade. Ao perceber o quanto aquilo era realmente difícil de acontecer, comecei e perceber algo que desde o inicio daquela jornada de certa forma eu já sabia. Não se tratava de uma força positiva querendo me ajudar, tratava-se de uma armação das forças do mal que com a proposta de ajuda estava tentando me conquistar pra eternidade... Neste momento André foi interrompido mais uma vez por Juca que se antecipou a ele dizendo: Era o diabo querendo compra sua alma! É isso mesmo seu Juca... É isso mesmo! E quando aquilo começou a clarear em minha cabeça, minha primeira reação foi de sair dali o mais rápido que eu pudesse e, sem demora tomei o rumo de volta, mas poucos metros dali me veio novamente todas aquelas imagens do que nos últimos tempos tinham me atormentado e me deixado desesperado. As imagens de minha mãe me dando aquele dinheiro, de minha irmãzinha me pedindo uma boneca, de meu pai me aconselhando e de meus irmãos todos orgulhosos, e de certa forma até com inveja de mim... O grande período como mendigo... Isso tudo me fez repensar. Eu sabia que não podia desistir naquela hora mesmo tendo quase certeza de que se tratava de coisa ruim. Eu tinha que tentar porque aquilo podia ser a única solução que me salvasse da vergonha que eu representaria diante de minha família e dos visinhos de meus pais, lá no sitio solidão. Mesmo sabendo que podia estar cometendo mais um erro em minha vida, eu não via outra solução, e sendo assim me virei de frente para o braço da estrada de onde vinham aqueles barulhos feitos por aqueles animais trocados e comecei a caminhar para me sentar novamente debaixo da grande arvore. Não tive tempo de me sentar pois mal havia dado cinco ou seis passos naquela direção, comecei a escutar outro barulho que neste caso logo identifiquei como sendo dos cascos de um cavalo marcando uma marcha repicada como eu nunca tinha ouvido antes. Parei em pé no meio da encruzilhada e fiquei aguardando que o tal barulho chegasse mais perto pra eu ver se desta vez também era alguma coisa estranha como as que tinham acontecido antes. A bonita marcha repicada do animal foi ficando mais forte nas mesmas medidas que minha curiosidade e medo do que poderia acontecer. Desta vez porem ao contrario das outras duas vezes, o medo que eu sentia não tinha a mesma força nem o mesmo resultado pois havia em mim uma crença de que mais estranho que as outras, aquela nova situação não podia ser. E não foi mesmo! Diante de mim, vindo do meio da noite escura, comecei a enxergar um vulto branco, cercado de uma claridade que saia do centro para os lados e de baixo pra cima com uma força imensa. Aquele vulto foi chegando perto e iluminando toda a estrada e também a encruzilhada como se fosse a lua cheia que tivesse caído e estivesse rolando pro meu lado. Eu nunca tinha visto nada tão forte e tão bonito quanto aquela imagem e por isso fiquei meio bobo sem ter reação, apenas observando sua aproximação. A medida que a luz se aproximava de mim, ela diminuía de intensidade e eu podia perceber melhor do que se tratava e depois de um curto tempo identifiquei um homem vestido num terno branco muito bonito e montado num cavalo também branco e tão bonito e vistoso quanto eu jamais imaginei que pudesse existir. Eles vieram em minha direção, firmes naquela marcha picada como se não fossem parar enquanto eu continuava ali parecendo uma estatua, surpreso e sem ação. Só reagi quando ele, na maior naturalidade e altivez, puxou as rédeas em sua direção e fez “psiu” pro cavalo que parou em cima das quatro patas. Nesse momento mais uma estranheza aconteceu, aquela luz tão forte e brilhante que vinha quase que transportando ele e seu cavalo, sumiu como que por encanto me dando a imagem daquele senhor, bem vestido e com olhar meigo que sempre me observava lá na pensão Boa Viagem, e que depois estava de barba e me deu o relógio de ouro na noite anterior. Dei alguns passos e fui pro lado dele e de seu cavalo. Olhei pra ele por alguns instantes meio sem acreditar perguntei: O senhor? Eu mesmo André! Surpreso? Por quê? O tempo todo você sabia! Nossos encontros nunca deixaram duvidas! O que você sentia. O que você, e só você via, mas você sempre fez questão de ignorar! Não é verdade? Eu não sabia de nada e ainda não sei! Ele apeou de seu cavalo, bateu a mão na taba do pescoço dele e falou: Ventania! O cavalo obedeceu prontamente afastando e dando a volta pra ficar atrás de mim enquanto ele continuou dizendo: Sim André... Você sabia... Você sempre soube! Naquele dia quando você pegou aquele dinheiro na mão de sua mãe, o seu medo era o aviso “dele”, tentando te afastar de mim, mas você não deu importância! A sua insistência em vir morar na cidade sem ter profissão e sabendo que seus pais não queriam, era eu, te mostrando o quanto eu te queria! Aquela visão que você teve na pensão quando dona Chica conversava com você e você percebeu mas não acreditou devido à preocupação com Josefine. E a Josefine... Doce, e deliciosa Josefine... Ela é o meu melhor trabalho... Deliciosa, provocante... Ela foi feita pra convencer, e sempre consegue convencer... Minha reação naquele momento foi de pura decepção porque eu ainda acreditava que Josefine voltaria a qualquer hora explicando tudo que tinha acontecido e pedindo desculpas. Minhas esperanças acabaram quando ele completou com orgulho! Com Josefine eu tenho certeza que consegui superar “ele”! Ainda me lembro de sua cara no dia que a viu pela primeira vez sentada em frente a pensão! Acho até que senti dó de você, parado ali feito bobo! Você ficou tão esbabacado que não conseguiu sentir o maior dos sinais que “ele” te enviou... Que sinal foi esse? As pernas bambas e o seu desejo de fugir dali! O que parecia medo e vergonha da moça era na verdade, “ele”, através de seus malditos anjos, te puxando para traz para te tirar daquele lugar. Ah! Mais os olhos azuis de Josefine foram muito mais fortes... Alem disso no outro dia de manhã ele te fez errar as orações... Eeeeecccooo!... Por três vezes. Se lembra? Achei que ele ia conseguir, mas você não percebeu... Você não quis perceber! Então você é... Você é o diabo? Ele se curvou fazendo uma reverencia elegante e respondeu: O próprio! A seu dispor! Quem você esperava encontrar aqui numa encruzilhada, a meia noite de trinta e um de dezembro, em plena escuridão? Um padre idiota qualquer? Mas... Eu pensei que... Todos pensam André! O mundo todo pensa! Todos acham que o diabo é feio, cheio de perebas por todo o corpo, com chifres enormes na testa, rabo, cascos de cabrito ou de carneiro...Se eu quiser posso ser, olhe! Apenas em um gesto onde ele passava os dois braços, um de cada vez, sobre a cabeça, em questão de segundos ele passou por diversas transformações. Seguindo a seqüência das imagens daquilo que ele tinha falado e terminando com duas imagens sua na forma como estava se apresentando a mim só que em cores diferentes. Suas roupas antes brancas, assim como seu cavalo, se transformaram primeiro na cor preta, fazendo com que o local ficasse tão escuro que não se podia enxergar um palmo a frente do nariz, e na segunda na cor vermelha que mais parecia que saia fogo de seu corpo e de seu cavalo que apesar de estar atrás de mim emitia tanta claridade que eu conseguia perceber. Esta é a imagem mais adequada pros primeiros encontros! Alias está faltando algo importante! Me devolva meu relógio! Enfiei a mão no bolso do velho paletó, retirei e entreguei o relógio de ouro pra ele que o colocou de volta no bolso da calça, enquanto falava. A vida inteira me passo por bonzinho, apenas pra conduzir as coisas como quero. E então, gostou? Como pode ver eu sou tudo aquilo que as pessoas pensam, mas posso ser aquilo, ou aquele que as pessoas nunca pensam também! Eu posso estar ao lado de alguém que eu quero sem que essa pessoa saiba. Eu posso ser o patrão que não deixa o empregado crescer. Posso ser o amigo que fala que ajuda, mas que por traz atrapalha. Posso ser o amante, ou a amante que jura que ama mas que quando o outro vira as costas só pensa em destruir aquilo que ele é de verdade pra fazer com que ele ou ela seja o que s quer! Posso ser tudo! Agora vamos parar com conversa fiada e vamos aos negócios! Você sabia sim que vinha aqui pra fazermos um trato! Você veio me vender sua alma em troca de ficar rico, portanto o trato é... Eu te faço ficar rico e poderoso e te dou mais, digamos um ano de vida a partir de hoje e ai venho te buscar! Aceita? Não! Respondi assustado. Um ano é pouco! De quanto você esta falando quando diz rico e poderoso? A quantidade que você conseguir juntar em um ano! Um ano é pouco! Como você quer ganhar dinheiro? Eu não sei... Com jogo! Com baralho, no jogo de truco. Eu quero ser o maior truqueiro deste país! Então um ano não é pouco porque se jogar bem, e vai jogar muito bem, da pra juntar uma grande fortuna! Um ano só é pouco, eu ainda preciso viver com minha família e... Sem família! Eu aumento pra dois anos porem nada de família. Apenas uma carta onde você irá dizer que esta bem e como quer que eles apliquem o seu dinheiro. Assim eles ficam na esperança de que você vai voltar e não desconfiam de nada. O trato é esse! Se você aceitar basta passar em um armazém, e comprar um baralho virgem. Antes de jogar, antes mesmo de tirar seu lacre, peça pra seu adversário assoprar nele. Use uma brincadeira dizendo que é pra dar sorte! E pronto você jamais perderá uma partida! Em um ano... Brincadeirinha... Em dois anos, menos cinco dias, volte aqui neste mesmo local nesta mesma hora. Um amigo meu vira te buscar... De que adianta ficar rico e não poder desfrutar? Esse trato não traz vantagem nenhuma pra mim. Adiantará não ficar rico e ser a vergonha de sua família? Você não tem muito pra negociar! Sua moeda é única! Você não tem duas almas, é pegar ou largar! Ele falou isso e fez sinal pro cavalo Ventania que veio ate ele, e num salto já estava em cima do arreio. Ele virou o cavalo e antes de sair recomendou: Há! O meu amigo que vem te buscar é meio temperamental, portanto antes de vir pra cá passe em um armazém e compre cinco quilos de carne, cinco quilos de frutas e cinco litros de leite, mas preste atenção! Quando ele pedir carne, dê frutas! Quando ele pedir frutas, dê leite! E quando ele pedir leite dê a carne! Ele sofreu um acidente e depois disso ficou meio confuso. E se eu não quiser o trato? O que acontece? A sua vida de mendigo te espera... E você não vai lembrar de nada sobre o nosso encontro! Chegando na cidade você tem duas opções: Ir até a igreja, e rezar pra ver se “ele” te dá o dinheiro que quer, ou pode comprar o baralho e com certeza, ter o dinheiro que quiser! Ele disse aquilo e cutucou as costelas do Ventania fazendo com que ele arrancasse com tamanha velocidade que desapareceram em segundos levando com eles aquela luz forte da chegada. Eu continuei em pé durante algum tempo meio perdido diante de toda aquela situação e só depois de uns dez minutos é que reagi. Caminhei para um barranco do lado oposto da estrada e me sentei olhando para aquela grande arvore.
Comecei a pensar em tudo que havia acontecido e por mais estranho que aqueles fatos tinham sido, e por mais que me causassem medo, uma frase ficou muito forte em minha cabeça. Eu não conseguia esquecer dele dizendo que minha vida de mendigo estava me esperando na cidade de Alto Araguaia. A cidade que dez meses antes eu tinha visto pela primeira vez e que tinha me causado uma das mais gostosas surpresas de minha vida, agora podia representar o meu tumulo como cidadão me deixando pra sempre como mendigo. Mil pensamentos passaram por minha cabeça e neles pude ver tudo aquilo que era importante pra mim, meus pais e irmãos, a honra o desejo de vitória. Eu podia ser simples e aceitar me tornar apenas mais uma história de filho pródigo voltando pra casa derrotado, de cabeça baixa, mas humilde o bastante pra admitir que meu pai estivesse certo em nos manter ali no sitio Solidão. Esta porem era uma atitude que só poderia ser tomada por um homem correto e com um enorme desejo de acertar o que certamente não foi o meu caso e neste momento eu cometi meu terceiro e ultimo erro. Levantei daquele barranco e sem pensar em mais nada caminhei em direção a cidade com tamanha firmeza que não senti a rapidez com que isto aconteceu. Logo que o dia amanheceu lá estava eu dentro de um armazém comprando uma caixa de baralho virgem conforme as instruções que havia recebido. Usei alguns poucos réis que tinha ganhado nas minhas mendicâncias para comprar aquele baralho que depois guardei com enorme cuidado dentro do bolso pra que ninguém pudesse ver ou tocar nele. Sai dali animado com o que eu imaginava que estava pra vir, e quase que por instinto fui direto praquele resto de construção que havia sido minha morada nos últimos tempos. Nem percebi que havia chegado e quando me dei conta estava sentado em meu caixote de madeira me organizando pra começar aquela nova vida que estava prometida, porem uma coisa me chamou a atenção. Eu era um mendigo, não tinha roupas boas, estava barbudo, cabeludo e fedia mais que um gambá, então como é que eu ia fazer pra poder chegar ao local onde os jogos deviam acontecer? Ali estava um grande problema pensei, mas na verdade este era o menor deles, pois mesmo que eu resolvesse essa questão, como eu faria pra entrar num jogo apostado sem ter nenhum dinheiro e muito menos bens de valor para poder empenhar ou mesmo colocar na disputa? A animação que havia tomado conta de mim momentos antes desapareceu rapidamente e sem ver uma saída imediata continuei sentado ali por algum tempo tentando descobrir uma forma de resolver aqueles problemas e dar continuidade ao meu “projeto” de vida dali em diante. Não demorou muito e logo as idéias foram aparecendo. Quanto à roupa pensei, é só procurar aquelas pessoas que sempre me dão comida e que moram naquela chácara do outro lado da ponte, eles sempre me atende e não será hoje que não vão fazer isso, mas, ainda fica faltando a parte da aposta que neste caso tem que ser um bom valor pra despertar o interesse dos adversários. Ao imaginar que aquela família do outro lado da ponte me daria as roupas que eu precisava, a certeza de ser atendido era tanta que eu me levantei para sair. No movimento natural de quem quer se organizar enfiei a mão no bolso, e pra minha surpresa, estava lá nada mais nada menos que aquele relógio de bolso totalmente de ouro que havia sido deixado por aquele senhor duas noites antes. Como podia ser se eu tinha certeza de ter devolvido ao diabo na noite anterior? Este era outro mistério que certamente não tinha explicação mais que agora eu já sabia de onde vinha e que, portanto não me causava mais estranheza. Estava tudo dando certo e sem mais pensar, sai dali rapidamente em direção a chácara do outro lado do Boiadeiro onde eu certamente conseguiria a roupa que precisava. Duas horas depois, lá estava eu dentro de um poço mais afastado no córrego Boiadeiro tomando um banho e me preparando pra me transformar em outra pessoa. Havia uma preocupação quanto à imagem que eu carregaria dali pra frente, pois eu nem podia ser o mendigo que todos se acostumaram a ver como também não podia ser reconhecido como André, o rapaz que há tão pouco tempo havia chegado à cidade e que tinha desaparecido depois daquela noite com Josefine. Assim sendo, eu precisava criar uma nova imagem que conseguisse desviar a atenção das pessoas sem provocar um alvoroço capaz de fazer as pessoas indagar muito a meu respeito. Depois de tomar um bom e demorado banho no córrego e depois de vestir as roupas que havia ganhado, voltei ao resto de construção onde em um pequeno pedaço de espelho que eu guardava, pude dar uma observada e constatar que meu novo visual ainda não era aquilo que eu precisava. Passei o resto do dia por ali imaginando o que deveria fazer para conseguir meu objetivo mais imediato, e já quase no final do dia tomei a decisão de agir de uma maneira para a qual nunca fui ensinado. Depois de muito pensar decidi que teria que roubar os objetos que necessitava para a montagem da imagem que eu achava adequada com o que eu faria dali em diante. Esperei a noite cair e já vestido com aquela nova roupa sai em busca dos objetos que precisava. Os moradores tinham hábitos simples e despreocupados, e, portanto não tinham a necessidade de guardar seus objetos dentro de casa ou trancados. A honestidade e a confiança nas pessoas eram coisas absolutamente naturais e por isso não foi nada difícil encontrar um bom par de botas, um alforge e um chapéu de couro com qualidade. Encontrei esses objetos e levei de volta pra onde eu morava. Com uma lata de graxa preta escondi a verdadeira imagem deles que antes eram marrons. Depois disso fiquei bastante tempo observando o lugar onde eu vivi por um bom tempo e onde eu passaria minha ultima noite como mendigo. Acreditando ser necessário sumir uns dias, naquela noite sai da cidade em direção a Mineiros no estado de Goiás, e fui dormir dentro do mato na beira da estrada alguns km longe de Alto Araguaia. Achei necessário ir até mineiros e lá conseguir algumas roupas e calçados melhores para não despertar desconfianças na população de Alto Araguaia quando eu retornasse. Assim fiz e depois de uns dez dias em que experimentei as vantagens de meu contrato, eu já estava pronto para voltar e ai sim, começar a ganhar dinheiro de verdade. Meu retorno aconteceu em melhores condições, pois já retornei montado em um cavalo bom que comprei de um sitiante próximo de Mineiros. Sai da cidade com o dia claro e viajei o bastante para chegar a meu destino porem achei melhor fazer pouso na estrada e chegar a Alto Araguaia no outro dia. Enquanto tentava dormir, pensei insistente se aquela pessoa com quem eu encontrei lá na encruzilhada era mesmo o diabo, se eu realmente tinha feito aquele pacto, se iria ficar rico. Apesar de já ter colocado em pratica minha habilidade no truco, ganhando facilmente todas as partidas em Mineiros, às vezes não acreditava que aquilo tudo podia acontecer de verdade. Passei aquela noite e no outro dia acordei muito cedo e sai dali pela estrada que vinha do estado de Goiás e terminava na cidade de Santa Rita da Araguaia, que naquela época chamava Santa Rita dos Impossíveis, e que é dividida de Alto Araguaia pelo rio Araguaia. Achei melhor chegar a cidade bem montado e bem vestido para que ao me ver passando pelas ruas da cidade, as pessoas não ligassem minha imagem com a do André ou do mendigo que conheciam. Esta foi uma preocupação desnecessária, porque dias depois indagando sobre o mendigo para ver se as pessoas não me reconheceriam, descobri abismado que todos de Alto Araguaia não se lembravam de nenhum mendigo que tenha vivido na cidade e muito menos naquele resto de construção. Todos foram unânimes em dizer que naquele resto de construção mora apenas e tão somente o João da Sorte, figura conhecida dos tipos populares daquela cidade. Andei boa parte do dia e aproximadamente às três horas da tarde lá estava eu de chapéu de couro preto, calça de tergal escura, camisa de manga comprida, bota preta e alforge preto nas costas descendo a ladeira de Santa Rita com o chapéu quebrado na testa, barba e cabelo bem cortados e montado num ótimo cavalo muito bem arreado. Depois de entrar montado em meu cavalo marchador, me lembrei que estava com fome já que havia comido pouco naquele dia, e, portanto, precisava procurar um lugar onde tivesse comida. Continuei a caminhar observando e tentando entender as reações das pessoas que saiam nas portas e janelas não só pra observar, mas também pra cumprimentar, já que isso fazia parte da boa educação das pessoas daquelas cidades. Enquanto caminhava, quem me via podia achar que eu sabia exatamente aquilo que procurava, mas na verdade eu procurava exatamente aquilo que não sabia, e assim procurei não deixar transparecer que estava meio perdido. Com a cabeça meio baixa fui retribuindo aos cumprimentos apenas com acenos evitando assim falar com qualquer pessoa pra não correr o risco que eu imaginava ter, de ser reconhecido. Essa situação se estendeu por alguns quilômetros até que atravessei o rio Araguaia entrando de novo em Alto Araguaia onde ao passar em frente de um dos poucos butecos da cidade, notei que de lá vinha um barulho característico de uma mesa de truco. Diminui a marcha do cavalo lentamente tentando dar a impressão de não ser o truco o motivo de minha aproximação, e assim me encaminhei para o local onde se encontravam sete homens. Quatro deles estavam na mesa jogando uma rodada de truco e pareciam ter boa situação financeira. O quinto era o senhor Basilio dono do Buteco e que estava do outro lado do balcão. O sexto homem, que estava sentado em uma cadeira parecia ser o melhor de situação financeira e pelo jeito que olhava ansioso pra mesa, estava aguardando para entrar no jogo. O sétimo e ultimo homem estava de costas e pela aparência era apenas mais um cidadão muito pobre da cidade. Entrei buteco adentro e fui cumprimentando a todos conforme seus olhares se voltavam pra mim, e antes que chegasse ao sétimo homem, e em meio ao cumprimento que fazia para aquele senhor mais bem vestido, o homem se virou pra meu lado e em direção a porta da rua a fim de ir embora. Naquele momento reconheci a pessoa dentro daquelas roupas quase esfarrapadas. Tratava-se daquele mesmo senhor que sempre me observava na pensão da dona Chica, que me repreendeu no salão de festas da igreja e que foi ao meu encontro na encruzilhada do Ribeirão Claro. Era o diabo vestido em roupas de mendigo que ate pareciam ser as roupas que usei durante muito tempo. Fiquei meio assustado com sua presença, mas não pude fazer nada porque antes mesmo que eu terminasse de cumprimentar aquele senhor bem vestido sentado na cadeira, ele o diabo, passou por mim como se estivesse no meio de um sonho e apenas fez aquele sinal de cabeça característico que sempre fazia me cumprimentando. Sem saber como proceder e tendo a partir daquilo, a certeza de que estava no lugar certo, escorei no balcão como se estivesse querendo descansar o corpo cansado pela caminhada. Não se passou muitos minutos depois de minha chegada até que o seu Basílio indagasse sobre minha presença e meus objetivos naquela cidade. Ta vindo de Goiás moço? Respondi que sim e ele continuou: De quar cidade o sinhô vem? Das bandas do Rio Verde! Vai fica muito tempo, ou ta só de passage? Depende da sorte! Se ela ajudar quem sabe eu até me estabeleço por estes lados. O que o senhor tem pra comer? Estou viajando desde cedo e a matula não deu! Nessa hora só tem pão feito em casa, e se o senho quise eu posso manda passa um bife e frita um ovo. Ótimo, pra mim esta bom! O sinhô que beber arguma coisa? Se o senhor tiver um refresco, eu aceito. Bastou falar a palavra sorte que até parece que era um código pras coisas se arranjar, e quase automaticamente os que estavam na mesa jogando pararam por algum instante pra olhar melhor pra mim. Se era um código ou não eu não sei, mas rapidamente aquela partida de truco chegou ao fim e todos se levantaram porem, dois pra ir embora e os outros dois pra se reorganizar em novas duplas. Como os dois que foram embora não eram da mesma dupla e eram adversários, foi necessário a formação de novas duplas para que a mesa pudesse continuar e um dos que ficaram na mesa me olhou e disse: Ta na hora do senhor testar sua sorte e saber se esta é a cidade onde o senhor vai se estabelecer! O outro que também não tinha ido embora disse então: Se é bom de sorte, e quisé, pode ser meu parceiro! A essa alturas aquele senhor bem vestido que aguardava sentado, já havia se levantado e sem nenhum convite sentou-se na mesa de frente daquele que me disse pra testar a sorte. Para uma mesa de truco sentar de frente significa chamar ou aceitar ser parceiro. As duplas praticamente estavam formadas, mas antes de me sentar fiz um alerta a todos dizendo que não tinha dinheiro e que a única coisa de valor que podia ser jogada era um relógio de ouro que havia herdado de um amigo. Disse isso enquanto retirava do bolso da calça o relógio de ouro que ao ser colocado sobre a mesa causou uma enorme euforia nos três que poderia ser notada mesmo que estivéssemos no escuro. Coloquei o relógio na mesa e perguntei aos dois que seriam os meus adversários quanto valia o relógio em réis. Eles se olharam e depois de algum tempo avaliaram o relógio tão alto que pelo valor que a mesa estava apostando nas jogadas que pude acompanhar, daria pra eu jogar muitas e muitas partidas. Feita a avaliação meu parceiro tirou algum dinheiro da gibeira e colocou a disposição para ser utilizado até que fosse necessário usar o relógio e assim podemos finalmente começar a partida. No truco uma partida é jogada em mãos que valem um, dois ou até três tentos, quando ela é simples ou apenas trucada, e podendo chegar aos seis, nove ou até doze tentos se houver uma disputa corajosa das partes. A dupla que conseguir doze tentos primeiro passa a ter um boi. É o chamado boi que faz os adversários perder aquele valor apostado na partida. Desta forma, jogar truco pode ser uma tarefa rápida porque se joga enquanto quiser, apostando partida por partida ou demorada se a aposta for grande e a vitória se der, por exemplo, numa melhor de sete, ou de nove bois. Meu parceiro pegou o baralho e ia dando inicio ao jogo quando eu interrompi e em tom de brincadeira pedi ao senhor bem vestido que assoprasse nele conforme as instruções que eu tinha recebido do diabo. Quando eu fiz o pedido, todos olharam achando meio estranho, mas sendo bom jogador, o senhor levou na brincadeira por saber que o truco é um jogo cuja característica principal é poder brincar, caçoar e ate mesmo xingar os adversários sem que isso seja ofensivo. Isto acontece com a intenção única de tirar a atenção dos adversários. Depois que nosso adversário atendeu a meu pedido dizendo que aquilo de nada adiantaria e que mostrava que eu já estava com medo, meu parceiro embaralhou e pediu ao adversário a sua esquerda pra cortar o baralho e a partida começou. Ao contrario das instruções que eu havia recebido, na primeira partida não usei meu baralho virgem deixando que o jogo fosse feito com aquele baralho velho. Fiz isso e procurei perder umas partidas pra que eu encontrasse a desculpa adequada para a troca do baralho conforme fui instruído. Assim enquanto jogava aquela primeira partida, dei um jeito de marcar muito forte uma das cartas mais importantes nesse jogo, a sete copas. Perdemos aquela partida o que causou euforia em nossos adversários e possibilitou que o senhor que assoprou o baralho brincasse comigo me lembrando que a superstição não dava certo. Com aquela carta marcada tive a desculpa ideal pra solicitar a troca do baralho, isso já na terceira mão da segunda partida que era a mão onde a vez de embaralhar era minha. O jogo de truco é um jogo onde a alegria e as brincadeiras no sentido de deixar o adversário nervoso, é coisa absolutamente normal, e por isso ninguém estranhou o fato de eu pedir novamente pra nossos adversários que assoprassem no baralho ainda lacrado. O desejo incontrolável de todo jogador foi muito forte e encobriu rapidamente qualquer preocupação que pudesse haver naquela mesa. Como eu já disse às instruções que me foram dadas, eram poucas o que me levou a imaginar que dependia muito mais de minha astúcia do que propriamente das instruções, e por isso naquele primeiro dia na cidade e jogando com pessoas dali, achei melhor não mostrar muita destreza como jogador pra não despertar suspeitas. Depois de umas quatro horas jogando, eu e meu parceiro levantamos daquela mesa tendo cada um uma soma considerável em réis, dinheiro que qualquer cidadão daquela época levaria muitos dias pra ganhar. Quando paramos de jogar já era bastante tarde e eu precisava de um lugar pra dormir, mas a única pensão da cidade era a da dona Chica e eu tinha medo dela me reconhecer. Por isso sai daquele buteco e fui em direção ao resto de construção que havia sido minha casa por muito tempo.
