A Luta de um caboclo

Era dia treze de janeiro de um mil novecentos e noventa e três e apesar de ser uma quarta feira, e em uma fazenda isso significar ser um dia de muito trabalho, eu me levantei bastante tarde, pois havia trabalhado até altas horas da noite anterior para terminar a preparação de umas terras para o plantio. Não me lembro se estava gradeando ou nivelando as tais terras. Era um dia de sol e fazia um tempo gostoso, pois, estávamos em pleno veranico, período no qual segundo os antigos, são determinados quais meses do ano terá chuva ou sol. Neste dia ou em outro qualquer não me preocupava muito com a idéia cultivada por alguns a minha volta de que levantar tarde, não é algo recomendável a um homem de honra e caráter. Sendo assim, sem nenhuma preocupação e me sentido extremamente cansado pêlos solavancos que um trator proporciona, levantei-me e fiz minha higiene pessoal, fui ao mato, lá não tínhamos banheiro dentro de casa. Tomei meu café e é claro fiz um belo cigarro de palha que na época era o que eu podia pagar. Naturalmente aquele dia não seria dedicado ao trabalho pesado apenas a trabalhos leves do tipo pegar o pneu furado de uma carroça, carregar alguns quilômetros até a beira do asfalto e num ônibus leva-lo até a cidade para consertar. (Levíssimo não? Tipo assim, um ser humano normal ao saber que tem que fazer isso, certamente senta e chora). Como essa era a minha tarefa naquela manhã, acompanhado de duas de minhas filhas fui até o local onde a coroça estava à beira da estrada quase dentro do mato. Com a força de meus braços ergui a carroça escorando-a com um pedaço de pau, retirei o pneu e quando já
estava pronto para ir embora vi minha esposa que estava vindo em minha direção. Ao avistá-la vindo do outro lado da aguada (Pequena mina d’água que inicia um riacho, que se transforma em ribeirão, em córrego... etc.) não sei se foi a maneira um tanto rápida como ela caminhava ou se foi meu sexto sentido que me mostrou que algo estava errado. Meu alarme interno despertou, me contando que havia algo de ruim acontecendo. Isto acontece em todos os momentos de minha vida e, seja para coisas boas ou ruins, não importa ele sempre aparece, é uma pena que nunca aprendi a interpretá-los, pois se tivesse aprendido talvez pudesse ter evitado algumas coisas... ou não. De qualquer maneira recebi o aviso e apesar dela estar muito próximo ainda tive tempo de me preparar internamente para que a notícia mesmo que muito ruim não fosse o bastante para me desmontar. Isto sempre foi meu maior medo. Ela atravessou rapidamente a pequena grota por onde descia a água que alimentava a represa e subiu do outro lado vindo ao meu encontro. Naquele momento houve um silêncio tão grande que parecia que eu podia ouvir o barulho da água que minava a algumas dezenas de metros acima ou ouvir qualquer galho ou folha caindo distante dali. Apesar da curta distancia entre nós aquele momento durou muito mais do que normalmente duraria. Notei em seu olhar que ela estava apreensiva, a ansiedade tomou conta de mim e naquele momento mil coisas passaram em minha cabeça, mas eu não conseguia fixar-me em nenhuma, pois a única coisa que prendia minha atenção era exatamente sua expressão que misturava preocupação e uma certa tristeza. Nesse momento tive a sensação de que nada mais existia a nossa volta, que tudo havia desaparecido restando assim, só eu, ela e o suspence que se instalou ali. Ela aproximou-se de mim com certa cautela e disse:
• O Vantuil está na casa do papai, ele veio dizer que o Valdir ligou para avisar que seu pai está passando mal.
• O que aconteceu com ele? Perguntei!
• Não sei, mas o Vantuil está te esperando para te levar para o Pedro Néca para você pegar um ônibus e ir para Cuiabá. (Pedro Neca, trata-se de um desbravador de uma região localizada às margens da BR 174 no município de Porto Esperidião - MT e que fica a vinte e três quilômetros do Córrego Fundo onde eu morava. Pai do amigo Vantuil e mais quatro filhos e uma filha. Sua primeira morada na região hoje é uma vila em pleno crescimento. Homem corajoso e lutador ao morrer deixou para os filhos um bom começo na área de comércio varejista de combustíveis e secos e molhados).