Depois de andar alguns metros parei e resolvi voltar ate a pensão e me hospedar ali mesmo. Ao chegar na porta da pensão senti uma mistura de alegria e tristeza, uma por estar de volta e outra por me lembrar de tudo que havia acontecido entre eu e Josefine. Fique parado em frente por algum tempo e então sem ter muito o que fazer, resolvi chamar pela dona Chica que levantou prontamente e me atendeu sem me reconhecer. Isso aconteceu porque alem de mudar a minha voz pra conversar com ela, eu mantive meu chapéu quebrado na testa, e também por estar bastante escura aquela noite. Apesar de todos os cuidados que tomei, em determinado momento de nossa breve conversa notei que ela teve a impressão de me conhecer. Naquele momento ela até tentou me dizer, ou perguntar algo, mas eu fiz questão de não dar chance disso acontecer. Retirei do bolso algum dinheiro e paguei a pensão adiantada por uma semana. Isso me permitiria não ter que ficar falando com ela e correndo o risco de ser reconhecido. Durante algum tempo daquela noite, fiquei imaginando o que tinha acontecido durante o dia e percebi que havia um pequeno problema relacionado com o tipo de jogo que eu tinha escolhido. O truco é um jogo pra ser jogado em duplas e dessa forma eu teria que ter sempre comigo um parceiro que também ficaria rico, mas que não teria que pagar por isso com a mesma moeda que eu pagaria. Aquilo começou a me incomodar e não deixou que eu pegasse no sono tão cedo. Pensei muito em como resolver aquela situação, mais de toda maneira que eu pensava não dava certo porque eu sempre acabava chegando àquela conclusão. Ela não me parecia nem um pouco justa, apesar de eu saber que para continuar jogando, eu sempre ia precisar de um parceiro, pois naquela região não se jogava outros jogos. Por bastante tempo fiquei pensando até que cansado pela longa caminhada e pelo grande tempo sentado numa mesa de jogo acabei pegando no sono pra acordar no outro dia ainda mais cansado pelos pesadelos que tive. Mal comecei dormir naquela noite e fui acordado com solavancos e puxões de cabelo dados por alguém que jamais eu tinha visto em minha vida, e que logo fiquei sabendo que era um dos ajudantes do diabo. A criatura que quase me matou de susto, era uma mistura de cachorro da cintura pra cima e homem da cintura pra baixo e falava com uma voz extremamente delicada que lembrava a de Josefine. Quando fui acordado totalmente assustado com aquela imagem horrorosa, minha primeira reação foi chamar o nome de Deus, o que fez com que ele ficasse com raiva e me pegasse pelo pescoço me suspendendo com uma única mão até o telhado da pensão e gritasse. Você acha que adianta chamar por esse aí? Esqueceu do trato que fez com o patrão? Você é deeeeellleeee! Você agora pertence a ele! É seu objeto de uso, e ele pode usar como quiser! Ele disse aquilo e enquanto me descia ate o chão me virou de costas para ele e passando a mão em meu peito me apertou contra o gela, caroquento e cabeludo. Sem saber o que fazer então eu respondi. Não! Eu não esqueci! É que você... Eu pensei que aquele senhor... Aquele elegante... Aquele senhor... Há há há há há... Aquele senhor é a forma usada pelo patrão apenas pra comprar. Agora que já te tem... De qualquer maneira não importa! Eu não estou aqui pra discutir minha... Bela aparência. Vim apenas te lembrar que deve aproveitar bem de agora em diante porque o relógio do tempo não para e o seu tempo vai chegar muito mais rápido do que você pensa há há há há há. Ele disse aquilo e desapareceu da mesma forma como tinha vindo, e eu fiquei por um bom tempo sentado na cama suando feito uma tampa de chaleira e bastante preocupado com a barulheira provocada pela ação daquela criatura. Com muito custo consegui pegar no sono novamente sempre acordando assustado achando que aquela situação se repetiria novamente. Assim foi o resto daquela noite e quando finalmente descansei um pouco, acordei bastante tarde para os costumes do povo daquela cidade. Levantei e depois de lavar meu rosto e vestir a mesma roupa, que era a única que tinha, me encaminhei pro lado da cozinha que eu conhecia muito bem, mas que fiz questão de procurar onde era pra disfarçar. Chegando na cozinha encontrei de cara a dona Chica e falei apenas um bom dia com voz diferente. Ela me cumprimentou e perguntou se eu aceitava café, e eu respondi que sim. Não demorou e lá estava ela em minha mesa me servindo ao mesmo tempo em que me olhava com uma desconfiança que eu não sabia se vinha do fato de ter me reconhecido, ou se de sua maneira simples de analisar a todos. Ela serviu o café e voltou pra suas obrigações enquanto eu fiquei ali estudando o ambiente pra ver se estava tudo correndo bem ou se havia algum sinal de problema que pudesse desfazer aquilo que eu tinha planejado. Não demorou muito e dona Chica retornou a minha mesa com o resto das coisas do café, e desta vez ela não conteve a curiosidade, natural nas pessoas de pequenas cidades, em perguntar quem eu era e de onde vinha. Respondi da mesma maneira que no buteco na tarde anterior dando a entender que estava vindo das bandas de Goiás procurando não dar muita conversa. Novamente ela me olhou como se tivesse me reconhecido e novamente fiquei preocupado mais procurei não demonstrar e continuei tirando o jejum. Essa preocupação, mais tarde tive a certeza, não tinha porque, já que o diabo tinha tomado providencias para que as pessoas que me conheciam antes do contrato não me reconhecesse depois. Aquele dia segundo meus planos seria reservado para confirmar minha transformação e desaparecer com qualquer vestígio do André ou do mendigo, e dessa forma, sai da pensão com o objetivo claro de ir até a única loja de tecidos e calçados que a cidade possuía. Peguei meu arfoje que agora guardava uma boa soma em réis e fui até a loja pra comprar alguns cortes de calça e camisa. A loja era grande e tinha tecidos bastante diversos nas prateleiras do lado de dentro do balcão alem de umas prateleiras que ficavam pro lado de fora. Graças a essas prateleiras do lado de fora foi que ao entrar na loja não fui notado e pude ouvir uma conversa que certamente era a solução pras minhas preocupações da noite anterior. Encostado no balcão virado de costas pra porta de entrada estava o homem que tinha sido meu parceiro de jogo na tarde anterior, e que negociava o pagamento de uma grande divida que ele tinha com aquele comerciante. Eu não teria muito tempo antes que eles me notassem, mas pude ouvir quando ele reclamava com o dono da loja que se ele usasse todo o dinheiro que tinha apenas no pagamento da divida, ele continuaria com problemas porque não teria como comprar nada pra sua família. Aquela conversa era exatamente o que eu precisava pra dar inicio em um plano que ia desfazer o sentimento de injustiça que me acompanhava desde a tarde anterior. Eu continuava achando injusta a possibilidade de meu parceiro ficar tão rico quanto eu sem ter que pagar nada tão valioso quanto eu pagaria. A partir daquele momento, já com o plano feito, eu é que fiz questão de me mostrar para os dois homens provocando uma aproximação. Como se estivesse chegando naquele momento, raspei a garganta pra chamar a atenção deles, o que aconteceu imediatamente e, me aproximando do balcão me dirigi ao parceiro. Ora! Mais que coincidência encontrar o senhor por aqui seu Martinho! Mais num é mesmo seu... Seeeu? Disculpa mais eu não me lembro do seu nome! João... Meu nome é João... Me chamam de João Vaqueiro! As pessoas me chamam assim porque estou sempre com meu alforje! Isso... Seu João! Olha senhor Nagib, esse aqui é um companheiro que conheci ontem... Ele me apresentou pro turco Nagib, que era dono da loja e este me cumprimentou dizendo que era uma satisfação. Dali em diante não foi nada difícil chegar onde eu queria, e tão logo fui apresentado ao turco já pedi que me mostrasse uns bons cortes de calça e de camisa. O olho do truco cresceu rápido e em pouco tempo eu estava atendido em meu pedido, o que me levou a enfiar a mão no alforje pra pegar o dinheiro pra pagar a conta. A soma de dinheiro que eu tinha era o bastante pra pagar uns vinte cortes de calças e camisas e apenas uma ou duas notas seriam o bastante pra cobrir minha despesa. Ao tirar o dinheiro de dentro do arfoje fiz questão de retirar tudo que tinha a fim de provocar a situação que eu precisava, causando espanto aos dois homens. Quando enfiei a mão no alforge porem, o espanto que deveria ser deles, foi ainda maior pra mim que sem saber como tinha acontecido, dentro do arfoje, tinha três ou quatro vezes o dinheiro que havia ganhado no dia anterior. Tentei me segurar firme pra não deixar eles perceberem minha surpresa, e separando uma bolada, entreguei o dinheiro ao turco que saiu em busca do troco que teria que me dar após muita insistência para que eu aumentasse minha compra. Deu certo a estratégia dele e sabendo que precisaria mesmo, acabei levando mais do que tinha planejado. Aproveitando a saída do turco de perto de nós, eu disse olhando pro Martinho que sem querer eu havia ouvido a conversa dos dois. Disse também, que se caso ele quisesse, eu poderia emprestar o dinheiro pra saldar a divida e até pra levar uns presentes pra sua família. Ele pensou por alguns segundos como se soubesse que aquilo não era certo, mas aparentemente a oferta era grande e boa demais pra ser recusada, e sendo assim ele aceitou e indagou sobre como poderia me pagar. Nesta hora, vendo a chance em minha frente, eu o abracei e dando dois tapinhas em suas costas disse: Ora! Ora!... Mais o que é isso meu parceiro? Com um parceiro bom como você, eu não to preocupado? Com certeza nós dois juntos numa mesa de truco, tira esse dinheiro pra traz num piscar de olho! A animação era visível em seu rosto, e sua coragem cresceu muito, o que o levou a me pedir uma soma maior em dinheiro. Em minha generosidade proposital ofereci três vezes mais dizendo que aquilo era café pequeno pra mim. Ele aceitou e duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Ele deixou a ganância tomar conta dele de tal forma que se eu oferecesse todo aquele dinheiro ele se endividaria totalmente, e eu tinha conseguido meu objetivo. Depois de me despedir e pedir ao Martinho que me encontrasse no fim da tarde na pensão, sai dali levando os cortes de tecido sugerido pelo turco Nagib diretamente para o alfaiate que iria fazer a roupa que eu queria. Deixei os cortes de tecido no alfaiate e combinamos que no outro dia cedo eu voltaria para pegar a primeira calça e camisa. No fim da tarde, como eu havia pedido, lá estava Martinho vindo todo garboso em direção a pensão para o nosso encontro. Uns cento e cinqüenta metros antes de chegar, ele fez um aceno com a mão e eu respondi prontamente, mas, ao ver vindo uma preocupação surgiu por me dar conta de que aquele sujeito simples que estava vindo ao meu encontro, seria transformado logo, logo em meu dedicado escravo. Pensei se era justo o que eu estava fazendo com um cidadão que pelo pouco que eu conhecia, não era desonesto, e era um pai de família. A preocupação logo parou com a chegada dele que veio me cumprimentar totalmente feliz sem saber o que estava reservado a ele a partir daquele momento. Ele sentou numa das cadeiras que sempre ficava na porta da pensão debaixo da sombra que suas paredes faziam no final do dia e logo começamos a conversar. Perguntei a ele sobre a reação dos familiares quando ele chegou em casa com a noticia de que, não só tinha saudado sua dívida, mas também tinha levado presentes e mais alguns trocados de sobra. Ele respondeu que a reação não podia ser melhor, mas que sua mulher queria saber de onde ele tinha arrumado tanto dinheiro, ao que ele disse que era adiantamento de um serviço grande que tinha pego. Ali estava uma atitude, a mentira, que eu tinha certeza que não era natural em seu dia a dia, e que, portanto, vinha da ação do diabo que já estava me ajudando a encaminhar as coisas. Isso ajudou a diminuir um pouco meu sentimento de culpa, pois eu sabia que não podia, e nem queria, lutar contra aquela situação cruel, porem necessária. Trocamos mais algumas palavras e sem que qualquer um de nós tenha planejado a conversa tendeu pro lado de nosso futuro nas mesas de jogo. Antes de falar sobre obrigações, encaminhei a conversa para o lado que eu sabia que conseguiria fazer ficar amarrado, o lado da boa dupla que nós dois formamos no dia anterior ganhando de todos os que estavam presentes. Aproveitei a oportunidade para contar para ele sobre minhas aventuras nas mesas de jogo, e afirmei que jamais tinha perdido uma partida sequer antes daquela tarde que nos conhecemos. Fiz questão de dizer em voz baixa como se fosse segredo, que a partida que tínhamos perdido, tinha sido de propósito para enganar os adversários. Quanto mais a conversa tendia pra esse lado mais empolgado ele ficava e mais fácil ficava para eu conseguir amarrar ele pra sempre, e dentro dessa empolgação que em um determinado momento eu perguntei. Será que meu parceiro tá preparado pra enfrentar os adversários que vai aparecer? Ora sô... Mais é certo que eu to! Em todos os sentidos parceiro? Como assim parceiro? Eu não estou entendendo! Não é só a gente entender bem os sinais um do outro e jogar? Eu estou falando parceiro, de enfrentar os maiores jogadores dessa região, de enfrentar apostas de valor muito alto! Cabisbaixo ele pensou durante o tempo que fomos interrompidos pela presença de outras pessoas que estavam hospedadas na pensão e que também vieram sentar nas cadeiras naquela sombra. Passou bastante tempo e sem ter como retornar ao assunto convidei o parceiro pra dar uma andada ali por perto a fim de continuar a conversa. Mal saímos dali e com grande tristeza estampada no rosto, ele falou que não estava preparado apenas no que referia ao dinheiro, que neste caso ele não tinha para ajudar a bancar as apostas. Era o que eu precisava! Um parceiro cheio de vontade de jogar, bastante sem responsabilidade e principalmente sem dinheiro pra bancar seu vicio. Percebendo que era a hora certa pra dar o bote, virei pra ele e disse. Não é todo dia que se encontra parceiro bom quinem o senhor, e agora que eu encontrei não vou arriscar perder. Se o senhor quiser ser meu parceiro e ganhar um bom dinheiro, eu entro com todo o dinheiro das apostas, e se a gente ganhar, e vamos, o senhor fica com décima parte. Isso parece pouco no primeiro momento, mas tem a compensação, porque se nos dois perder o senhor não me deve nada. Ele reagiu rapidamente dizendo que a décima parte era pouco e eu então fiz outra proposta. Nesse caso a gente entra com a quinta parte cada um e se ganhar cada um recebe a quinta parte. Ele me olhou com a expressão de quem perguntava se eu não sabia de sua situação. Que esta não permitia que ele pagasse suas dividas conforme eu tinha visto naquela tarde. A conversa havia chegado onde eu queria e para dar o golpe final eu disse. É parceiro, não tem jeito ou é uma ou é outra. Ou o senhor não entra com nada e ganha a décima parte, ou entra com a quinta pela quinta. Ou então... Ai eu vou ter que procurar outro parceiro. Sem ter pra onde correr diante daquela proposta, e sabendo que por mais que ela não fosse o que ele queria, ela lhe daria muito mais dinheiro do que ele jamais tinha ganhado, ele ergueu a mão até seu bigode, separou e arrancou um fio, me entregou e disse que estava feito o acordo. Momentos depois de ter assinado contrato comigo através daquele fio de bigode, ele saiu em direção a sua casa porque eu disse a ele que naquele dia não haveria jogo e que devíamos descansar pra batalha que tava pra vir. Enquanto ele se afastava, fiquei observando e só então percebi que eu não só tinha feito um pacto com o diabo, mas também tinha virado um instrumento que ele usava pra praticar suas maldades. Aquele sujeito que era irresponsável, mas um pai de família estava a partir daquela hora totalmente dependente de mim, porque por mais que ele ganhasse dinheiro ao meu lado ele sempre gastaria mais do que podia e sempre estaria devendo pra mim. Assim seria dali pra frente seu Juca! Eu tinha tudo que eu precisava pra dar inicio naquele reviravolta que minha vida ia dar. Tinha a proteção do maldito, um parceiro que me devia dinheiro e que dificilmente poderia me pagar e principalmente muitos jogadores ricos na região cada um achando que era melhor que o outro. Eu estava pronto para ficar tão rico quanto ninguém na minha família pensava que pudesse. Tinha chegado a hora seu Juca, de eu poder cumprir as promessas que tinha feito quando sai da casa de meus pais. Eu agora podia devolver o dinheiro que minha mãe me deu, dar a boneca que a Aninha pediu, e fazer muito mais do que tinha prometido.
QUARTO CAPÍTULO Nesse ponto da história, alguns dias haviam se passado e as andanças de André ate o retiro para acompanhar o andamento do serviço, bem como do Sr. Juca nos domingos a tarde até a sede da fazenda, havia se tornado comuns e a história continuava a ser contada. O serviço de construção do novo retiro ia dentro do prazo previsto e, mesmo sendo um trabalho de grandes dificuldades, ele já caminhava para seu final. O trabalho era realizado com afinco e na maioria das vezes até os domingos eram usados pro trabalho. Dentro de um sertão daqueles alem de não ter nada com o que se divertir, também existe a saudade imensa dos familiares e os peões são obrigados a conviver com ela. Por isso quanto antes o serviço for terminado, antes se volta para casa e isso se torna mola propulsora que acelera o trabalho e faz os peões querer pouco descanso, mesmo que o patrão não exija. Continuando a história, André contou que naqueles dias a pacata cidade de Alto Araguaia que é cortada pela rodovia que liga as capitais dos estados de Goiás e Mato Grosso, estava vivendo um alvoroço como nunca tinha vivido. Tudo isso em função do volume cada vez maior de jogadores que chegavam pra enfrentar a dupla que não perdia para ninguém, e que acumulava uma fortuna através de seu jogo certeiro e imbatível. Sempre ao lado de seu parceiro que se mostrava fiel diante das pessoas, mas que estava ali por motivos que a maioria não sabia, André ficava cada vez mais rico. A fama dos dois jogadores crescia a cada dia, e atraia jogadores de todos os lugares, em busca de conseguir derrotá-los. Segundo o acerto que André havia feito com seu parceiro, ele André, ficava com noventa por cento do dinheiro que a dupla ganhava já que seu parceiro tinha apenas a décima parte. Nos primeiros meses André dava sempre mais dinheiro pro seu parceiro do que ele realmente tinha ganhado, fazendo com que ele ficasse devendo tanto, que mesmo que eles jogassem durante vinte anos, este não conseguiria saldar sua divida usando apenas a porcentagem que pertencia a ele. Mas o tempo de fama e jogatina daquela dupla não iria durar muito porque o prazo de vencimento do contrato de André com o diabo era bastante curto e daí a necessidade dele manter seu parceiro preso a ele financeiramente para que nesse prazo pudesse realmente enriquecer. Mesmo sabendo que assim que terminasse o prazo e ele tivesse que ir ao encontro de seu fim, deixando todo aquele dinheiro pra sua família, o que importava é que ele seria lembrado para sempre como o filho que realizou um grande feito. André acreditava que vender a alma pro diabo e ficar rico era um grande feito Só que o maior ele não tinha a menor idéia de que aconteceria. Naqueles dias de jogatina, vez por outra lhe passava duvidas pela cabeça e, mesmo não querendo ele pensava em que sentido tinha fazer tudo que estava fazendo para logo depois ir ao encontro do diabo e simplesmente entregar-lhe a alma. Como isso aconteceria? Ele seria queimado vivo em um grande taxo de azeite fervente? Muitas perguntas sem respostas e na maioria das vezes ele evitava manter aqueles pensamentos. Naqueles dias ele tinha apenas uma preocupação, jogar, jogar e jogar. Enquanto contava essa parte da história, por várias vezes André foi interrompido pelo Juca que, não querendo deixar passar nada sem o entendimento necessário perguntava: O senhor me disse que tava ganhando dinheiro como água, não é verdade? Sim seu Juca é verdade! E o que, e como o senhor fazia com tanto dinheiro? Esse é um dos mistérios que envolve as historias de pacto com ele. O pacto dizia que ele tinha que me fazer ficar rico e em troca eu daria minha alma pra ele. Pois bem, se o dinheiro que eu ganhasse não ficasse comigo ou com alguém de minha confiança, então eu não ficava rico e conseqüentemente não tinha pacto. Por isso ele tinha por obrigação cuidar de mim e de minha fortuna. Mais... Mais pra onde ia tanto dinheiro? Pelo que o senhor fala era tanto dinheiro que precisava de muitos arfoge pra carregar. Alforje era pouco seu Juca, precisava de broacas! Muitas broacas! Mas também nem tudo que eu ganhava estava em dinheiro vivo, muitas apostas eram feitas em fazendas, casas, jóias caras, diamantes e ate em ouro puro. Mais e pra onde ia o dinheiro? Ia tudo pras mãos de minha família! Cada vez que eu mandava uma parte daquilo que ganhava, junto eu mandava uma carta para os meus pais com instruções do que fazer com aquela remessa. E quem levava pro senhor não roubava nada? Nem um mil reis! Aqueles que eram contratados para levar o dinheiro ate o sitio Solidão, eram pessoas comuns da cidade, geralmente pessoas pobres que tinham dificuldades financeiras e que eram escolhidas justamente por serem honestas. Aparentemente eles estavam sendo contratados apenas para levar uma mercadoria e se fossem realmente honestos, ia ganhar um bom dinheiro e continuar suas vidas numa escalada de sucesso que eles nunca tinham imaginado. Se porem, o escolhido para fazer o transporte deixasse a honestidade de lado e tentasse descobrir o que tinha dentro das broacas, ou mesmo tentasse roubar tudo, ai então os ajudantes “dele” entravam em ação e coitado do caboclo, era esfolado vivo. Eu só fui saber dessas coisas mais tarde quando fui ao encontro de meu destino e lá pude ver tudo que tinha acontecido no passado durante o tempo em que eu me preocupava apenas em enriquecer. Naquele lugar vi coisas que eu ate imaginava, mas não queria acreditar que pudessem acontecer. São coisas horríveis! Neste momento foi criado um silencio grande entre André que se mostrava ainda chocado com as cenas que viu e Juca que cada vez mais ficava curioso. O silencio não durou muito e foi quebrado com outra pergunta do Juca. Como é que o senhor ia ter certeza que não era mentira do bicho feio? Ele podia dizer que tava mandando o dinheiro pra sua família e ta é fazendo o dinheiro sumir! Com ele isso não tem perigo seu Juca! Ele cumpre direitinho os tratos dele porque se não cumprir não tem alma pra desfrutar! O que que o senhor ta dizendo seu André? Que ele é honesto? Isso é que não, ele adora fazer maldade! Só que neste caso seu Juca não tem jeito, o trato é muito simples, e para funcionar ele tem que dar algo que a pessoa quer muito em troca de algo que ele precisa muito. A alma não pertence a nós e, portanto ele não pode chegar e tomar. Deus dá a alma para cada um, é um presente dele, cabe a cada um saber o que fazer com ela. O diabo só pode pegar se você que recebeu ela como presente der ou vender ela. A única maneira dele poder apossar dela é se quem tem a alma entregar por decisão própria. Ele não consegue te pegar e arrastar ate sua morada e arrancar a alma de você. Ele não tem esse poder! Por isso é que ele usa de artimanhas ligadas às coisas bonitas, a luxuria e ao desespero das pessoas. Então nesse caso é só quem fez o trato não ir ao encontro marcado ora! Não é bem assim não! Se quem fez o trato com ele não for ao encontro, na hora e no dia marcado, primeiro tudo aquilo que ele ganhou desaparece mais rápido do que apareceu, e segundo a partir daquele momento você nunca mais tem um dia ou uma noite de paz. E as pessoas da cidade não desconfiavam de todo aquele movimento que estava acontecendo? Pelo que o senhor disse vinha jogador de vários lugares pra jogar com vocês! É verdade! O movimento aumentou bastante naqueles dias e de certa forma todo mundo começou a ganhar dinheiro. O nosso local preferido para jogar era um sitio muito próximo da cidade. Ali tinha tranqüilidade e toda a estrutura que era necessário. Tinha boas mesas, muita comida, bebidas e mulheres que eram levadas pelo proprietário que era uma pessoa quase desconhecida da população. Ele era um homem simples que aparentava ser apenas um empregado daquele sitio, mas que era muito firme quando precisava tomar decisões relacionadas com o comportamento das pessoas naquele lugar. Com o dinheiro que corria ali naquele sitio e que as pessoas que freqüentava levava depois pra cidade, o comercio melhorou e todos passaram a ganhar também. Quanto aos jogadores que vinham pra enfrentar eu e meu parceiro, realmente eram homens bem de vida, com grandes fazendas de gado, com boas lavouras, homens que tinham uma vida muito boa, mas que eram viciados no jogo e que viam nos valores das apostas a possibilidade de melhorar sua situação financeira. Alem de viciados, todos eles tinham outra coisa em comum, jogavam truco muito bem, com parceiros antigos que entendiam perfeitamente seus sinais e por isso tinham certeza que não perderiam o jogo. O que eles não sabiam era que alem de bons jogadores, eu e meu parceiro tínhamos uma ajuda que eles jamais teriam. Eles não tinham nenhuma chance de vencer nos dois. Eu porem. Vez por outra deixa alguns ganhar umas mãos mais isso só acontecia nos momentos que eu precisava fazer eles acreditarem que podiam sair vitoriosos e aceitassem as apostas maiores. Neste caso eu permitia a eles que vencessem um ou dois jogos e, em alguns casos foi necessário ate mesmo deixar vencer uma partida inteira porque estes não eram tão viciados. As apostas eram vencidas por uma melhor de três bois, sendo cada boi ganho numa partida de doze pontos. Cada ponto era representado por “tentos” sendo que a dupla que alcançasse doze tentos puxava um boi que representava a partida. Nos só jogava o truco brasileiro com cartas simples e fixas, chamadas de manias velhas, onde as cartas maiores contando de cima pra baixo é o Zap ou quatro de paus, a sete copas, a espadilha ou az de espada, o sete ouro, os três, os dois, os azes e depois as figuras sendo o rei, o valete e a dama. Era dada preferência ao truco brasileiro porque era o mais comum na região e assim não tínhamos que ficar mudando a toda hora. Alem disso para quem conhece de truco sabe muito bem que jogando com as manias velhas se torna mais fácil seguir o baralho, e isso é uma das melhores habilidades de um jogador. Durante essa época, na hora de jogar o senhor não ficava com medo? Medo do jogo? Medo de tudo, do seu destino! Sim, eu ficava! Às vezes eu pensava como seria ter que enfrentar meu destino quando chegasse a hora de ir ao encontro dele, mais naqueles dias eu estava muito ocupado e me recusava em parar para pensar. E no decorrer dos jogos! Ah sim! Mesmo sabendo que eu estava protegido nesse sentido, às vezes a coisa ficava feia e eu ficava em duvida se podia mesmo confiar no trato ou se tudo aquilo não passava de um pesadelo do qual eu iria acordar e descobrir que ainda era um mendigo ou apenas o André do Sitio Solidão. Teve uma dupla que veio pro desafio, e que mesmo antes de chegar eu já achava que era o meu fim, pois algo me avisava. Acho que também pela proximidade do fim do contrato. Eram dois grandes fazendeiros, donos de umas oito fazendas e muitas cabeças de gado. Eles eram tão ricos que três ou quatro vezes por ano cada um vendia boiadas com no mínimo cinco mil garrotes que eram levados pro estado de São Paulo. Quando eu soube que eles estavam vindo me desafiar, chamei o Martinho, meu parceiro pra uma conversa. Falei da importância do que estava para acontecer e da necessidade de trabalharmos totalmente atentos. Depois daquela conversa nossas saídas para o sitio onde jogávamos começaram a diminuir e chegamos ate a recusamos alguns jogos que apareceram. Passei a aproveitar mais o tempo dando dicas pro Martinho de como deveríamos comportar naquele que seria provavelmente o meu ultimo jogo. Depois de alguns dias nos preparando, finalmente o dia chegou. Saímos eu e Martinho pro sitio onde iríamos conhecer os fazendeiros chamados Orestes e Miguel, que naquela noite seriam os nossos adversários. A fama dos dois era muito mais antiga do que a nossa, e naquelas bandas todo mundo sabia que jogar contra o senhor Orestes, era pedir para perder. Ele jamais tinha perdido um jogo em toda sua vida mesmo mudando de parceiro de vez em quando. Outra coisa que ouvi muito sobre ele é que não era um homem tolerante e que estava sempre rodeado de capangas prontos para obedecer qualquer ordem sua. Imaginei que ao conhecer o famoso Orestes, ia encontrar um homem grande e valente daqueles que enfrenta onça dentro da loca só com uma faca na mão mais lá chegando, ao contrario do que eu imaginava, encontrei um homem relativamente franzino, que não passava de um metro e setenta enquanto o seu Miguel era mais alto e corpulento. Ao entrar no salão do sitio, imediatamente avistei os dois homens sentados em uma mesa acompanhados das duas mulheres mais bonitas da casa. Uma estava sentada ao lado do senhor Miguel enquanto a outra que estava no colo do senhor Orestes conversava no ouvido dele como se tivesse combinando algo. Quando entramos eu e o Martinho, aquela mulher que estava no colo dele se levantou e fez sinal para a outra que também saiu. As aparências enganam e ao ser apresentado a eles tive a impressão de se tratar de pessoas sem maldade o que de certa forma me fez lembrar da idéia de que eu estaria mais uma vez sendo instrumento pro diabo realizar suas maldades. Essa idéia porem foi afastada rapidamente quando o senhor Orestes deu a ordem aos seus companheiros, que estavam numa mesa ao lado, e que ate aquele momento eu achava que eram amigos, mas que pela ordem vi que se tratava de capangas, para sentarem em outra mesa, mas que ficassem de olhos abertos. Os três homens que o acompanhavam afastaram enquanto eu, ele, o Martinho e o seu Miguel fomos sentar em uma mesa de madeira que já estava preparada para nosso jogo. Os jogos aconteciam em um salão grande que a casa do sitio possuía e ali cabiam varias mesas tanto para outras bancas de jogo como também mesas onde pessoa, na maioria mulheres, bebiam conversavam e paqueravam. Nos sentamos em nossa mesa e antes de qualquer coisa, o senhor Orestes raspou a garganta com firmeza utilizando o som para repreender um de seus capangas que nesse momento já desviava sua atenção em direção a uma das mesas que era ocupada por aquelas duas mulheres que estavam com o seu Orestes alem de outras duas mais belas ainda. Ao ouvir aquele raspar de gargantas que mais parecia uma tosse de cachorro, o capanga tomou um susto e imediatamente tomou uma postura de prontidão. Depois daquele chega pra lá dado em seu capanga, o senhor Orestes virou para a mesa com uma feição totalmente diferente daquela que tinha olhado pro capanga que tinha corrigido e falou: Então o senhor é o famoso João Vaqueiro? O homem que ninguém bate no truco! Naquele momento meio preocupado pela cena que tinha visto pouco antes e, percebendo que aquele homem não era flor de se cheirar, pensei em tomar uma postura de quem diz “eu não estou aqui pra brigar se é o que o senhor quer saber”, mas, rapidamente percebi que isso não seria correto pra quem tinha ido pro jogo de sua vida. Assim sendo, eu que estava sentado bem na ponta do assento de minha cadeira e escorado em seu encosto para manter certa distância, tomei uma postura mais firme chegando meu peito ate encostar na mesa e respondi: Parece que o senhor esta bem informado seu Orestes! Eu sou o João, o homem que não perde uma aposta no truco! Ele ouviu isso quase como se fosse um insulto, mas se manteve tranqüilo e também inclinou seu corpo ate seu peito encostar na mesa e respondeu: Pra tudo na vida existe uma primeira vez! Quem sabe hoje não é o meu dia de ganhar? Quem sabe não Orestes! É claro que vamos ganhar! Ou eu não me chamo Miguel! Complementou o parceiro dele! Com respeito porem sem ficar intimidado, disse ao senhor Miguel que não acreditava naquilo, e que se ele não soubesse perder, que ele não ficasse ali. Ele sorriu como quem não acredita no que ouve e em tão iniciamos nosso jogo. Como eu sempre fazia, a cada novo jogo que ia iniciar, eu pegava um baralho virgem, abria, pedia para meu adversário assoprar para então embaralhar e mandar meu adversário cortar. Essa era a senha que me garantir a proteção necessária para vencer e, dessa vez não foi diferente. Naquele dia eu parecia saber que a coisa não ia ser tão fácil e que todo cuidado era pouco. André procurou se cercar de todos os cuidados que um truqueiro deve ter. Uma dupla de truqueiros de sucesso depende de vários fatores, mas principalmente dos sinais que um dá ao outro e que é a forma de contar que cartas você tem permitindo que ele, o cabeça da dupla arme a jogada necessária para tirar carta boa da mão dos adversários e induzi-los ao erro. Outros fatores de sucesso é a capacidade de entender os sinais de seus adversários para saber o que estão dizendo, alem dos insultos, que para quem joga truco sabe que tem valor apenas como modo de tirar a atenção dos adversários e não como insulto propriamente dito. Portanto chamar os adversários de rato que está tentando ganhar sem ter cartas de valor, chamar de porco safado porque está tentando roubar o milho, que às vezes é utilizado no lugar do tento, são coisas absolutamente normais. São comuns em uma mesa de truco os gritos, xingamentos e insultos de toda espécie com exceção de contatos físicos. Quanto ao senhor Orestes, apesar da imagem dura passada no inicio, durante o desenrolar do jogo demonstrou ser um verdadeiro jogador de truco e tanto usava desses artifícios (insultos) como também permitia que André e Martinho usassem. “O jogo era pesado e bem pensado”, foi o que André disse para Juca enquanto continuava a história. Alem de pesado e bem pensado o jogo ia pau a pau. Eles venciam uma mão, nos vencíamos outra, e isso já ia longe já que no inicio nos tínhamos combinado que seria uma aposta única decidida numa melhor de cinco. Ora eles trucavam e nos dois corria, ora nos trucava e eles corriam. Era muito difícil num jogo daqueles alguém aceitar um truco e alem disso nossos adversários realmente eram bons jogadores. Naquele dia especialmente, a minha confiança no pacto parecia que estava abalada, não sei bem porque, mas as jogadas aconteciam de maneira natural como se não tivesse havendo nenhuma interferência. Parecia que tudo que eu fazia ou pensava em relação ao jogo, o senhor Orestes e seu parceiro conseguiam neutralizar, e isso começou a me deixar apreensivo. A certa altura do jogo eu cheguei a acreditar que tinha sido abandonado, mas imaginava que aquilo não seria possível, pois estávamos fazendo apostas muito altas e se eu perdesse perderia praticamente tudo que tinha ganhado ate o momento. Naturalmente se isso acontecesse o trato estava desfeito e eu não acreditava que o diabo iria querer perder seu lucro justamente quando já estava chegando a hora de eu me entregar. De qualquer maneira o jogo seguia e estava empatado em dois a dois, sendo dois bois pra cada lado e naquele jogo de desempate estava oito tentos pra eles e seis pra nós. Pelo andar da carroça e pelas regras do truco, apesar da vantagem deles, dali em diante quem tivesse mais peito, mais garganta e inteligência, levaria tudo já que a aposta estava no valor de noventa por cento dos bens de cada um. Deve ter sido nessa hora que o senhor recorreu a ajuda do danado! Não seu Juca! Eu estava tão preocupado com o jogo que em minha cabeça não tinha espaço pra pensar em ninguém, apenas no jogo. Comecei a imaginar uma jogada para dar um nó na cabeça da outra dupla e ganhar aquele jogo. Notei em determinado momento que o senhor Orestes estava um pouco distante e preocupado e que num sinal, aquela mulher que estava no colo dele quando chegamos, levantou e deu uma volta atrás de mim. Entendi que ali tinha alguma intenção maior e que sua caminhada não era apenas para esticar as pernas. Percebi que era o momento de eu dar a cartada final pra ganhar o jogo e toda a fortuna dele. Embaralhei o baralho e dei pro parceiro do seu Orestes que estava sentado a minha esquerda cortar. Observando o corte dele e seguindo seu pedido de dar as cartas subindo (de baixo para cima), eu sabia que o Zap cairia ou na mão do seu Orestes ou de meu parceiro. Ao terminar de dar as cartas olhei pra meu parceiro que me avisou que estava com duas cartas três, o que significava que o Zap estava mesmo com o seu Orestes. Levantei minhas cartas e vi a cara da sete copas o que nos dava uma boa chance. Nos estávamos de sete copas e dois três, enquanto eles estavam certamente de Zap com a possibilidade de uma espadilha e talvez até um três já que a sete ouros pelo meu acompanhamento havia ficado no baralho. Com o jogo que nos tínhamos a única forma de ganhar é através de algum erro dos adversários e naquele momento eu mais do que ninguém contava com este erro. Como eu era pé, aquele que deu as cartas e que joga por ultimo, e o seu Orestes era mão, aquele que inicia a rodada, fiz questão de levantar minhas cartas, mas escondi a sete copas deixando a mostra outro três. Naquele momento vi que a mulher que tinha se levantado fez questão de ir pro outro lado do salão passando atrás de mim. Entre eles deveria haver um entendimento para que o parceiro dele jogasse carta boa a fim de tirar a minha. Mais não foi o que houve, o seu Orestes começou jogando forte e colocou de cara o Zap. Como não tem outra carta maior, naturalmente a primeira mão foi deles e ele deveria tornar. Ele tornou jogando uma figura qualquer esperando que seu parceiro terminasse aquela mão com um belo truco que certamente nos faria correr já que a primeira mão era deles. Ele não contava porem que o Martinho colocasse um de seus dois três, o que obrigou seu parceiro a usar a espadilha que tinha. O senhor Miguel, achando que eu não tinha carta boa na mão, já que desta vez não dei sinal ao Martinho, e achando que o jogo estava ganho, cometeu o erro que eu precisava. Ao contar aquela parte da história a emoção que a lembrança causava estava estampada no rosto de André. Certamente aquele tinha sido um momento do qual ele jamais esqueceria. É seu Juca... Num rompante de quem tem certeza do que vai fazer, o seu Miguel cometeu o erro fatal. Pelo andar do jogo, sabendo que a primeira mão era deles, ele deveria jogar outro três o que me obrigaria a jogar minha sete copas para fazer a segunda mão e continuar com chances. Confiando que eu não tinha carta maior que sua espadilha, ele levantou da cadeira, bateu a mão na mesa e gritou alto e forte: Truco pra frente porque pra traz num tem gente! Truuuco porco magro! Quer engordar vai comer milho de outro! Aqui não safado! Truuuuuco esse três fidido! Ele disse isso se referindo ao três que o Martinho tinha jogado na mesa. Estava claro que com a espadilha que ele tinha ele matava o três e fechava aquela mão com três tentos a mais do que nós, deixando o jogo em onze a seis a favor deles. Aquele era um momento em que tudo podia ser decidido se eu soubesse jogar ou então ficaríamos numa posição desconfortável com uma chance mínima de ganhar o jogo. Nenhuma das duas duplas tinha corrido grandes riscos a não ser por um erro absurdo de uma delas. Antes que eu desse a resposta ele repetiu seu gesto e sua fala: Truco pra frente que atrás não tem gente! Ta com medo jogador de meia tijéla? Truco esse três fidido! Para o senhor Miguel, bastava jogar outro três igual ao do Martinho, para o jogo ficar cangado, e ele me obrigava a desperdiçar minha sete copa. Não sei bem porque e nem de onde veio minha coragem e sem nem mesmo me levantar da mesa olhei bem pra ele e disse: Joga! Aquilo significava que André, naqueles dias conhecido por João, estava aceitando o truco dos adversários e que poderia ganhar ou perder três tentos. Se a dupla do seu Orestes ganhasse, eles ficariam com onze tentos e teria o direito de escolher por até três mãos consecutivas, se suas cartas eram suficientes para jogar ou não, tendo assim a chance de escolher a melhor hora para liquidar seus adversários. E ele jogou! Pelo estardalhaço todo feito por jogando outro três ele me obrigava a jogar a sete copas, o que deixaria sua espadilha sendo a maior carta garantindo assim a mão e os três tentos do truco. Para minha surpresa porem, ele cometeu o erro fatal jogando a espadilha. Para ele ter êxito naquela jogada, e sabendo que a carta dele podia ser tanto a espadilha quanto um três que de toda maneira eu teria que jogar minha sete copas, era preciso que ele tivesse o sete ouro para vencer a terceira mão. Quanto ao sete ouro, eu acreditava que tinha ficado no baralho, e isso dava a eles apenas mais uma chance, a deles terem um outro três, que cangaria (empataria) a mão, mas que eles venceriam por terem feito a primeira. Naquele momento eu vi a grande oportunidade de reverter aquele jogo através do que se chama de roubar no gógó. Na verdade colocar medo no adversário e fazer com que ele desista da jogada que ele mesmo iniciou. Ao ver a espadilha dele na mesa levantei minha cabeça para olhar na direção dele e perguntei: É só isso que você tem? Isso pra mim é pouco! E ainda olhando pra ele bati as costas de meus dedos na mesa deixando escapar minha sete copas sobre a espadilha. Naquele momento vi a preocupação estampada nos rostos dos adversários e pude acompanhar seu retorno pra cadeira com cara de arrependido enquanto usava a expressão “torna” para pedir que eu jogasse a próxima carta já sentando em sua cadeira. Torna! Disse ele! Ao que eu respondi com uma calma proposital e cínica. Não tenho! E ele perguntou meio assustado: Como não tem? É sua vez! Mas eu não tenho! Eu disse isso sabendo que tinha chegado a minha grande hora. Para tornar só se for com seis! Nesse momento eu é que levantei da cadeira, dei um coice nela jogando pra traz, bati na mesa e gritei com todas as minhas forças. Seeeeeeis só! Seeeeis! Seis milho ladrão de tento! Sai daqui rato safado! Vai comer milho noutro chiqueiro seu porco fedorento! Seeeeis só! Seeeeeeeis! Aquele era o grito que nenhum jogador gosta de ouvir e que dizia a todos que ali estavam que João, não só estava propondo aumentar a aposta daquela mão, mas que só mostraria suas cartas se eles topassem correr o risco de pagar seis tentos ao invés dos três que o truco dava direito. Neste jogo o adversário que recebe o seis na cara tem a opção de não aceita-lo e neste caso ele perde os três tentos do truco, e isso com certeza era o mais prudente a fazer, pois dessa forma eles ficariam com os oito tentos que já tinham e André e Martinho subiriam para nove, o que dava a eles uma boa chance de continuar e ate virar o jogo. É, um seis na cara é coisa que ninguém espera receber!Disse Juca. É verdade seu Juca! A pessoa só truca achando que tem toda chance de ganhar e geralmente não espera esse resultado. Mais nesse caso eles dois deve ter corrido né? Porque o mais certo é correr depois da besteira que eles fizeram! Esse foi o grande erro deles! Ao invés de correr e perder três, mas continuar no jogo eles se consultaram e resolveram aceitar o “Seis” achando que eu estava roubando. A seqüência foi o que era de se esperar ao aceitarem o seis eles não contaram com o três de meu parceiro que superava duas cartas dois que eles tinham. Quando o Martinho mostrou o três dele e eles não tinham o sete ouro ou um três para cangar o jogo mostrando apenas os dois, eu e meu parceiro sentamos nas cadeiras novamente, pegamos na mão um do outro e numa comemoração batemos os cotovelos em cima da mesa enquanto seguramos firmes as mãos direitas tampadas com as esquerdas. Depois que passou nossa euforia, devagar fui percebendo o silencio que se formou dentro do salão. Era como se todos os presentes estivessem prevendo que algo não sairia bem naquele momento e se formou uma tensão imensa no ar. Nós quatro permanecemos sentados na mesa em meio ao silencio até que sentindo a necessidade de saber o que ia acontecer, retomei aquela postura do inicio do jogo quando encostei meu peito na mesa e falei para o seu Orestes como se estivesse me desculpando: É seu Orestes, hoje não é seu dia de ganhar! Neste momento numa reação já esperada o seu Miguel levantou rapidamente da mesa e com uma expressão de raiva disse: Merda! Como pode ser? Ele fez a pergunta apontando o dedo pra mim enquanto os três capangas já haviam se levantado e dado alguns passos em nossa direção. Eu já esperava pelo pior quando sem muito esforço e com certa serenidade o senhor Orestes se levantou, fez sinal pros capangas se afastarem, olhou pra seu parceiro e falou: De que adianta lamentar? Nós perdemos e pronto! Amanha será outro dia e outros jogos viram! Vamos embora! Ele disse aquilo fazendo sinal para os capangas saírem e antes de ir ele disse para mim e para meu parceiro: É vocês só pode é ter pacto com o diabo! Eu nunca perdi um jogo em toda minha história. Parabéns, vocês mereceram! Enquanto ele disse aquilo, eu e Martinho demos um pequeno sorriso de canto de boca, cada um por um motivo naturalmente. Ele passou por traz de nós dois e sem demonstrar nenhum arrependimento virou as costas e saiu em direção à porta. Antes de sair, ele se aproximou daquela mulher e sem dizer nada apenas encostou as costa de suas mãos no rosto dela como se fosse fazer um carinho. Ela deitou o rosto pro lado como se estivesse recebendo o carinho enquanto ele puxando sua mão, segurou forte no queixo dela e deu duas pequenas balançadas. Aquela cena me deixou meio preocupado, mas não o bastante para impedir de curtir minha mais nova conquista. Por alguns minutos eu e Martinho ficamos ali sentados, olhando meio sem acreditar, para os documentos das terras e do gado que tínhamos acabado de ganhar. O silencio ao nosso redor foi quebrado depois de algum tempo quando o Martinho numa mistura de alegria que não cabia dentro do peito virou-se para mim e disse: A décima parte de quinhentos contos de reis é igual a quanto mesmo? Meio desconfiado quanto a ter mesmo ganhado aquele dinheirão todo, e com uma mistura de alegria e tristeza ao mesmo tempo, respondi que dava cento e cinqüenta contos de reis. Continuamos ali meio em silencio e ainda deixando as coisas acontecerem por natureza quando ele parou, pensou um pouco e disse: O senhor errou parceiro! Não dá cento e cinqüenta não! Dá apenas cinqüenta contos de reis! E eu firmemente retruquei que não tinha errado e que dava mesmo cento e cinqüenta contos de réis. Ele ficou olhando assustado sem saber o que dizer enquanto me observou chamando o dono do sitio e dando a ordem para que depois que ele retirasse sua porcentagem dividisse em duas partes de trinta e setenta por cento. Após dar aquela ordem voltei minha atenção para Martinho que estava ainda com cara de bocoió sem saber o que dizer e completei! Pegue seus cento e cinqüenta contos de reis e vai ser feliz! Mais mesmo assim eu ainda te devo muito, mais e esse valor vai dar pra pagar e sobrar... Você não me deve nada companheiro! Sua divida ta perdoada e o dinheiro é todo seu! Mais tem uma coisa, vê se agora aprende a gastar com consciência. Gaste apenas aquilo que sobrar e nunca mais... Nunca mais em toda a sua vida, se sente de novo numa mesa de jogo! Me ouça! Aquilo que o senhor Orestes disse é mesmo verdade! Só se ganha um jogo assim quando se tem pacto com o diabo! Ele fez sinal para alguém trazer uma garrafa de pinga de engenho, colocou duas doses nos copos em cima da mesa e empurrou um deles em minha direção. Ele sabia que eu não bebia e ele também era bastante controlado, mas naquela noite era diferente e aquela relação não podia acabar de outra forma. Sentados em nossas cadeiras, pegamos os copos e segurando um encostado ao outro ele disse: Foi um prazer parceiro, jogar com você! Certamente nos encontramos depois! E eu respondi: O prazer foi meu companheiro, mas acredito que não vamos nos ver de novo! Notei no rosto dele a expressão de quem não havia entendido o que eu estava dizendo e complementei: Eu agora vou sair pra uma viagem... Longa, muito longa! Ele fez uma expressão de pesar e concordância e sem mais nada dizer bebemos aquela pinga. Ele se levantou, pegou seu alfoje, jogou nas costa e se virando foi embora. Eu ainda me lembro de ver ele saindo pela porta muito bem iluminada pelo sol que vinha nascendo naquela direção, e aquela foi a ultima vez que vi o parceiro Martinho. A essas alturas o seu Juca tinha ido para a sede da fazenda a fim de avisar ao seu patrão André que dentro de mais dez dias aproximadamente o novo retiro da fazenda estaria pronto a ser inaugurado. Esse seria um momento de grande alegria para qualquer fazendeiro, e, portanto motivo de uma grande festa feita com churrasco durante o dia e bailão durante toda a noite. André porem estava vivendo um momento de sua vida que certamente não era normal e por isso recebeu a noticia do fim da construção com pouca empolgação. Aqueles últimos dias enquanto os dois homens se encontravam para que André contasse essa história, tinha sido também dias em que o diabo impunha muitas atividades contra André e sua família em torno de sua casa. Foi exatamente esse motivo que o levou a tomar a decisão de contar tudo a alguém. Para ele era uma forma de tentar parar de uma vez por todas aquelas atividades que por tão intensas o deixava sem saber se eram reais ou apenas fantasias de sua cabeça. Assim sendo, ao receber a noticia do fim da construção do retiro, chamou seu funcionário, senhor João Cavaco e deu a ordem para que este fosse atrás da família que iria morar no novo retiro e marcasse com eles o dia da mudança para o mais breve possível. O novo retiro, como aconteceu com todos os outros, iria receber um nome que o diferenciaria dos demais. Meio atordoado com as investidas do diabo, André não tinha cabeça para pensar naquilo e por isso disse ao ser questionado pelo seu Juca quanto ao nome, que ele podia escolher. Sem muito pensar seu Juca disse que se chamaria “Retiro do Trovão” por ter se lembrado do primeiro dia em que ele, André e João Cavaco foram juntos para aquele local e depois de um trovão eles foram cercados por uma ventania intensa. André concordou e pediu a Juca que logo que terminasse o serviço, juntasse sua tralha e seus peões e viesse embora para dar lugar à família que logo chegaria. Seu Juca fez isso e dez dias depois, com o serviço já terminado, ele e seus peões estavam chegando de volta na sede da fazenda. Ao chegarem André deu uma parte de dinheiro para Juca que acertou os dias de serviço de cada um dos trabalhadores a fim de dispensá-los para irem para a cidade. Naquela época os trabalhadores braçal ficavam dentro do mato trabalhando por seis, sete, oito ou ate mesmo 12 meses conforme as condições de distancia e de importância do serviço. Feito o acerto todos se apressaram em ir embora a fim de encontrar suas famílias que ficaram na cidade, enquanto que Juca ainda permaneceria ali por alguns dias fazendo o acerto final relacionado a seu trabalho e ouvindo aquela história que o intrigava tanto. Aquele dia estava quase no fim e depois de liberar os peões para acamparem e se preparar para irem embora no outro dia, Juca e André sentaram na tora partida ao meio e que era usada como banco e ficava do lado de fora do galpão para assistirem a movimentação da turma. Depois de um tempo, Juca não resistiu à curiosidade e logo perguntou a André o que havia acontecido depois da saída de Martinho do local do jogo. Ver meu parceiro virando as costas e indo embora me causou uma sensação ruim. Era uma mistura de tristeza e consciência pesada com o medo do que eu iria enfrentar dali pra frente. Aquele era o ultimo jogo e eu tinha que cumprir minha parte do trato. Eu tinha que ir de encontro a meu destino e entregar a alma pro diabo. Como o senhor sabia que era o ultimo jogo? Tinha quantidade certa de jogos? Não seu Juca! Tinha prazo, e ele estava chegando! Pelo tempo que faltava e pela quantidade de dinheiro que eu já tinha ganhado, não tinha mais tempo pra continuar, e alem disso eu queria fazer algumas coisas antes de encontrar meu destino e precisava de tempo. Depois que o Martinho sumiu na porta, eu ainda fiquei por algum tempo sentado naquela mesa digerindo tudo que tinha acontecido. Peguei aquela garrafa de boa cachaça e com muita calma coloquei mais uma dose dela em um copo e fiquei contemplando. As apostas que eram feitas ali ficavam sob a responsabilidade do proprietário que era homem de cara amarrada e que inspirava confiança, e sendo assim quando ele vinha entregar o resultado dos jogos, já trazia com ele o valor descontado de sua porcentagem. Foi assim naquele dia, e ele arrumou minha parte depois de já ter dado a do Martinho, enquanto eu contemplava aquela cachaça. Ele se aproximou e disse que estava tudo pronto para eu pegar tudo que havia ganhado. Eu olhei pra ele e pedi que esperasse por um tempo e fui prontamente atendido por ele que retornou dando ordens aos seus empregados que já arrumavam tudo pra fechar. Depois de certo tempo ali sentado me levantei e fui em direção a ele que estava atrás do balcão. Havia ali algumas mulheres e outro homem que parecia ser uma espécie de jagunço e que se mantinha meio afastado. Peguei uma bolsa com algum dinheiro e com os documentos de tudo que eu tinha ganhado e distribui entre eles o dinheiro que não representava nem dois por cento da renda daquela noite. As mulheres que trabalhavam por conta do sitio, naquela noite receberam um reforço no pagamento, e ao verem o dinheiro vieram todas se oferecendo a mim. Eu não tinha cabeça para outra mulher depois de Josefine e especialmente naquela noite, pensar em assunto de sexo era a ultima coisa. Voltei até a mesa com a bolsa na mão esquerda e com a direita peguei o copo de cachaça. Olhei pra ele como se me despedisse e virei de uma só vez na garganta. Coloquei de volta na mesa, olhei para eles e fiz sinal de adeus para sai pela porta onde momento antes tinha saído meu parceiro Martinho. Nos dias que se seguiram ocupei todo meu tempo para colocar os documentos daquilo que eu tinha ganhado em meu nome e no mesmo documento nomear meus pais como meus representantes. Isso foi feito através de documentos acompanhados de uma carta onde expliquei tudo a eles. Aquela carta foi o único contato que me foi permitido ter com eles durante todo o tempo em que me tornei jogador. Feito isso, eu estava pronto para seguir meu destino e por mais que eu não quisesse o dia estava chegando e nada me restava alem de esperar. O dia estava chegando e aquela seria a ultima noite em que ficaria tranqüilo, pensei quando resolvi ir deitar. A tranqüilidade porem foi algo que não esteve a meu lado por vários motivos sendo o primeiro deles o fato de saber que agora que eu estava muito rico, não poderia desfrutar dos benefícios que aquele dinheiro traria. Ao me lembrar disso fiquei imensamente frustrado e a toda hora me perguntava se teria valido a pena, mas por maior que fosse a frustração, me lembrava também de alguns benefícios que para mim eram muito importantes e, entre eles poder devolver o dinheiro de minha mãe e dar pra Aninha aquela boneca que ela tanto queria. Boa parte de minha noite foi desperdiçada com essa guerra interna que ora me deixava decepcionado, ora com a sensação do dever cumprido, ora me vendo como um monstro e ora como um mendigo que não teve outra opção. Uma das coisas mais gostosas que aconteceu naquele penúltimo dia, foi o fato de eu deixar debaixo da porta do quarto de dona Chica uma grande soma de dinheiro e um bilhete onde o André se desculpava com ela por não ter pago a pensão quando saiu e por não ter tido como voltar pra cidade. O bilhete que foi escrito pelo alfaiate a meu pedido, era simples e dizia assim: “Querida amiga dona Chica! Espero que ao receber este, a senhora goze de boa saúde e de muita felicidade. Peço desculpas por não ter pago a conta da pensão, mas acho que esse dinheiro é o bastante. Obrigado por tudo que fez por mim. De seu amigo! André Aquele ato representava uma coisa muito importante para mim. Ele seria a minha redenção diante da pessoa que mais me ajudou e que certamente daria boas referencias sobre mim se um dia minha família fosse naquela cidade. Com essa mistura de sentimentos, e com o cansaço sendo maior que a resistência, que então comecei a pegar no sono e vivi então a segunda parte de uma noite que jamais será esquecida. Ela foi ocupada com os mais terríveis pesadelos que eu jamais tinha tido e quando finalmente o dia amanheceu eu não sabia se ficava triste por ter que ir aquele encontro ou alegre por finalmente me livrar do sofrimento de uma noite tão terrível. Como eu sabia que era meu ultimo dia naquela cidade e talvez na terra, procurei deixar uma boa impressão de mim e por isso passei no alfaiate para pegar um terno branco que tinha mandado fazer a alguns dias e que era um desejo que eu carregava há muito tempo. Havia também a necessidade de passar no armazém pra buscar os alimentos que o diabo havia dito pra eu comprar pra dar pro seu amigo que vinha me buscar. O tempo havia se passado, mas eu podia me lembrar de sua palavras: Há! O meu amigo que vem te buscar é meio temperamental, portanto, antes de vir passe em um armazém e compre cinco quilos de carne, cinco quilos de frutas e cinco litros de leite, mas preste atenção! Quando ele pedir carne, dê frutas! Quando ele pedir frutas, dê leite! E quando ele pedir leite dê a carne! Assim foi feito e ao fim do dia vinte e sete de dezembro de quarenta e sete, eu estava pronto para seguir pro local combinado. Eu havia me esquecido porem, da distancia entre Alto Araguaia e a encruzilhada que ficava depois do ribeirão Claro e daquele sitio chamado Biquinha, a beira da rodovia, famoso por ser ponto de parada para todo viajante que passava por ali. A distancia era muito grande pra que eu fosse seja a pé ou a cavalo, e chegasse antes da meia noite dentro do horário combinado. Mesmo assim peguei um cavalo bom que eu sempre mantinha nas redondezas da cidade e, vestido em meu terno branco muito bem cortado e carregando a carga na garupa atravessei a cidade altivo tentando demonstrar que nada podia me vencer. Aquela demonstração só tinha valor para mim mesmo já que, para os moradores da cidade, eu não passava de um jogador chamado João Vaqueiro e que tinha tido muita sorte no jogo, mas mesmo assim fiz questão de deixar aquela imagem. Atravessei a cidade e quando cheguei no alto da subida da estrada carreira que havia me trazido para aquele lugar, virei meu cavalo em direção a cidade para contemplar. Quando parei o cavalo e tive a visão da cidade não pude deixar de lembrar do dia em que cheguei deslumbrado com as luzes das casas e cheio de esperanças em um futuro grandioso. Era como se eu estivesse vendo a mim mesmo naqueles dias passados. Um rapaz cheio de forças, mas cansado por aquela corrida que tinha feito para chegar na cidade ainda naquele dia. Deslumbrado com a primeira visão de uma cidade, jovem e feliz por estar buscando um sonho alimentado desde menino. Neste momento fiz um comparativo daquele menino de três anos atrás com o homem que saia agora, e mais uma vez decepcionei comigo mesmo. Num movimento que demonstrava o tamanho da decepção que eu sentia, puxei as rédeas do cavalo dando um xaxo em sua boca fazendo virar em direção ao Ribeirão Claro, ao mesmo tempo em que cutucava suas costelas com as esporas para que ele saísse em disparada. As luzes da cidade parecendo raios provocados pela rapidez da virada do cavalo e pelas lagrimas que vieram sem eu querer, foi a ultima imagem que eu vi em relação à cidade, pois na disparada que sai quanto mais o cavalo corria mais eu batia nele pra ele correr. Aquele acesso de desespero durou um tempo que eu não sei dizer quanto, e só parou quando depois de chorar bastante enquanto o cavalo corria, abri meus braços como se chamasse meu destino e soltei um grito de revolta que podia ser ouvido muito distante dentro da mata que margeava a estrada. Aquele grito de dor e tristeza me retornou a realidade, me colocando em um local que certamente não era a encruzilhada e que eu não conseguia reconhecer. Não sei se foi pelo grito ou por outra coisa, mas de repente na minha frente e em meio a escuridão que já fazia, senti um vento forte que lembrava a batida de azas do galo quando vai cantar. Aquele vento veio em minha direção acompanhado de um grito muito fino e quando eu já me preocupava por não saber do que se tratava devido a escuridão, uma forte luz que eu não sabia de onde vinha, iluminou a estrada e me mostrou aquele que me esperava. Tratava-se de um imenso urubu rei com mais ou menos três metros de altura, com suas penas pretas quenem carvão, com sua cabeça meio careca e com poucas penas coloridas. Ele estava de pé no meio da estrada com as asas abertas e naturalmente meu cavalo se assustou esbirrando nas quatro patas e quase me jogando por cima de seu pescoço. Numa reação natural de quem passou boa parte da vida vivendo num sitio e lidando com gado, cavalos e outros animais, me segurei firme na cabeça do arreio com uma mão e com a outra fui tentando ate conseguir controlar o cavalo e fazer ele parar ainda de orelhas em pé, assustado e bufando como um touro. Quanto a mim, não sei qual susto foi maior, o de ver aquele pássaro gigante em minha frente, de quase ter caído do cavalo ou o de ouvir o pássaro bradando e me perguntando se eu tinha esquecido do trato, após inclinar sua cabeça em minha direção soltando um bafo horroroso. Balancei a cabeça em negação, mas não consegui soltar nenhuma palavra naquele momento, e por algum tempo fiquei parado com os olhos estatalados diante daquela visão estranha e intrigante. Eu tinha conseguido controlar meu cavalo mais ainda não tinha decido dele quando o urubu tornou a falar comigo desta vez para começar a dar as ordens. Vai ficar esperando até o dia do juízo final? Eu tenho pressa e o patrão odeia atraso! Vamos logo, me dê a carne que você prometeu! Ele repetiu aquele grito muito fino enquanto eu apiei de meu cavalo rápido e desamarrei os sacos com as comidas tirando da garupa. Antes de entregar a ele porem e talvez pelo nervosismo, perdi um bom tempo tentando me lembrar das recomendações do diabo quanto a dar sempre a comida errada para o amigo dele. Naquele momento me confundi um pouco, e demorei para ter certeza que era se ele pedir carne dê frutas! Vamos logo! Me dá minha carne prometida! Eu preciso muito de carne! Muito! Novamente aquele grito, e eu peguei o saco com bananas, laranjas, mixirica e dois articuns e joguei diante dele que imediatamente enfiou o bico na boca do saco, e erguendo a cabeça jogou todas aquelas frutas para dentro sem nem mesmo mastigar. A impressão que deu é que nem mesmo sentiu o gosto do que estava comendo. Feito isso ele se abaixou como se fosse deitar e deu a ordem para eu subir em suas costas, o que eu obedeci prontamente levando comigo o outro saco com a carne e a vasilha com o leite. Ele se levantou do chão, abriu bem suas asas que pareciam ter uns seis ou sete metros de ponta a ponta, e num salto coordenado com a batida das asas voou sem a dificuldade que eu imaginava que ele teria devido a seu tamanho. Estava muito escuro já que aquela luz que me ajudou a ver ele tinha desaparecido, mas parece que por mágica, lá de cima eu conseguia ter uma visão meio embaçada do que estava abaixo de nos e tive a impressão de ver lugares conhecidos como a ponte do Ribeirão claro entre outros. Não demorou nem cinco minutos e eu nem tinha entendido direito o que estava acontecendo e o urubu rei gritou para mim. Me dá as frutas que você me prometeu, ou eu jogo você daqui de cima! Conforme as recomendações do diabo, quando ele pedisse frutas era para eu dar leite e foi o que fiz depois de muito trabalho para conseguir desatrelar os sacos onde estava a vasilha com o leite e a carne. Depois disso fiquei com o saco de carne numa mão enquanto me segurava com a outra já que agora não tinha outra maneira de carregar o saco que antes estavam trelados sobre meus ombros. Ele tomou o leite da mesma maneira que comeu as frutas e novamente fiquei com a impressão que nem sentiu o gosto do que bebeu, já que boa parte do leite foi derramado em mim e no vazio da noite. Durante aquele vôo eu não tinha idéia do que sentia porque era tudo muito estranho e perigoso. O risco de cair La de cima era grande e eu jamais tinha imaginado algo desta natureza em toda minha vida, e eu às vezes pensava que nada daquilo estava acontecendo e que não passava de um pesadelo, mas sempre tinha algo para me mostrar o contrario. Se fosse um pesadelo e eu estivesse dormindo, como era tão cheio de pormiudes? Como em um único sonho eu podia ter conhecido tantas pessoas como a Dona Chica, a Josefine e sua acompanhante, meu parceiro de Jogo, todas as pessoas que viviam na pensão Boa Viagem, o João da sorte que quase me matou quando eu invadi a casa abandonada que ele vivia? Na realidade era um pesadelo sim, mais bastante real e seu fim não era exatamente o que eu tinha imaginado para minha vida. O desespero e a falta de inteligência tinha me colocado naquela situação e eu agora tinha que encarar a realidade que foi lembrada pelo urubu rei que novamente gritou pedindo sua comida. Cadê o meu leite que você prometeu? Eu estou com fome e preciso de leite! Preciso de muito leite! Como da segunda vez, ao pedir a comida ele levou a cabeça para traz deixando seu bico diante de mim e largando um mau cheiro horrível em minha direção. Abri o saco como fiz antes e ele comeu aquela carne crua da mesma maneira que antes. Minutos depois que ele acabou de comer aquela, seu corpo se inclinou para o lado esquerdo e para baixo ao mesmo tempo fazendo com que mudasse a direção e me pregando outro susto imenso ao imaginar que ele estava caindo. Depois que ele fez a curva, na minha frente pude ver ao longe uma grande construção que depois vi que era um castelo que crescia cada vez mais a medida que a velocidade aumentava. E ela aumentou tanto que fiquei surdo com a pressão do vento e com o grito que o urubu rei deu como se tivesse avisando alguém de sua chegada. A sensação era de que a pele de meu rosto ia sair pra traz de tanto que o vento assoprava forte. Quando foi chegando mais perto uma coisa me chamou a atenção. Era um grande castelo do tipo que eu já tinha visto em um livro que apareceu na casa de meus pais, mas com uma grande diferença, esse não tinha portão, janelas e nem portas. De cima deu para perceber que suas paredes eram totalmente fechadas parecendo uma caixa de madeira mais eram feitas de pedras. Ele ficava no alto de uma montanha e ocupava toda ela sobrando apenas um pequeno espaço diante dele como se fosse um pátio. À medida que a velocidade aumentava, mais o castelo crescia, mais chegávamos perto e mais medo eu sentia porque eu continuava não vendo a porta por onde íamos entrar. A certa altura imaginei que íamos descer naquele pedaço de terra que sobrou na frente do castelo, mas conforme foi chegando perto vi que não seria assim já que o urubu rei tomou a direção da imensa parede da frente sem diminuir a velocidade. Tomei a atitude de me abraçar em seu pescoço e tampar a cabeça com o braço esquerdo para esperar a pancada. Mesmo com muito medo e, imaginando que íamos nos arrebentar naquela parede e com a cabeça tampada pelo braço esquerdo, não deixei de olhar para frente e pude ver quando parte daquela imensa parede simplesmente deixou de existir. Com o sumiço da parede, formou-se uma grande porta por onde entramos para dentro de uma sala imensa, toda branca e que também não tinha portas, nem janelas e nem mesmo aquele buraco por onde entramos. O urubu rei parou e imediatamente se abaixou para que eu descesse de suas costas, o que obedeci prontamente movido pelos últimos sustos. Ele esperou apenas que eu descesse e caminhou com passos parecidos com os de uma pata choca em direção a outra parede que também se abriu e ele simplesmente sumiu depois de repetir aquele grito muito fino. A sala era muito grande, com o chão e as paredes tão brancas que chegava doer as vistas e nela só tinha uma mesa com duas cadeiras que de tão brancas, quase não podiam ser vistas. Fiquei por um tempo meio atordoado com tudo aquilo que estava acontecendo, e depois de algum tempo pensando no que fazer dali pra frente, me sentei em uma das cadeiras para esperar. Aquilo tudo era muito estranho, pois se eu acreditava estar no inferno mais como aquelas paredes eram tão brancas, aquela sala tão iluminada e tão silenciosa? Aquilo certamente não era a idéia que eu fazia de um lugar onde segundo os antigos, era escuro, mal cheiroso e cheio de gritos de horror. Mais tarde descobri o porquê de cada uma das tantas estranhezas que faziam parte daquele lugar. Enquanto estava sentado ali sozinho não pude deixar de pensar em minha vida. Lembrei rapidamente de tudo que havia acontecido desde quando sai do sitio Solidão. Lembrei dos dias de tanta esperança quando cheguei à pensão Boa Viajem, da confiança que eu sentia em mim mesmo naqueles dias, no carinho e na amizade da dona Chica, na paixão arrasadora por Josefine e em nossa noite de amor, primeira vez que conheci uma mulher intimamente... Todas essas lembranças me eram muito doídas, mas o que mais me perturbou durante aquele que talvez fosse meu ultimo momento de paz, foi a lembrança de meus pais. Seus conselhos para eu não sair do sitio, o carinho e os cuidados que eles sempre tiveram ao tentar ensinar o melhor caminho para se trilhar... Nesse momento sem que eu soubesse por que, veio a minha cabeça a observação feita por meu pai quando eu sai para ir para a cidade. Naquele dia dentro do curral com um par de sedens (corda artesanal feita com cabelos da quelinas dos cavalos e dos rabos das vacas) nas mãos ele me disse para eu ser igual a eles, que eram moles mais eram fortes e por isso já servia a ele por muito tempo. E disse mais! Não seja igual arvore que por ser forte acha que pode enfrentar o vento e acaba quebrada e perdendo a luta. Naquele momento de tanto perigo, e praticamente sem ter o que fazer a meu favor, é que pensei pela primeira vez no significado daquelas palavras. Pensar nelas em um momento de tanto desespero, provavelmente foi o que tornou fácil entender o que ele queria me mostrar. O que meu pai dizia era pra que eu dançasse conforme a musica. Se alguém me fosse bravo, eu deveria fingir que não era de briga! Se alguém fosse rico, eu deveria saber o meu lugar e não querer ser igual sem ter condições! Se alguém me ajudasse, eu aceitasse a ajuda! Em outras palavras ele dizia para eu não ser orgulhoso mais sempre lutador! Aquelas palavras caíram como luvas naquele momento e a partir dali comecei a ver uma chance de escapar de tudo aquilo. O sinhô acho o jeito de engana o diabo? O sinhô ta doido! Quero vê alguém inganá ele! Não seu Juca, eu não descobri como enganar ele, eu apenas tive uma idéia que podia me dar a oportunidade de fazer uma tentativa de reverter aquela situação. E que que o sinhô fez? Eu continuei quieto ali sentado naquela cadeira esperando que alguma coisa acontecesse e, logo eu ouvi um barulho vindo da direção daquela parede onde o urubu rei tinha saído e não demorou muito para que ela se abrisse e de dentro dela saísse umas trinta criaturas cada uma mais estranha do que a outra. Liderando aquela turma estava uma criatura que era uma mistura de homem e animal e que me assustou tanto que mal consegui encarar direito. Eles entraram e me cercaram imediatamente. Eu me levantei da cadeira e fiquei olhando para todos eles assustado quando o líder falou: Ora ora André, ate que em fim! Você deu mais trabalho do que eu imaginava! Esta um dia atrasado, e perdi contrato por sua causa sabia? Mas agora vai compensar! Quem é você? Eu perguntei assustado. Há! Me desculpe não ter me apresentado, eu sou... Antes de falar quem era ele se transformou naquele senhor que me encontrou na encruzilhada e com quem eu tinha feito o trato. E agora, me reconhece? Quer dizer que a sua verdadeira imagem é aquela de agora a pouco? Qual? Esta? Ele falou e se transformou novamente naquela criatura que tinha entrado na sala e novamente voltou para a imagem do senhor. A minha real imagem, caro André, depende de minha necessidade! Eu tanto posso ser este homem que esta vendo, como também posso ser aquele que entrou! Posso ser seu melhor amigo e até o seu pior inimigo e estar ao seu lado sem você saber! Eu posso ser qualquer um, e isso depende de como, onde e com quem eu vou lidar! Mas, vamos parar de conversa fiada e vamos ao que interessa! Conforme nosso contrato... Ele falou isso estendendo uma das mãos para traz onde uma das criaturas que o acompanhava entregou a ele um pedaço de couro de mateiro que ele abriu e leu, e que depois o virou para mim mostrando que nele aparecia meu nome no alto, e minha assinatura, feita com sangue, no final: Conforme nosso contrato você ficaria rico através do baralho, sem limite de riqueza, mas com limite de tempo, o qual já acabou, e quando vencesse os dois anos, menos cinco dias, você entregaria... Novamente ele se transformou naquela criatura. Sua linda alma para mim... O que deve ser feito exatamente, agora!... Peguem ele e pode levar! Naquele momento senti que não havia mais o que fazer porem, numa atitude de desespero fiz sinal para as criaturas esperarem e falei: Ainda não! Eu tenho algo a dizer! E você acha que eu não sei! Que meeerda! Todos vocês sempre tem algo a dizer nessa hora! Diga logo! Dei alguns passos na direção contraria a ele acompanhado por algumas criaturas e pelo olhar de todas elas e me virando falei: Você me ensinou a jogar e com isso eu fiquei rico! O problema é que eu aprendi muito bem, e acho que hoje sou melhor que meu mestre! É e agora eu não consigo mais ficar sem jogar, e quero fazer uma aposta com você! A ultima aposta! E o que é que você tem pra apostar? Sua alma? Sinto te informar seu santinho, mas ela já é minha! Dinheiro não me interessa! Portanto... Fiquei sem saber o que dizer e por algum tempo ficou um silencio até que ele falou. A menos que... Você tenha algum filho que eu não estou sabendo! Você tem um filho? Ou... Também podemos negociar a alma de sua irmãzinha Ana? Ela me serviria muito bem! Ah, seria uma delicia poder disfrutar daquele corpinho... Não! Eu não tenho! E a Aninha não! Pode levar ele, eu estou muito cansado! Cansado! Ou com medo? Foi o que eu disse quando ia passando por ele agarrado por duas criaturas maiores. Ao ouvir isso ele pegou nas costas de uma das criaturas e segurou fazendo ela parar. Com medo? Com medo de quem? De você? há há há há há! Não! Com medo de apostar. O grande senhor das trevas, dono da maldade não esta com coragem de apostar com um pobre ninguém! Naquele momento eu estava fazendo o que meu pai tinha me dito. Eu estava sendo o sedem que é mole mais é forte! Ele era o vento forte e eu o ramo que se deita diante dele, ao contrário da árvore! E porque que eu faria isso? Você não tem nada a oferecer! Talvez a coragem que te falta! Ele deu a volta e ficou na minha frente me olhando com cara de descrédito e disse depois de observar por alguns segundos. Qual é a aposta? Vamos jogar e se você ganhar realmente vai mostrar que não é apenas o covarde que fica tentando as pessoas, dificultando suas vidas apenas para elas não ter outra oportunidade e ter que se vender a você. Provara que realmente tem coragem e que não age na surdina. Mas eu sou um covarde! Minhas ações são sim, feitas na surdina! Há há há há há há! E quem está preocupado com isso? Se eu ganhar, você me libera do compromisso e me deixa viver a minha vida em paz junto com meus pais e irmãos. Ele parou por um instante me olhando e disse: Bla bla bla, bla bla bla e bla bla bla! Eu não preciso te provar nada! Posso acabar com você agora! Você não tem nada que me interessa! É um péssimo jogador por pedir uma aposta sem ter o que oferecer, mas... Você é corajoso e acertou em cheio ao me desafiar! Eu adoro um desafio e vou fazer a aposta com você só pelo prazer de vencer!...Se todos que chegam aqui fossem mais corajosos eu teria muito mais diversão, mas são uns bobões que so sabem chorar de arrependimento. Mesmo não tendo que te provar nada! A aposta é a seguinte: Eu vou te dar três tarefas a serem realizadas onde e quando eu disser, e se você realizar as três... Veja bem as três, eu te libero de seu compromisso! Vai ser muito bom te ver aguniado por mais alguns dias! Tarefas? Mas eu estava pensando em jogar truco e não em tarefas! Que tarefas são essas? Como é que eu vou apostar sem conhecer o jogo? Assim é difícil! É pegar ou largar! Alem disso seu sujeitinho burro, você se esquece que só ganhava no truco porque eu te ajudava? Como iria ganhar de mim? Todas as partidas que você e seu parceiro jogaram só foram ganhas porque eu estava lá colocando as manias no lugar certo na hora certa. Quantas vezes seus adversários seguiam o baralho e sabiam exatamente onde estava o Zap, a Sete copas ou a espadilha e eu simplesmente tirava elas daquele lugar e colocava em outro dentro do baralho! Quantas vezes eu tive que confundir a cabeça de seus adversários trocando a imagem que eles viam e fazendo eles descartarem uma mania achando que era uma figura qualquer! Deixa de ser burro e se coloque em seu lugar. Até desmanchar um contrato eu desmanchei quando fiz você ganhar do velho Orestes. O seu Orestes? O que perdeu o ultimo jogo? Mais como ele perdeu o jogo se também tinha pacto com você? Então quer dizer que nem sempre você pode ter o controle de tudo? Ao contrario! Eu sempre tenho o controle e é exatamente por isso que eu fiz ele perder o jogo! O contrato dele venceu uns dias antes dele perder aquele jogo pra você. Ele achou que podia ficar do jeito que ele queria e que podia dar as cartas. Ele foi muito ganancioso e eu tive que mostrar a ele! E você não gosta de ganância? Contra os outros sim! Enquanto as pessoas estão fazendo maldade umas com as outras eu fico muito feliz! Acho maravilhoso ver visinhos se matando por nada, pessoas morrendo por mixaria, religiosos mentindo em nome do “ outro”, só para acumular riquezas, pais usando seus filhos apenas para seus propósitos. Tudo isso é maravilhoso! Eu adoro ganância, mesquinharia, traição, mentiras. Hum mentiras é uma delicia, simples mais muito eficiente e deliciosa! Ela se tornou tão comum que as pessoas nem acham mais que ela é pecado!Eu adoro tudo isso meu caro. Mas quando é contra mim, ai tudo muda e o castigo vem conforme a necessidade!... E conforme o meu humor, é claro. Quer dizer que o seu Orestes voltou a ficar pobre? Não! Isso fez parte de um plano maior que eu montei. Eu fiz com que ele acreditasse que podia fazer as coisas do jeito dele, sem depender de mim, e de repente tirei tudo dele através de você. Eu sabia que tirando tudo dele, ele aumentaria o valor da aposta. E aumentou! Eu agora tenho a alma dele e a do filho mais novo dele que ele deu pra recuperar tudo que perdeu pra você. Neste momento ele está novamente numa mesa de jogo recuperando a perda com a ajuda de outra mulher, porque aquela que estava no colo dele naquele dia, ele matou na mesma noite. Ah, ele é dos meus! Mente, rouba, trapaceia e o que é melhor, mata! Como quem fala da melhor coisa do mundo, a felicidade ficou estampada na cara dele quando ele repetiu. Ele mata... Mata mulheres!... E então, vai aceitar minha aposta? É pegar ou largar! Eu fiz sinal de sim com a cabeça e ele ordenou as criaturas que me soltassem e saíssem. Elas sairão e ele ainda na forma daquele senhor passou a mão sobre meu ombro e me puxou para andarmos e passarmos por aquela mesma parede como se nada tivesse ali. Enquanto estávamos andando dentro de um corredor que também era branco e que também não tinha portas e nem janelas, fizemos duas paradas. Na primeira ele parou colocando a mão na minha frente em sinal para eu parar e passou a frente virando-se e ficando de frente para a parede esquerda. Bastou ele se virar para a parede e ela se abriu como se parte dela tivesse deixado de existir. Daquele local absolutamente tranqüilo e de clima agradável, tive a visão do verdadeiro inferno. Lá abaixo de nós, apenas a alguns metros estava um lugar absolutamente quente e cheio de imagens que nós seres humanos queremos acreditar que não existem. No pouco tempo que pude olhar aquele inferno, vi pessoas sendo açoitadas, outras tendo suas carnes arrancadas com elas ainda vivas, algumas mulheres sendo estupradas por criaturas horríveis e todo tipo de maldade que agente nem imagina, feitas em um ambiente sujo de sangue e restos de corpos que já estavam apodrecendo. Enquanto fiquei ali diante daquela visão horrível, meus olhos ficaram estatalados e eu não conseguia nem me mexer de tanto horror daquela visão. Aquela cena não durou mais que um minuto mais foi o bastante para me deixar absolutamente descrente e arrependido de tudo que eu tinha feito durante minha vida. Continuamos a andar e enquanto caminhávamos uns dez metros antes de fazer a segunda parada ele comentou. Essa é a sua morada daqui até a eternidade! Se acostume com ela, ta? Porque depois de perder a aposta, e você vai perder, é pra ca que você vem! Na segunda parada ele fez o sinal para eu parar e se virou para a parede da direita fazendo acontecer a mesma coisa que antes. Ela se abriu como da primeira vez e em um local que aparentava ser um quarto, por estar com o piso muito bem forrado com lindos tapetes e muitas almofadas fofinhas, estavam três mulheres muito bonitas e de raças diferentes. A primeira que aparentava ser mais velha era loira e tinha os cabelos tão brancos e bem cuidados que parecia que os fios eram de ouro. A segunda, que aparentava ser a do meio, uma morena maravilhosa com cabelos tão negros e lisos que parecia a própria noite e que parecia ter origem índia. E a terceira e aparentemente a mais nova, uma negra tão bonita e sedutora que não dependia do encanto dos cabelos cacheados para ser a mais bonita entre as três. Essa visão, ao contrario da primeira, durou apenas alguns segundos e passou a impressão que ele estava apenas conferindo a presença delas. Feito isso imediatamente a parede reapareceu tão rápido como tinha sumido. Eu ainda estava atordoado com a primeira visão mais pude notar que no momento que a parede se abriu, duas das mulheres se mantiveram sentadas e olharam para ele sorrindo, mas uma delas a morena esboçou uma reação no sentido de olhar para mim e foi imediatamente repelida por um olhar firme e repressivo do diabo que a fez desistir de sua ação. Nos poucos segundos que eu pude olhar para elas, alem de perceber essa atitude da morena, pude observar também que das três, apenas ela se mostrava descontente já que a loira e a negra mostrava satisfação. Não havia nenhuma pretensão de minha parte, a não ser curiosidade, quando olhei para elas. Na tentativa de ficar um pouco mais ali por perto, perguntei a ele como acontecia a proteção dele para mim e para minha fortuna. Ele me olhou meio desconfiado e depois de certo tempo fez um sinal com a mão esquerda e como mágica tudo que havia acontecido desde o inicio do pacto em trinta e um de dezembro de dois anos atrás ate aquele momento passou em minha frente como se estivesse acontecendo naquele momento. Ali pude ver os principais adversários no truco, o transporte de minha fortuna ate meus pais, o transportador que tentou me roubar e que foi esfolado vivo entre outras coisas. Naquele momento vendo depois de três anos, a imagem de meus pais senti um aperto no peito e lamentei ainda mais não ter dado outro rumo a minha vida. Depois daquilo andamos um pouco mais e entramos em outro ambiente que agora era um grande salão onde se viam pessoas absolutamente normais, fazendo atividades normais como se fossem funcionários de uma empresa servindo e dando satisfação ao seu chefe. No centro daquele salão tinha um grande trono que dava a noção da imensa riqueza que sustentava aquele lugar. Naturalmente o trono estava vazio até nossa chegada e foi ocupado por ele que se sentou depois de me apontar uma única e simples cadeira que estava colocada de um lado do salão. Ele ocupou o trono e foi logo abordado por algumas daquelas pessoas que pelo que pude notar davam informações enquanto recebiam ordens dele. Eu não conseguia ouvir o que diziam e só depois de algum tempo quando aquelas pessoas se afastaram que pude ter novamente sua atenção. Ele olhou para mim com ar de desafio e falou mansa e calmamente. Dentro de três dias você vai saber qual é a primeira tarefa! Vendo minha curiosidade durante todo o trajeto e enquanto eu permaneci sentado naquela cadeira ele virou pra mim e falou. Você não esta entendendo nada não é? Pois bem! Esta é a primeira empresa do mundo!com apenas três departamentos ela é simples e eficiente! Daqui eu controlo todos os contratos. Sei quem esta devendo! Quem esta abusando da sorte! Quem está cometendo os pecados grandes e os pequenos! Cada departamento tem sua função. O primeiro que você viu é o departamento de cobrança! Lá executamos os contratos. Aqui é o departamento administrativo, onde controlamos tudo e todos. Ao contrario do que se diz por ai, esse controle não pertence ao Pedróca, aquele santo bobalhão, pertence a mim. Ele apenas recebe aqueles que se salvam! E claro, temos o departamento de vendas ou de conquista, que é aquele que você conhece muito bem e que é chamado de globo terrestre. A terra? Quer dizer que vocês estão lá? O tempo todo! Todos os dias! Em todos os lugares! Como eu disse é uma empresa simples e eficiente justamente porque o departamento de vendas faz muito bem seu trabalho estando em todos os lugares, e principalmente dando muitos incentivos! Onde você acha que vamos achar insumos? Insumos, o que é isso? Material, pessoas, almas! Depois de dizer aquilo ele ergueu a mão esquerda e fez um gesto giratório. Imediatamente me senti dentro de um redemoinho que me transportou não sei como, para um quarto onde tinha apenas uma caixa feita com madeira roliça colocadas umas sobre as outras como se faz casa de pau a pique só que neste caso os paus na horizontal. Essa caixa estava cheia de terra ate a boca e se parecia com um tumulo. Os dois primeiros dias foram passados ali dentro sem saber de nada e sem ver ninguém, mas ouvindo gritos horríveis e barulhos diversos. A única visita que eu recebia era de um anãozinho que andava de terno e que aparecia do nada trazendo minha comida e água. A comida era simples e gostosa e me lembrava muito a comida da dona Chica. Foram dois dias muito difíceis porque eu não tinha nada o que fazer e ninguém com quem conversar, e isso me trazia muito desespero, mas eu sabia que tinha que aguardar para descobrir do que se tratava as tais tarefas. O terceiro dia, um trinta de dezembro que começou exatamente igual aos outros e na hora do almoço veio o anãozinho e me trouxe a comida e água como fez nos dias anteriores porem, na hora da janta veio a surpresa. Uma meia hora mais cedo, do que de costume ao invés de vir o anãozinho me trazer a comida, fui surpreendido pela aparição daquela morena que eu havia visto quando andava com o diabo pelo corredor branco. Fiquei surpreso e claro me levantei num salto daquela caixa de madeira cheia de terra e que tinha sido minha cama fria nas ultimas duas noites. Ela vestia um vestido simples, mas de bom tecido e que valorizava o corpo bonito que tinha e veio trazendo nas mãos as vasilhas de comida e água, e antes que eu falasse ou fizesse qualquer coisa ela fez sinal para eu ficar em silencio, se aproximou e falou. Não fale nada! Amanhã vai ser sua primeira prova. Pegue esse pó e quando tiver que realizar sua tarefa, coloque ele onde precisar e assopre forte em sentido contrario ao que o esparramou! Ela falou aquilo muito baixo com medo de sermos ouvidos e enquanto entregava a comida, me entregou um pequeno vidro com o tal pó, me entregou a água e simplesmente desapareceu. Eu fiquei ali meio sem saber o que estava acontecendo e só quando comecei a entender que ela fosse quem fosse, estava tentando me ajudar, peguei aquele pequeno vidro e coloquei dentro da ceroula. Me sentei na caixa cheia de terra e comecei a comer normalmente como fiz nos dias anteriores. Depois de comer toda a comida que ela me trouxe, peguei a vasilha de água e fiquei segurando na mão sem beber durante uns dez minutos enquanto pensava em tudo aquilo. Por alguns momentos me preocupei se a aparição dela não era apenas um truque do diabo para tentar me enganar e dificultar ainda mais minha vida, mas pensando um pouco melhor, achei que ele não tinha motivos para isso já que eu nem sabia qual era minha primeira tarefa. Depois de certo tempo com aquela vasilha de água nas mãos, tomei dois bons goles, coloquei ela sobre a caixa, e me levantei tentando espreguiçar. O tempo naquele momento me pareceu ser contado conforme minhas ações, pois mal me levantei, o que deu a entender que acabei o jantar, e do nada entrou no quarto, o diabo com aquela imagem horrorosa acompanhado de algumas de suas criaturas falando ironicamente. O senhor foi bem tratado senhor André?Amanha cedo começa nosso jogo! Esta vendo aquele córrego que passa lá em baixo? Neste momento a parede se abriu me mostrando o córrego e eu respondi que sim. Sua primeira tarefa é fazer um rego d`água e trazer água até aqui em cima! Você tem amanha o dia inteiro pra isso! Aposto que vai ser moleza pra quem se mostrou tão bom em desafios! Bom trabalho, senhor André! Antes que eu conseguisse dizer qualquer coisa ele virou devagar enquanto a parede se fechava de um lado e se abria do outro pra ele sair junto com a sua turma. Enquanto ele se virava para ir embora pude notar a cara de satisfação dele que sabia que aquele trabalho era impossível para mim e que, portanto, eu não realizaria. Virgem nossa senhora! O sinhô tava no mato sem cachorro mesmo hein seu André! Esse foi meu pensamento durante boa parte da noite seu Juca. Eu sabia que a tarefa era impossível e até aquele momento a presença daquela morena que eu nem sabia o nome não era algo que me deixava tranqüilo. Eu não tinha confiança de que ela realmente iria me ajudar e muito menos que aquele pozinho no vidro fosse capaz de realizar o que eu precisava. É bastante estranho mesmo! Como é que ela conseguiu ir no lugar do anãozinho, se as criaturas dele parecia ser muito fiel? Segundo o que ela me disse muito tempo depois, ela conseguiu que uma das mulheres do diabo passasse a noite com o anãozinho em troca de ser levada para um nível melhor, coisa que no futuro foi descoberto pelo danado e punido segundo sua lei. Eu continuava duvidando porque, água de morro acima todo mundo sabe que nunca foi visto! Demorei bastante para pegar no sono e quando isso aconteceu, eu estava bastante cansado que cheguei a dormir com certa tranqüilidade. O dia seguinte chegou e como eu já imaginava, logo cedo algumas daquelas criaturas que eram dignas de dó de tão feias que eram, vieram me buscar e me acompanharam para o local da realização da tarefa. O córrego passava na base da montanha onde era fincado o castelo do diabo e só depois de chegar lá em baixo é que percebi o quanto ela era alta. A distancia entre o córrego e o castelo era de aproximadamente uns dois km, e certamente era impossível usando as ferramentas que havia, ou seja, enxadão ou picareta, fazer sequer o rego d água naquele dia. Mesmo que a distancia fosse menor e que o rego ficasse pronto, como fazer a água subir aquela montanha? Eu sabia que não podia, mas me restava à chance da ajuda daquela morena não ser uma ilusão, e sendo assim, acompanhado daquelas criaturas desci a montanha ao mesmo tempo em que montava minha estratégia de trabalho. Eram umas cinco criaturas que me acompanhavam e eu não sabia qual eram suas instruções, e para ter uma idéias de suas reações fiz uma tentativa. Como elas me acompanharam toda aquela distancia andando atrás de mim, ao chegar no riacho me afastei poucos passos abrindo minha braguilha e fazendo o gesto de que ia mijar. Percebi que eles não quiseram ficar por perto e nem tiveram o interesse de ver o que eu estava fazendo de verdade. Naquele momento ainda fiz uma brincadeira boba virando para eles de propósito e molhando um deles. Naturalmente a brincadeira foi no sentido de saber se algum deles podia ter a reação de ficar de olho em minhas atitudes. Enquanto fazia meu forçado xixi, retirei aquele vidro da ceroula e com a unha do dedão da mão direita retirei uma pequena lasca da tampa do vidro que era feita de talo de buriti. A retirada desta lasca iria possibilitar a saída vagarosa daquele pó, de forma a ele se espalhar por onde eu queria durante o caminho de volta, até o alto da montanha. Terminei aquela ação contando muito com a sorte já que se o pó não se espalhasse certamente minha estratégia não daria certo e eu estaria perdido. Virei para a criatura que parecia comandar as outras e pedi para voltarmos pro castelo. Eles olharam uns para os outros e deram boas risadas comemorativas pois achavam que meu pedido para voltar era uma desistência da aposta. Voltamos e dessa vez bastante rápido porque eu estava com medo de não chegar ate a frente do castelo antes do pó acabar. Quando lá chegamos parei no local marcado para a água chegar e, quando parei uma criatura me cutucou com seu machado de dois cortes para que eu continuasse andando. Fiz sinal para ele esperar e me virando para traz abaixei no local marcado e assoprei forte em direção ao riacho. As criaturas ficaram sem saber o que fazer enquanto olhavam umas para as outras numa discussão desordenada. Eu comecei a observar tudo em volta de mim, mas não conseguia ver nem ouvir nada que me aliviasse a preocupação. Passaram alguns segundos enquanto eu continuava a observar, ate que uma das criaturas tomou a iniciativa de continuar me levando embora pr5a meu destino. Mal começamos a andar e eu já me preparava para descobrir que a ajuda da morena era uma trama do diabo, quando de repente começamos a ouvir um enorme barulho vindo do córrego. A medida que o barulho ia aumentando, aumentava também o corre corre daquelas criaturas que não sabiam se cuidava de mim, se iam olhar o córrego que a esta altura estava fora do alcance da visão ou se simplesmente iam contar algo ao chefe. Depois de muita correria duas delas correram até a beira da montanha, no rumo de onde tínhamos vindo pouco tempo antes e foram surpreendidas com a força da água que vinha do rego e que jogou as duas a muitos metros de distancia fazendo elas se esborracharem na parede sem porta do castelo. Naquele momento eu imaginava que seria um grande alvoroço e que tudo quanto é criatura viria ate ali para constatar o que estava acontecendo,mas ao contrario, formou-se ali uma situação que eu não esperava. Todas aquelas criaturas que me acompanhavam, ficaram absolutamente desanimadas e cabisbaixas ao ver que eu havia cumprido aquela tarefa impossível. Eu imaginava também que eles correriam para chamar o chefão que viria esbravejando e soltando fogo pelas ventas, mas isso não aconteceu. Houve uma lamentação entre elas enquanto aquela água ficou correndo por alguns minutos, e depois de constatada a veracidade do caso, a criatura chefe estralou os dedos e simplesmente a água começou a diminuir ate parar de correr. Quando vi aquela atitude da criatura, e a água parando de correr, imaginei que eu estava muito encrencado já que agora não tinha provas para convencer o diabo da tarefa realizada. Ao contrario do que tinha imaginado porem, fui levado diante dele naquele salão onde tinha o tono, e que agora estava muito diferente. O salão não parecia mais um escritório ou coisa assim e ele agora estava cheio de coisas velhas e destruídas que o fazia parecer mais com uma tapera abandonada, mas que mantinha ainda a mesma cadeira e o mesmo trono, feito de ouro e pedras preciosas que lembrava grande riqueza. Quando entramos notei que o trabalho se desenvolvia como num escritório, mas que todos que trabalhavam ali e que antes tinham uma aparência normal, agora haviam se transformado e passaram a ser criaturas como as outras que me acompanhavam. O ambiente estava pesado e quando o diabo me viu, levantou do trono e gritou com aquela criatura que parecia comandar os outros perguntando. O que ele esta fazendo aqui? Vocês já não obedecem mais as minhas ordens? Será que vou ter que fazer o serviço todo sozinho? Ele se levantou do trono esbravejado e erguendo sua mão num gesto que parecia que ia acabar com a existência daquelas cinco criaturas que me acompanhavam. As cinco criaturas imediatamente se prostraram de joelhos diante dele, chorando e pedindo clemência enquanto a chefe delas que estava um pouco a frente falou. Por favor todo poderoso, nos não temos culpa! Ele realizou a tarefa! Sem nem mesmo pestanejar, o diabo ergueu sua mão e simplesmente explodiu aquela criatura que tinha falado. Neste momento o choro e os pedidos de clemência aumentaram junto com a correria e a seção de acusações entre elas, que só parou quando uma outra criatura se adiantou, ajoelhou e repetiu a frase. É verdade todo poderoso! É a pura verdade! Nos não estamos mentindo! Ele realizou a tarefa! Novamente sem pestanejar sua mão foi erguida e outra criatura foi destruída enquanto que a terceira já chorando também disse. Todo poderoso! Nos não estamos mentindo! Ele realizou a tarefa! A cena se repetiu e a terceira criatura desapareceu numa explosão que assim como das outras vezes, deixou o chão cheio de sangue e restos destroçados dos corpos delas. Ele se levantou e se dirigiu a quarta criatura. Agachou no chão a seu lado, passou a mão em sua cabeça num gesto de carinho enquanto falava. Tripé, você me conhece bem não é verdade? Você já me ajuda a uns dois mil anos mais ou menos! Sabe como sou não sabe? Depois de fazer essas perguntas para a criatura, ele virou pra mim e falou com desdenho a minha pessoa. Em dois mil anos o Tripé nunca mentiu pra mim, e agora eu vou desmascarar sua farça senhor André! Depois disso ainda olhando fixo pra mim com desdenho continuou falando com a criatura chamada Tripé. Eu vou perguntar e você vai me responder com a verdade, certo? A criatura tremendo e chorando sacudiu a cabeça em afirmação. O que é que ele esta fazendo aqui? Porque que ele não está no departamento de cobranças? Todo poderoso, os meus irmãos não mentiram! Nois não sabe como, mas ele realizou a tarefa! A água subiu o morro e veio até o castelo! O diabo então olhando firme para a criatura a seu lado deu três tapinhas em suas costas e disse: Mais que diabo! Quer dizer... Que merda!... Ele bateu nas costas da criatura e falou com calma. Eu já ouvi! Mais eu precisava ter certeza! Lembra? Três vezes antes que o galo cante. É preciso confirmar sempre três vezes! Ele se levantou do chão e veio pro meu lado, deu a volta em torno de mim sem nada falar, parou em minha frente e me olhando bem nos olhos falou também com calma. Como? Como você realizou a tarefa? Eu sei que você não vai admitir a trapaça, e os jogadores, na verdade, não tem mesmo essa obrigação! Mais como? E principalmente quem te ajudou? Muito bem... O senhor ganhou mais um dia senhor André! Amanha vira sua segunda tarefa! Imediatamente fui levado para o quarto de cama de madeira com terra dentro onde ficaria o resto do dia e a próxima noite aguardando os novos acontecimentos. Antes de sair daquela sala ainda pude escutar ele gritando muito nervoso a frase “Achem o traidor! Achem o traidor imediatamente!” Aquele quarto onde eu estava funcionava como uma espécie de sala de espera e de lá eu podia ouvir muita coisa como os gritos das pessoas que eram torturadas e consumidas ainda vivas, e também a movimentação daquilo que parecia ser a administração de uma grande empresa com pessoas dando ordens, levando e trazendo informações umas para as outras. Os gritos daqueles que já estavam onde eu deveria estar não fosse aquela aposta, eram simplesmente horríveis e pareciam acontecer em um tempo exato entre um e outro, o que provocava uma agonia imensa para mim que apenas ouvia sem saber direito do que se tratava. Naquela noite quando deu a hora da janta, fiquei com uma expectativa muito grande de que aquela morena apareceria novamente para me ajudar, porem ao contrário do que eu esperava, quem veio trazer a comida foi uma criaturinha muito mal encarada. Quando eu vi a criatura entrar a decepção ficou estampada em meu rosto tanto que acredito que ela percebeu e antes de deixar as vasilhas de comida e de água no chão, ela me encarou por algum tempo como se estivesse me estudando. Depois daquele estudo, e de ter dado uma boa olhada dentro do quarto, ela saiu e eu então peguei a comida no chão e comecei abrir a vasilha para comer quando ouvi um movimento perto de mim vindo do outro lado daquela parede. Fiquei alerta tentando imaginar o que seria e logo vi novamente a figura esguia e bonita da morena que tinha me ajudado no dia anterior. Ela entrou me fazendo sinal de silencio e sem perda de tempo me disse o porquê de estar ali. Não tenho muito tempo! Eu não tenho certeza quanto a tarefa que vai ser dada amanhã. Acredito que podem ser duas. Uma você cumprirá com esse liquido vermelho deste vidro e a outra você consegue cumprir com esse facão! Seja uma ou outra, use o que estou te dando. Acredite em mim! Ela falou rapidamente e saiu ainda mais rápido enquanto eu fiquei ali sem saber o que fazer com aqueles objetos. O vidro como da outra vez seria fácil guardar na ceroula, mas o facão era grande, tinha mais ou menos uns quarenta centímetros. No inicio pensei em esconder ele dentro da terra da caixa, mas imaginei que não teria como pegar ele pra lavar comigo de manhã quando viessem me buscar, sem que as criaturas o vissem. Fiquei com medo que por imaginar que houve alguma ajuda na primeira tarefa, desta vez o diabo tomasse mais cuidado, e assim resolvi esconder o vidro dentro do anus, o único lugar que talvez eles não procurassem. Quanto ao facão, depois de pensar por alguns instantes, retirei minhas calças e com a lamina afiada daquele facão cortei em tiras uma das pernas de minha ceroula. Usando a tira amarrei bem forte o facão rente a minha perna, colocando o cabo dele no tornozelo e sua ponta terminando no joelho. Terminei de fazer aquela arrumação e quando me preparava para deitar e me acostumar com o incomodo que aquele facão amarrado na perna causava, ouvi grande movimento do lado de fora e logo fui novamente surpreendido desta vez pela presença do diabo que veio acompanhado de outras cinco criaturas. Quando ele entrou no quarto levei um grande susto e me levantei rapidamente daquela cama de terra. Ao me levantar rápido esqueci do danado do facão e com o movimento que fiz, sua ponta afiada deu um corte pequeno em minha perna na altura do joelho. Eu nem percebi o corte tamanho foi meu susto ao reencontrar o diabo dentro do quarto onde eu estava. Naquele momento tive a impressão que ele estava tão desconfiado de meu feito com o rego d água que não querendo correr mais riscos iria cuidar pessoalmente de meu caso o que para mim era muito ruim. Ele entrou não com a altivez característica de sua forma mais humana, a do senhor elegante que me apareceu desde minha chegada na pensão da dona Chica, mas sim com aquela imagem horrorosa que causava medo. Sem perda de tempo falou o que queria e o que tinha vindo fazer. Senhor André, muitos já tentaram me enganar, mas todos acabaram no mesmo lugar que o senhor vai acabar! Ali! Ele fez um gesto e a parede se abiu me mostrando novamente o horror provocado por suas criaturas contra aqueles que estavam no departamento de cobrança para serem consumidos vivos. Eu olhei instintivamente, mas desvie logo o olhar para olhar para ele como quem diz que não tem medo enquanto ele com o mesmo gesto fechou a parede e continuou. Muito bem! Vamos jogar o jogo! A sua nova tarefa senhor André é muito simples! Eu joguei o meu anel preferido dentro do oceano, e o senhor apenas terá que buscá-lo para mim! Há, e desta vez o trabalho será muito bem supervisionado pelos meus meninos que não iram permitir erros! Não é verdade meninos? Ele falou isso olhando para as criaturas que estavam com ele e que responderam firmemente que sim. Ele já estava se virando para ir embora quando ao olhar para o Tripé notou uma atitude diferente dele e se virou de volta. Neste momento eu também olhei para a criatura que estava ao meu lado abaixada e cheirando a minha perna. Depois de cheirar por um tempo, ela ergueu a perna da minha calça e lambeu o lado interno da perna direita onde o sangue escorria do furo provocado pelo facão. É saaangue todo poderoso! Pronto! Ele descobriu tudo! Agora a coisa tava feia pro seu lado heim seu André? É seu Juca, ai a coisa ficou feia de verdade! Seu André, eu não entendo uma coisa! Se lá é como o senhor ta dizendo, que vantagem eles tem em da comida pro senhor todo dia? Já que o negocio é fazer sofre, eles podia deixa morre de fome. Não seu Juca! Eles não podem fazer isso porque senão, eles te matam logo e ai acaba a diversão deles! Alem disso, no meu caso ele tinha aceitado a aposta e enquanto um não vencesse, não teria total poder sobre o outro. Então o que o senhor ta dizendo é que lá tem justiça? Sim! E não! Ele é injusto e trapaceiro quando ele quer ganhar sua alma, fazer você cair em desgraça, te conquistar. Depois que ele já conseguiu e a conquista já aconteceu, ai ele não precisa desses tipos de coisa, e assim fica parecendo que tem justiça. Há sim! Não quer dizer que ele seja justo, é que ele não precisa ser injusto porque já conseguiu o que queria! E como o senhor saiu dessa, seu André? Num sinal feito com a cabeça, o diabo que estava transformado na criatura horrorosa, ordenou as criaturas e elas simplesmente se amontoaram sobre mim, umas me segurando e outras rasgando a perna de minha calça para descobrir o que estava acontecendo. Ora, ora o que é isso? Um facão!... E será de onde ele veio senhor André? O senhor quer me contar? Naquele momento eu estava totalmente sem ação e não conseguia ter uma boa idéia para justificar a presença daquele facão comigo e por isso permaneci calado morrendo de medo de ser açoitado ali mesmo. Tudo bem, tudo bem! Que importa saber de onde veio! Se o senhor trouxe de fora ou se alguém está te ajudando. Ele disse isso olhando para as criaturas que imediatamente fizeram sinal de negação com a cabeça dizendo que não sabiam de nada. De qualquer maneira o senhor não vai tê-lo mais! Boa noite senhor André! Disse aquilo e saiu do quarto com muita rapidez enquanto eu me sentei na cama sem saber se ficava alegre por ter saído daquilo sem nenhum castigo ou se me desesperava por agora não poder mais contar com aquela ajuda. Se um dia eu tive sorte na vida, eu agora precisava de toda ela, pois o liquido no vidro dentro de meu anus, e que eu não sabia para que servia, não adiantaria na realização da nova tarefa. O tempo passou e uma hora depois eu ainda estava sentado na cama de terra quando novamente recebi a visita da morena que entrou pé por pé e desta vez vestida também com uma capa preta que cobria todo seu corpo da cabeça aos pés. Falando ainda mais baixo ela disse o que estava por acontecer e o que tínhamos que fazer se não quiséssemos ser descobertos. Não temos tempo a perder, vamos! Ela se aproximou de mim me abraçando de frente e colocando sua testa encostada na minha enquanto que com aquela capa preta nos cobriu por inteiro. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas durante os trinta segundos que durou aquela ação, eu consegui apenas, prestar atenção em seus olhos verdes, ate porque estranhamente não havia escuridão dentro da capa. Ao mesmo tempo em que meus olhos não saiam dos dela, minhas mãos sentiam a delicia de tocar em sua cintura perfeita. Apesar de muito rápido, aquele momento pareceu durar mais do que durou, e quando acabou nos dois estávamos abraçados na beira do oceano. Ela então descobriu nossas cabeças e começo a me explicar o que estava acontecendo ali. Preste muita atenção no que vou te falar! A ajuda que eu te dei na realização da primeira tarefa e a descoberta do facão em seu corpo, despertou suspeitas sobre todos que estão aqui, e por isso o cerco está se fechando. A tarefa de amanhã só pode ser realizada de uma maneira! Ela disse isso enquanto retirava de dentro daquela capa um outro facão um ainda maior e me entregando por baixo da capa continuou. A única forma de retirar aquela aliança do fundo do oceano é você me matando e cortando em pedaços tão pequenos que dê para caber na palma de sua mão para depois me jogar dentro do oceano. Quando ela disse aquilo naturalmente eu me afastei num gesto de quem diz que não fará aquilo, mas ela que estava abraçada em meu ombro me segurou forte continuando sua explicação. Não se preocupe! Eu não vou sentir dor! E nem vou morre de verdade! Vou apenas entrar num estado temporário de morte, mas que será revertido tão logo eu pegue a aliança. Se eu pudesse eu mesmo faria o serviço, mas isso só funciona se for feito pela pessoa que esta precisando de ajuda. Aqui é assim! O bem que um pratica só funciona através de uma grande maldade daquele que recebe! Por isso que você tem que me cortar. Novamente eu tentei dizer a ela que não tinha coragem para fazer aquilo e que achava melhor desistir, mas novamente ela insistiu. Eu já disse não se preocupe! Eu não sinto dor e nem vou morrer! O único risco neste caso é se ele descobrir porque ai iremos os dois para a área de cobrança e sofreremos dor pelo resto da eternidade. Por isso existe um grande cuidado a ser tomado! Nem mesmo uma gota de meu sangue pode deixar de ser jogada dentro do mar! Se apenas uma gota de meu sangue ficar do lado de fora, no local onde a gota de sangue estaria no momento da primeira facãozada, aparecerá uma mancha vermelha e ele saberá que alguém tocou em mim. Nada de mim poderá ser retirado ou ele perceberá. Vamos esperar dar meia noite. Não podemos fazer nada ainda porque não é o dia de amanhã e o processo só funciona no dia marcado para a realização da tarefa. Enquanto esperávamos dar a meia noite continuamos ali abraçados dentro daquela capa, e mesmo estando muito preocupado pelo fato de que dentro de pouco tempo, eu teria que cortar em pedaços aquela mulher bonita, não pude deixar de ter pensamentos sobre intimidades. Para mim ela era um ser humano normal mesmo tendo se apresentado como mulher do diabo, e com esse pensamento comecei a conversar com ela indagando sobre todas as duvidas que eu tinha quanto aos motivos da ajuda dela. Ela me explicou então que vivia ali como uma das três mulheres preferidas do diabo, e que ele fazia essa seleção entre as centenas que tinha para satisfazer seu prazer. As três mulheres escolhidas ganhavam algum privilégio sendo um deles viver em tranqüilidade naquele quarto reservado. Eu tinha muitas duvidas naquele momento e uma das maiores era como ela sendo uma das mulheres do diabo, conseguia sair de lá sem que a sua falta fosse notada. Para me explicar como aquilo podia acontecer ela pegou minha mão e colocou por cima de seu vestido fazendo com que eu sentisse pelo tato uma espécie de curativo feito com panos debaixo de seu seio esquerdo. Perguntei do que se travava e ela disse que, para saber onde suas mulheres estavam, quando elas eram levadas pro inferno ele colocava dentro de seu seio uma peça de ouro que encaixava exatamente em outras formando assim um grande e único objeto. Era um grande coração de ouro que protegia um grande diamante também em forma de coração. Era uma jóia única no mundo e que ela o chamava de “O coração do diabo”. Se uma mulher saísse de dentro dos domínios dele, com seus poderes ele via a grande jóia faltando aquela peça, e sabendo que a mulher não estava no lugar, ele podia caçar e punir a fujona com muita rapidez. Disse que ela, a loira e a negra que eu tinha visto antes, eram as partes que representavam as artérias daquele coração, e sua ausência seria notada muito rápido se ela não tivesse se cortado, retirado a peça de dentro de seu seio e deixado debaixo de seu travesseiro. Perguntei por que ouro e diamante, e ela disse que eles representam o objeto alvo das maiores maldades já feitas sobre a terra. Que por eles já se matou milhares e que a maldade existente naquelas mortes vinham habitar dentro daquela jóia. Aquele corte debaixo do seu seio esquerdo que foi feito por ela mesma para tirar o objeto, e estava tampado com panos para não perder nenhuma gota de sangue deveria ser jogado junto com os pedaços dela dentro do mar. Ela fez isso usando um punhal que depois foi limpo naqueles panos que estavam ali segurando o sangue. Perguntei como ela veio parar no inferno, se tinha sido por contrato ou outro motivo, e ela disseram que foi devido a uma quebra de contrato de seu pai com o diabo e que para recuperar o contrato ele deu a alma dela em garantia. Falei que não entendia como aquilo era possível se o próprio diabo me disse que só podia apossar de uma alma se ela fosse dada pela pessoa que recebeu ela de Deus. Ela confirmou essa informação e completou dizendo que isso era possível se a alma desejada por ele fosse de uma criança com menos de sete anos não batizada, pois só depois dessa idade a pessoa conquistava esse direito. Contou também como era o funcionamento daquele lugar e que as pessoas que estavam na área de cobrança, eram seres humanos que haviam vendido em contratos as suas almas pro diabo, e que essas seriam consumidas vivas como alimento das criaturas dali. Que quando se tratava apenas das almas de pessoas más que morriam, o lugar era outro, e elas ficavam vagando em desespero sendo maltratadas todo o tempo e sofrendo por saber que não encontrariam um lugar de paz e não retornariam a viver sobre a terra. Disse que no caso de pessoas como ela que havia sido dada enquanto era criança não batizada, para justificar diante da sociedade, ás vezes a criança simplesmente desaparecia. Outras vezes era colocado no lugar dela um corpo sem alma e que passavam e ser vistas pelo povo como loucas ou possuídas, enquanto que o verdadeiro corpo acompanhado da alma vinha parar ali. Perguntei por que ela resolveu me ajudar e ela disse que desde quando chegou ali sabia que existia uma única chance de escapar e isso se daria através de um grande amor, e que acreditava que eu era a pessoa que podia fazer isso por ela, porque desde a hora em que me viu tinha sentido que gostava de mim e que eu tinha a força para junto com ela realizar aquele feito. Neste momento ela teve a preocupação de lembrar que se escapássemos daquele lugar, a única forma de ficarmos realmente livres seria indo diretamente a uma igreja onde o padre a batizaria e nos casaria ao mesmo tempo e que depois disso feito, o diabo não mais teria poder sobre ela. Perguntei então porque que tendo a possibilidade de sair de lá com aquela capa, não tinha feito isso antes. Ela me respondeu dizendo que isso só funcionava em um dia especifico do ano. Aquele era o dia, 31 de dezembro na passagem do ano e que se tivesse ali um grande amor envolvido havia possibilidade de dar certo. Neste momento entendi que ela estava dizendo que estava apaixonada por mim e que me ajudaria em troca de viver comigo pro resto da vida, o que para mim seria muito bom, pensei. Cheguei ate a esquecer tudo que estava acontecendo e os perigos a nossa volta e tentei dar um beijo nela. Ela porem não permitiu, lembrando que tudo que fosse tirado dela serviria como elemento de denuncia sobre sua ajuda e eu ainda teria a terceira tarefa para ser realizada e não podíamos correr o risco de ser pegos antes disso. Algumas outras indagações foram feitas por mim em meio a uma mistura de sentimentos como o medo e a paixão que estava surgindo e que me deixava meio bobo e sem ação. Ficamos ali aguardando a hora que não demorou a chegar. Era meia noite e dentro de pouco tempo eu passaria pela maior prova de toda minha vida. Nem mesmo viver como mendigo ou fazer o pacto que tinha me lavado ate ali era mais difícil e exigia mais coragem do que aquilo que eu teria que fazer. Eu estava tenso e pensativo e acreditava que não conseguiria fazer o que ela me pedia, e por esse motivo quando ela disse que havia chegado a hora, tentei me afastar, mas ela foi firme e decidida ao me segurar e não permitir que eu saísse. Com uma das mãos em volta de meu pescoço, posição em que tinha ficado desde que saímos do quarto, ela usou sua outra mão para, ainda embaixo da capa, virar o facão para cima e colocar sua ponta aguda debaixo de sua primeira costela esquerda. Ela fez isso olhando fixa em meus olhos tentando através dos seus me mostrar o que sentia e o quanto confiava naquele processo, para então com uma voz calma e doce, dizer: Agora é sua vez! Não se preocupe, vai dar tudo certo! Quando chegar a hora, faça a sua parte! Neste momento o desespero bateu forte e eu tanto tremia quanto perdia as forças. Em poucos segundos uma vida inteira passou pela minha cabeça e eu só conseguia pensar que eu não havia nascido para ser um assassino. Tudo que eu havia feito na vida, e até mesmo a minha própria vida não valia aquele ato. Matar uma mulher, ou qualquer outro ser humano, nunca tinha sido, e em minha mente continuaria não sendo, algo a se pensar. Não se preocupe, eu não vou ficar dentro do mar o tempo todo. Apenas minha alma vai ficar e, será capaz de fazer o que precisamos. Pegar o anel o mais rápido possível nos permitirá que voltemos para nossos lugares antes de ser dada a nossa falta. Faça sua parte, agora! Enquanto ela falava aquelas ultimas frases tentando me acalmar, mal percebi que ela havia tirado sua roupa e agora tirava minha, e peça por peça ia jogando longe de onde estávamos. Quando me deixou totalmente nu dentro daquela capa ela explicou que aquele era um cuidado para não permitir que o sangue dela pegasse nas roupas que depois eu ia precisar e que portanto não podia jogar no oceano. Ainda tentei me afastar novamente, mas sua firmeza e decisão não me permitiram, e convencido de que não havia saída e incentivado por ela que me pedia pressa e me lembrava que ela não sentiria dor e não morreria definitivamente, tomei a decisão mesmo contra minha vontade.
Olhando firme dentro dos olhos verdes dela fiz a única pergunta que ainda não tinha feito. Como ela se chamava. Luzia! Eu me chamo Luzia! Senti minhas lagrimas vindo forte, e fechando os olhos pedi perdão a ela enquanto num único empurrão fiz com que o facão atingisse seu coração depois de ter me afastado um pouco dela mais continuar segurando-a... Nesta hora, Juca estava parado diante de André absolutamente perplexo e imóvel diante da narrativa e da reação do próprio André que colocando a mão direita sobre o rosto abaixado, chorou como se aquela atitude tivesse acabado de ser cometida. Os dois homens ficaram por vários minutos num silencio absoluto devido a falta de condições de André em continuar contando a história e a falta de iniciativa de Juca em reverter a situação. André se recuperou e continuou. Imediatamente após isso abri os olhos e percebi que seu corpo não tinha mais vida. Deitei seu corpo no chão e conforme ela mesma tinha recomendado, ainda debaixo da capa preta comecei a cortar seu corpo em pedaços enquanto vomitava de remorso e desespero. Esse triste feito demorou em torno de meia hora e conforme ela havia dito tentei limpar todo o sangue que tinha ficado sobre a pedra onde tínhamos subido e onde as ondas do mar batiam insistentes. Depois de terminado aquele momento louco, tomei o banho recomendado por ela, lavei bem minhas mãos e o facão. Devido a uma luz forte que vinha não sei de onde mais que dava a impressão de ser da capa preta que mesmo sem nossos corpos dentro continuava em pé, pude fazer uma verificação em cima e em volta da pedra para me certificar de que não havia ficado nada fora da água ou em minhas roupas jogada ao lado. O lugar era uma beira de mar cheio de mata nativa e olhei tudo que pude tentando me certificar de ter feito tudo conforme as instruções. Nem mesmo terminei o que estava fazendo e a alguns metros distante, vindo de dentro do mar, percebi a presença de algo diferente. Virei para olhar, e minha surpresa foi imensa ao ver que lá estava Luzia sã e salva saindo de dentro do mar mais bonita do que era antes e agora totalmente nua. A visão dela saindo molhada de dentro da água, com o corpo moreno brilhando no reflexo daquela luz deixando aparecer toda sua sensualidade, me deu a certeza de que viver o resto de minha vida com aquela mulher seria extremamente prazeroso. Quando a vi, sai com a capa em direção a ela que tremendo de frio veio me abraçar. Aquela situação era exatamente inversa a que tinha vivido pouco tempo antes e agora que estávamos os dois nus debaixo daquela capa, o resumo era felicidade. Perguntei se tudo tinha dado certo e ela respondeu que sim. Continuando as instruções que ela me passava, disse que agora bastava voltar e esperar. Quando chegasse a hora de cumprir a tarefa, eu deveria apenas pular dentro da água que sua alma já estaria com o anel e me entregaria para que eu cumprisse a tarefa bem diante dos olhos dele. Aquele momento me deixou absolutamente tranqüilo e seria muito bom ver o maldito ficar com cara de bobo diante de mime de seus capangas que nunca o deixavam. Isso seria muito bom mais eu teria que aguardar o chamado dele para realizar mais aquela tarefa. Enquanto isso a situação que eu me encontrava era a de estar dentro daquela capa com Luzia ambos totalmente nus. Não agüentando de desejo, a virei de costas bem devagar enquanto sentia seu cheiro e suas curvas e ao mesmo tempo em que procurava uma posição para aquecê-la melhor. Quando depois de um bom tempo ela finalmente chegou a posição desejada levei um imenso susto ao perceber em seu ombro esquerdo uma grande mancha vermelha em forma de folha de arvore. Olhei tão assustado para a mancha que acabei chamando a atenção dela. Sem querer acreditar no que via ela me olhou tristemente como quem diz que houve uma falha incorrigível. Depois de segundos me olhando com os olhos tristes e cheios de lagrimas, ela começou a procurar a nossa volta e logo me apontou algo no chão um pouco distante de nós. Era uma folha seca de arvore que devia estar sobre a pedra e que antes que eu pudesse jogar no mar foi tocada pra longe pelo vento forte. Andamos em direção a ela e depois de me abaixar um pouco peguei a folha e virei constatando que seu lado de baixo continha duas ou três gotas de sangue que ao cair do alto havia feito um desenho igual ao do ombro dela. Era aproximadamente meia noite e cinqüenta minutos e mesmo estando agora desesperada por saber que a partir daquele momento não havia mais salvação para nos dois e que ele iria descobrir, ela ainda conseguiu saber o que era o melhor a fazer. Vamos embora! Temos que voltar imediatamente porque a cada hora cheia ele escolhe uma mulher para seu deleite, e mesmo sabendo que só vai escolher uma, ele exige a presença de todas. Se eu não for a escolhida, ele só deve perceber a mancha na próxima hora cheia, e nos ganhamos uma hora para agir! Ela terminou de falar aquilo enquanto vestimos nossas roupas, e imediatamente tomou a posição que tínhamos usado dentro da capa para vir, e trinta segundos depois, eu estava no quarto onde tinha sido deixado e ela foi embora. Seriam mais ou menos uma hora e dez minutos entre a hora que saímos da beira do mar até o momento que ele faria a segunda escolha de mulher da hora. Certamente foi o tempo mais longo de toda a minha vida. Eu sabia que os riscos que nós corríamos eram imensos e o pior de tudo é que eu tinha que ficar naquele quarto sem saber de nada passando por imensa agonia. Nos próximos quinze ou vinte minutos tudo podia acontecer. Caso ela fosse descoberta nós seriamos entregues a seus capangas que nos levariam direto pra área de tortura onde seriamos devorados vivos por aquelas criaturas horríveis. Fiquei muito tenso e qualquer barulhinho me assustava achando que o fim tinha chegado. Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, finalmente a agonia que já estava a ponto de me deixar louco acabou, e usando a mesma forma de aparecer de antes, Luzia entrou no quarto cheia de pressa. Não temos mais tempo! Ele vai descobrir dentro de uma hora e se quisermos sobreviver temos que agir rápido. Hoje é noite boa porque existe falha no tempo! Temos que aproveitar! Ouça bem o que vou dizer! Pegue esta capa e vá até o pasto. Lá você vai encontrar três cavalos. O primeiro é gordo e forte e se chama Ventania. Ele é tão veloz quanto o vento, e por isso não serve pra nós. O segundo é menos gordo e se chama Relâmpago. É tão veloz quanto o relâmpago, mas você também não vai pegar ele porque ele assim como o relâmpago não tem direção certa. O terceiro é muito magro e feio e se chama pensamento. Esse sim é veloz como o pensamento, e é ele que você vai pegar. Precisamos achar uma igreja onde tenha padre a essa hora ou então estaremos acabados. Ela deu aquelas instruções entrou na capa comigo e segundos depois paramos no quarto onde ela, a loira e a negra ficavam. Ela saiu da capa e fez sinal para eu me cobrir e sem saber como fazer para ela chegar onde queria fiquei ali parado por alguns instantes e só percebi que já estava no pasto quando escutei o relincho de um cavalo. Descobri a cabeça e conforme ela havia dito lá estavam os três cavalos. Olhei o primeiro, o segundo e quando vi o terceiro tive a certeza de que aquele cavalo magrelo e sem forças não me levaria a lugar nenhum e muito menos com uma mulher na garupa. Contrariando aquilo que ela tinha dito, resolvi escolher o cavalo do meio que atendia pelo nome de Relâmpago e que apesar de não ser o melhor me pareceu mais adequado para a tarefa. Passei a mão no pescoço dele já que não tinha levado nenhuma corda e com um salto pulei em seu lombo e me cobri com a capa que me levou de volta pro quarto junto com o cavalo. Ao chegar encontrei Luzia que ficou muito chateada com a escolha que fiz, mas que nem mesmo discutiu por saber que não tínhamos tempo. Montamos naquele cavalo e nos cobrimos com a capa que nos levou para uma estrada que tive a impressão, logo confirmada, que era a mesma estrada na qual eu estava quando fui encontrado pelo urubu rei no dia em que fui ao encontro de meu destino no cumprimento de meu trato com ele. A mesma estrada que um dia passei cheio de esperança quando sai da casa de meus pais. A mesma estrada que me levou a encruzilhada onde fiz o trato com ele. A estrada carreira que agora nos levaria ate Alto Araguaia
Quando chegamos na estrada ela retirou e jogou a capa no chão. Eu perguntei por que não podíamos usar a capa para chegar ate a igreja, e ela explicou que sendo um objeto sem vida pertencente ao diabo, ele não obedeceria a essa ordem e só funcionava dentro de um determinado limite de espaço que formava os domínios do dele. Questionei então sobre o cavalo que também pertencia ao diabo e que provavelmente teria a mesma dificuldade. Ela disse que nesse caso não por se tratar de ser vivo, que na maioria dos casos obedece às ordens de quem esta perto. Muita coisa estava por acontecer e muita por ser explicada, mas naquele momento só uma coisa importava, chegar ate a cidade, achar a igreja e o padre e tentar nos livrar do diabo para sempre. Depois de colocar o cavalo em disparada é que descobri o porquê de Luzia me pedir para pegar o cavalo Pensamento e não o Relâmpago como fiz. Assim como o fenômeno que inspirou seu nome, aquele cavalo também não era bom em obedecer ordens quanto a direção, e devido a sua grande velocidade, os comandos dados para ele correr as vezes gerava um distanciamento e não uma aproximação de nosso objetivo. Por esse motivo acabamos perdendo muito tempo e só depois de umas três paradas para retomar a direção que acreditamos ser a certa, é que finalmente conseguimos chegar a cidade. Ao avistar a cidade achamos que nossos problemas tivessem acabando, porem devido a grande velocidade do cavalo, não podíamos entrar na cidade montados nele para não correr o risco de tomar a direção errada outra vez ou mesmo de ele se destruir juntamente conosco. Desta forma, descemos de seu lombo e fomos puxando ele enquanto caminhamos a passos largos para alcançar a igreja e tentar finalizar aquela agonia que apesar de ter aproximadamente quarenta ou cinqüenta minutos, parecia uma eternidade. Finalmente, depois de uma imensa correria conseguimos chegar a porta da igreja exatamente as vinte pras duas da manhã, momento em que no inferno era quase hora do diabo escolher outra mulher para seu prazer. Conforme fui saber mais tarde, as três prediletas dele nem sempre eram as escolhidas, mas elas tinham que estar presente pra ele se certificar de que estava tudo bem. Foi naquela segunda hora do dia primeiro de janeiro daquele ano, que ele totalmente enfurecido descobriu a falta da morena Luzia. E que que aconteceu nessa hora seu André? O bicho feio deve ter ficado louco de raiva né? Não sei seu Juca! Daí pra frente eu não sei mais o que aconteceu na morada do dele, mas na cidade a coisa ficou feia. Quando chegamos na igreja começamos a bater na porta para ver se alguém aparecia, mas por mais que fizemos barulho nenhuma viva alma dava as caras. Continuamos batendo e depois de muito tempo, vindo da casa nos fundos da igreja, apareceu o padre reclamando da barulheira e perguntando o que estava acontecendo. Quando ele abriu a porta e entramos para dentro, e a claridade da luz que vinha do seu lampião nos iluminou e percebi a cara de espanto do padre ao ver a marca que Luzia trazia no ombro esquerdo. Não precisamos falar mais nada para de imediato ele começar a arrumar os apetrechos que ele usava nos casamentos. Num grito firme e muito alto ele acordou o sacristão para quem deu algumas ordens que foram cumpridas imediatamente. Já com suas vestes quase toda em ordem ele virou para Luzia e perguntou quando ela tinha sido levada, e quando ela respondeu que foi antes dos sete anos, ele novamente gritou para o sacristão. Traga óleo bento também! E depressa porque a hora esta vencendo! Corre filho de Deus! A partir daquele momento o que se viu foi um fenômeno do qual eu nunca tinha ouvido falar. Começamos a ouvir ao longe, vindo de fora da cidade um grande barulho que parecia ser de uma panela gigantesca em plena fervura ou talvez de uma chuva muito pesada que chegava. Conforme aumentava o barulho, mesmo estando dentro da igreja e com as portas fechadas, podíamos perceber uma imensa claridade que dava a impressão de ser uma grande bola de fogo que se aproximava. Tanto o barulho quanto a bola de fogo aumentava cada vez mais enquanto que o padre e o sacristão trabalhavam muito rezando em latim, e fazendo uso de óleo, sal, água, crucifixo e tudo que tinha direito. Conforme crescia o barulho e a luz, também crescia nosso desespero e mais fortemente o padre fazia suas orações. Aquele processo todo foi ficando descontrolado e nosso medo cresceu tanto que eu já não tinha mais esperança de conseguir meu feito a ponto de imaginar que dentro de pouco tempo eu e minha Luzia ia estar de volta naquele lugar horrível. O desespero era tanto que eu já não prestava atenção naquilo que o padre falava e finalmente quando tudo parecia perdido e eu já não contava mais com a possibilidade de conseguir escapar daquela loucura, escutei o padre dizendo o famoso eu vos declaro marido e mulher perante Deus. Essa frase terminou acompanhada de uma grande explosão e de um grito horrível que era a chegada do diabo diante da igreja. Ele bateu muito forte na porta que se abriu permitindo que ele nos visse abraçados sem nada poder fazer já que estávamos casados e abençoados por Deus. Dessa forma como não pertencíamos mais a ele não vimos sua cara horrorosa e sua presença foi marcada apenas pela bola de fogo que ficou suspensa no ar diante da igreja numa movimentação grande que dava a entender que ele tentaria invadir. De dentro da bola de fogo ainda ouvimos os brados dele que não perdeu a oportunidade de fazer sua ultima maldade nos rogando uma praga da qual não seria fácil nos livrar por muitos e muitos anos. Ouça isso André. Você sabe quando o pai é mais novo que o filho? Não? Você não sabe? Procure saber porque enquanto não me der essa resposta André, não terá prazer com essa mulher! Eu tenho muitas outras, centenas delas e essa não me fará falta, mas você só tem ela! Vocês não vão existir um para o outro! Vão sofrer solidão vivendo lado a lado! Vão ver suas vidas secar enquanto olha a água jorrando! Lembre-se disso André! Ele falou aquilo e novamente começamos a escutar aquele barulho estranho de panela fervendo e rapidamente ele foi se afastando gritando e esbravejando com o que imaginei ser suas criaturas que tinham vindo juntos. Quer dizer então que daquela hora em diante ficou tudo certo pra vocês dois? Nada disso seu Juca! Depois daquela hora quando tudo acalmou, o padre foi se sentando exausto em um dos degraus do altar pra descansar um pouco. O sacristão estava encostado numa parede perto da sacristia com os olhos estatelados e acho ate que com as calças toda molhada. Eu e Luzia ficamos ali um pouco meio sem saber o que fazer e sem ter noção real do que tinha acontecido. Só depois de muito tempo é que tivemos a iniciativa de tentar tomar um rumo na vida. Naquela noite porem o padre achou melhor que ficássemos dentro da igreja até o dia amanhecer para garantir que nada de mal acontecesse e assim fizemos. Mais, como que ficou a história do pacto? O senhor não vendeu a alma pra ele? E como conseguiu se livrar apenas casando com a dona Luzia? O que me livrou dele na verdade seu Juca, não foi o casamento mais sim o fato de eu ter ajudado a Luzia a recuperar a alma dela. Quando eu fiz isso levando ela pra dentro de uma igreja onde antes de se casar ela foi batizada, mesmo sendo por interesse próprio, eu ganhei nova chance com Deus e só por isso que pude entrar novamente em uma igreja. Do contrario, como eu tinha vendido a alma pro diabo, mesmo que eu vencesse a aposta que fiz com ele eu jamais seria aceito na comunidade cristã novamente e jamais poderia casar com a mulher que amo e que me fez esquecer a Josefine em apenas dois dias de convivência. E o povo da cidade? O que aconteceu com todo mundo? Ninguém acordou com tanto barulho quenem o senhor falou? Essa era minha preocupação depois que tudo acalmou naquela noite e isso mais o fato de estarmos dentro de uma igreja foi os motivo que fez com que nos nem comemorasse o acontecido. Eu imaginava que la fora deveria estar todos muito desesperados com toda aquela movimentação, mas por recomendação do padre continuamos o resto da noite na igreja. Nos encostamos em um canto e dormimos sentados ao lado do padre e do sacristão, e só na manha seguinte é que sai pra ver o que tinha acontecido na cidade. Houve muito desespero? Como que as pessoas reagiram? Eu sou morador da cidade e nunca ouvi falar dessa historia! Essa é a parte estranha da história seu Juca! Na manha seguinte quando o dia clareou e saímos de dentro da igreja depois de agradecer ao padre e ao sacristão, começamos a andar na rua acreditando que teria muitas pessoas preocupadas e comentando sobre o assunto, mas ao contrario disso, todos levavam suas vidas normalmente como se não soubessem de nada. Depois de sair dali, fui até a pensão Boa Viagem e me instalei la para passar aqueles primeiros dias, e logo que chegamos entrei no quarto, fiz minha barba que estava grande e fui me apresentar, agora novamente como André, para a minha amiga dona Chica. Foi uma grande alegria da parte de nos dois e depois de muito conversar com ela e apresentar minha esposa, perguntei sobre aquela movimentação e ela me respondeu apenas dizendo assim. Fio, mais o que é isso? Num tem cidade mais carma do que essa! Num teve baruieira essa noite nada! Será que eles não viram nada mesmo? Como que isso pode acontecer?
Isso foi o que o padre me explicou alguns meses depois quando voltei à igreja para novamente agradecer, batizar meus filhos e fazer uma boa doação para as obras da igreja. Ele disse que nesses casos, as pessoas que não estão diretamente ligadas ao contrato feito com o diabo não percebem sua presença. Isso acontece porque ele prefere não ser visto na forma horrível para não estragar as chances que ele tem de ficar perto das pessoas tentando conquistar suas almas. E quanto a essa praga que ele rogou em vocês, o senhor acreditô nela mesmo? Como que eu não acreditaria seu Juca? Ora, o senhor é um homem feliz, tem fazendas e mais fazendas, tem uma mulher bonita, com todo respeito, tem filhos bonitos, portanto a praga dele não deu certo! Como que vocês não têm prazer se até filhos vocês tem? Como que vocês não existe um pro outro se agente vê vocês junto o tempo todo? Eu venho sofrendo por causa da praga desde aquele dia, sem contar os ataques que eu recebo todas as noites. O senhor sabe o que é não ter uma noite de sono tranqüilo? Acordar todos os dias de manhã assustado sem saber se era mesmo um pesadelo ou se é a realidade tudo a sua volta. Às vezes tenho duvidas depois dos pesadelos posso confiar em meus próprios filhos. Alguns dias eu chego a pensar que meus filhos são na verdade filhos dele que estão aqui se preparando para me pegar. A praga que ele estava falando seu Juca, quando ele disse, “vocês não existiram um para o outro”, ou “ você não terá prazer com essa mulher”, era o fato de que todas as vezes que nos dois tentamos nos amar, ficamos invisíveis um para o outro. Eu não vejo ela! Ela não me vê e assim não podemos tocar um no outro. Basta um sentir desejo pelo outro, e desaparecemos durante o tempo em que o desejo existir ou enquanto continuar a idéia de fazer amor. É... Deve ser uma situação muito triste!... Mais espere um pouco! Como é que vocês tiveram os filhos, se vocês some quando sente vontade? Uma única vez, não sei por que nem como, mais nesta única vez a praga não valeu! Foi apenas naquela noite e nunca mais conseguimos... E sabemos que isso vai permanecer ate eu descobrir a resposta da charada “Quando que o pai é mais novo que o filho”. André falou aquilo cabisbaixo numa clara demonstração de que estava cansado daquela situação. Já fazia muitos anos desde o feito de sua fuga do inferno e desde então ele tinha vivido uma vida de privações, de angustia e de tormento. O dia estava terminando e os dois homens estavam cansados. Cada qual tomou seu rumo buscando se preparar para tomar seu banho e esperar a hora do jantar. Mais tarde quando já tinham jantado e estavam sentados na varanda da casa, André e Juca combinaram de sentarem no outro dia logo cedo para terminarem o acerto financeiro entre eles, ultimo compromisso de Juca naquela fazenda antes de voltar para a cidade. Assim foi feito e logo que o dia clareou as atividades normais de uma fazenda começou. Como de costume João Cavaco e sue filho levantaram cedo, fecharam as vacas de leite, levaram os sedéns para o curral e começaram tirar o leite. Alguns minutos depois, como também era de costume de dentro da casa principal saíram André e sua Filha Joana para juntos tomarem o leite tirado na hora dentro dos canecos como faziam todas as manhãs. Ao chegar no curral André encontrou alem dos dois funcionários, o Juca que estava ajudando naquela tarefa não só por obrigação mais porque ela lhe dava prazer. Ali permaneceram enquanto o serviço era finalizado e logo depois enquanto João cavaco levava o leite para a cozinha e as vasilhas para a bica d água, Juca e André se encaminharam para a sala da casa onde dentro de pouco tempo fizeram o acerto final da montagem do retiro Trovão. O acerto não teve nenhum problema e logo que foi concluído, André entrou em seu quarto e logo depois voltou com um pacote de dinheiro contendo alguns mil réis com o qual fez o pagamento do saldo que Juca tinha a receber. Notando que André estava com ar de preocupado Juca perguntou se estava tudo bem e André respondeu que nem tudo. É os pesadelos de sempre? É seu Juca! Essa noite tive pesadelos novamente! Ontem quando o senhor contava da fuga o senhor disse que a dona Luzia naquela noite falou de uma tal de falha no tempo! O que que é isso? Segundo ela, todo ano na meia noite do dia trinta e um de dezembro existe uma certa confusão no tempo que dura mais ou menos seis horas e que representa a diferença de horário nos quatro cantos do mundo. Esse período segundo ela era a melhor hora pra fuga porque o diabo está sempre nas encruzilhadas firmando pacto com alguém, e neste caso o inferno fica por conta dos ajudantes dele que nem sempre tem os cuidados necessários. Ele firma seus pactos qualquer dia do ano sempre a meia noite, mas no dia trinta e um de dezembro isso é mais forte e ele reserva pras pessoas que querem valores mais altos. Assim durante esse período ele fica numa correria pra conseguir firmar o maior numero de pactos. Uma outra pergunta seu André. Não me leve a mal mais quantos anos a Dona Luzia tem? Ela não sabe seu Juca! Ela só sabe que foi levada pra lá quando era uma criança com cinco ou seis anos, e depois disso e devido ao sofrimento pelo qual ela passou durante tantos anos, ela acabou perdendo as contas e não dando importância a isso. Aquela conversa foi resumida e Juca saiu em direção ao galpão para terminar de arrumar sua tralha e seguir para Alto Araguaia ao lado de um peão que havia ficado para ajudá-lo na tarefa de transportar suas ferramentas de trabalho. André ordenou que o almoço fosse feito mais cedo para que os dois homens pudessem comer antes de pegar a estrada e entrou para seu quarto sentindo uma sensação diferente. Ele não sabia se a tal sensação era pelo seu medo diário ou se era uma ponta de tristeza pelo afastamento daquele simples empreiteiro mais que agora ele considerava como amigo devido aos acontecimentos dos últimos meses. Somando a esta sensação estava o alivio por ter dividido aquela história que tanto lhe incomodava com alguém. Aproximadamente às dez horas da manhã, o almoço já estava quase pronto, e Juca e seu peão estavam com os cargueiros amarrados diante da casa de André aguardando apenas para almoçarem e sair em viagem. Enquanto aguardava, sentados em bancos de madeira colocados na varanda da casa, Juca ainda fez uma ultima pergunta a André sobre o assunto que tinha dominado aquele período de construção do retiro Trovão. Eu tava lembrando da sua história seu André, e fiquei sem saber o que aconteceu com sua família. Seus pais, irmãos a Aninha? Estão todos muito bem seu Juca! Depois que consegui escapar eu fui ao encontro deles por varias vezes. Só que devido as perseguições diárias que sofro, prefiro ficar longe para que eles não sejam atingido pelos meus problemas. Muitas vezes as perseguições que ele faz comigo acaba por atingir de certa forma aqueles que são próximos de mim e que tiveram vantagem com minha fortuna. A coisa mais ruim dessa história é que eles sempre quiseram me visitar, mas eu arrumo sempre uma desculpa e vai ficando pra outra hora. Nem todos eles vivem sem problemas! Um irmão tem dificuldades com a bebida, outro sumiu no mundo e não sabemos pra onde foi, um terceiro eu fiquei sabendo que está com problema com a família da namorada e que já andaram se pegando. Mais tudo isso é uma história que eu conto em outra hora, quando nos encontrarmos novamente. O pior de tudo seu Juca, é que meu pai sofreu um derrame e hoje vive em cima de uma cama. Eu queria tanto trazer ele pra perto de mim e poder cuidar dele, mas enquanto esses problemas existir eu acho que eu não teria a tranqüilidade necessária para isso. As vezes quando olho pra ele nos poucos encontros que tivemos depois do derrame, fico achando pela expressão dele, que ele está tentando me dizer algo muito importante mas não consegue pela falta da fala. Quanto a mim o senhor mesmo pode constatar que levo uma vida cheia de limites. Eu não posso sair desta fazenda porque tenho medo de tudo. Meus filhos são loucos para conhecer a cidade, mas eu tenho medo e fico adiando a oportunidade de levar. Ao dormir tenho que contar com o trabalho do João Cavaco que está sempre rezando e mesmo assim, todas as noites tenho pesadelos horríveis. Quando vou comer carne ou beber leite tenho que ter cuidado porque ele vive tentando me matar usando esse lado. Como assim? O que que ele pode fazer? Ele pode me atingir facilmente através dos seres vivos e de seus derivados. Pelas vias normais dele, ele não pode possuir a mim e nem a minha família por eu ter conseguido escapar dele, mas pela comida sim. A única forma que eu tenho de comer carne ou beber leite é só se for de animal que foi doado para a igreja por outro pecuarista e depois leiloado. É por isso que eu e meus filhos só bebemos leite da Mocinha. Por isso é que sou conhecido hoje como o fazendeiro que mais arremata gado nos leilões da igreja. Das muitas rezes que já arrematei em leilão, a Mocinha foi uma das ultimas, e da qual nós mais gostamos do leite. Naquele momento eles foram interrompidos pela presença de Luzia que veio avisar que o almoço estava pronto. Juca então a observou e confirmou a sorte que André tinha por ter Luzia. Ela realmente era uma morena muito mais bonita do que ele podia lembrar pelas poucas vezes que a tinha visto. Aproximadamente uma hora depois, todos já tinham almoçado e na varanda da casa estavam André, Luzia e os dois filhos enquanto João Cavaco e sua esposa estavam em pé do lado de fora à direita da casa. Juca e seu companheiro estavam montados em seus cavalos enquanto Tonho Cavaco andava em meio aos cargueiros brincando. Juca colocou a mão no chapéu fazendo um gesto de despedida e virou seu cavalo para ir embora. Depois de andar alguns metros deixou seu peão seguir. Ele parou e virou-se para André perguntando. Seu André eu não sei não mais... O senhor já fez as contas de quando seus filhos foram concebidos? Depois de dizer aquilo, ele virou seu cavalo numa marcha picada para alcançar seu peão que já estava adiante puxando os cargueiros na estrada rumo a Alto Araguaia. André ficou olhando para a tropa que se distanciava cada vez mais, até que num repente ele olhou para Luzia com expressão de surpresa e felicidade, estalou os dedos e exclamou. É isso!... FIM

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