Após essa breve conversa com minha esposa pegamos nossas filhas e saímos andando em silêncio até meu barraco feito com esteios de aroeira, vigas e caibros tirados de uma grande arvore de guatambu, paredes feitas de tábuas de abobrão e coberto com folhas de bacuri. Enquanto caminhava muitos pensamentos passaram em minha cabeça e todos eles parece que vieram de propósito para tentar me convencer de que talvez se tratasse apenas de um problema simples, mas as circunstancias mostravam o contrario. Pela maneira como eu e meus irmãos fomos criados, preservando a individualidade de cada um e a maneira como eu conhecia meu pai não deixava que aqueles pensamentos me convencessem. Dentro de mim eu sabia que o pior estava acontecendo pois, em primeiro lugar meu irmão Valdir jamais iria incomodar uma pessoa pedindo que ela se deslocasse vinte e sete quilômetros dos quais quatro de estrada de terra, se ele não tivesse certeza de que se tratava de um problema realmente sério, em segundo lugar, meu pai apesar dos quase setenta anos de idade, sempre teve uma saúde de ferro e não seria uma doença simples que o derrubaria. Isto foi exatamente o que eu disse a minha esposa quando ela tentou me acalmar enquanto eu me enxugava sentado em nossa cama após ter tomado um banho e já me preparando para ir de encontro a constatação que meu coração recusava acreditar mas que minha cabeça não tinha nenhuma dúvida.
Descemos em direção a casa principal da fazenda através de um caminho que nesta época havia se estreitado pelo excesso de mato que no inverno tem maior facilidade para crescer. O mato havia transformado aquele caminho em algo parecido com um túnel e isso parecia contribuir para que meus pensamentos se fixassem no que estava acontecendo, e que eu acreditava ser em Alto Araguaia, pois ate aquele momento não tinha maiores informações sobre o fato. Caminhei calado o que ao invés de me ajudar parece que só conseguia fazer com que aquele caminho que não tinha mais que quinhentos metros ficasse tão longo que parecia não acabar nunca. Depois de algum tempo chegamos a seu final e isso me trouxe a ilusão de que o amigo Vantuil traria algum alívio através de informações mais detalhadas. Engano meu pois sem saber qual seria minha reação diante do fato ou talvez por realmente não ter conhecimento destes, ele apenas me disse que não sabia de nada alem do que já havia dito e isto de certa forma me confortou trazendo a sensação de que nem tudo estava perdido. Por mais alguns minutos ficamos sentados ali na cozinha enquanto o Vantuil e meu Sogro terminavam uma conversa que com toda a sinceridade eu não tenho a menor idéia do que se tratava. É provável que falavam de política já que o Vantuil sempre foi uma pessoa bastante ligado a vida política do município e meu sogro apesar de pessoa simples gosta de estar sempre por dentro do tema. Terminada a conversa me despedi de todos e a cada pessoa com quem eu falava percebia no olhar um sinal de uma mistura de tristeza e pena que soava quase que como um pedido de desculpas pelo ocorrido. Isso me levou a pensar ainda mais em tudo o que estava acontecendo e, mesmo com a cabeça cheia com toda aquela situação não pude deixar de pensar em como faria para chegar a Cuiabá já que naquela hora não havia linha de ônibus regular no trajeto Pontes e Lacerda/Cuiabá. Neste caso pensei: ou eu iria de carona o que não seria nenhuma novidade em minha vida ou teria que aguardar a hora certa do ônibus o que me atrasaria demasiadamente. Enquanto viajávamos da fazenda até o Pedro Néca trocamos umas poucas idéias e quando já estávamos perto da Vila Pedro Néca ultrapassamos um ônibus que pertencia a uma outra linha dentro do mesmo trajeto. Devido ao conhecimento e a amizade do Vantuil consegui a autorização de embarque para Cuiabá . O ônibus parou na rodovia em frente ao posto Pedro Néca e sem tempo para mais nada agradeci ao Vantuil e embarquei para espanto de alguns passageiros que sabiam que aquela não era uma parada regular. Isso com certeza deve ter trazido alguma apreensão a eles pois naquela região àquela época ouvia-se falar muito sobre roubo de carretas e de outros tipos de perigos a mais. O ônibus começou a andar e após verificarem que se tratava apenas de um perdido procurando caminho os passageiros voltaram a sua rotina e eu tratei de conseguir um lugar para me sentar. Por sorte encontrei duas poltronas juntas e vazias o que me permitiu ficar só. Sentei-me na poltrona após colocar minha mochila no bagageiro superior e sem ter com quem conversar, o que aliás para mim não faria a menor diferença pois não teria cabeça para isso, bastou olhar pela janela do ônibus para que em minha cabeça se abrisse a janela do passado e, meus pensamentos fossem levados para os momentos em que meu pai me contava fatos de sua vida. Esses fatos sempre me atraiam bastante e tudo que ele me contava sempre ficou guardado em minha mente, mas naquele momento em função de eu parecer adivinhar o que estava acontecendo o que mais me chamava a atenção era saber como tudo aquilo tinha começado e me lembrei que certa vez meu pai tinha me contado sobre isso.
Contou-me sobre o lugar onde nasceu. Ele dizia que se chamava “buracão” e que se tratava de um lugar isolado, porem plano e formado com capim jaragua, natural naquela região. Devido ao fato de ser necessário descer a Serra da Urtiga no município de Mineiros -GO, é que o local recebeu esta denominação. O Buracão era um daqueles lugares que ficava afastado de tudo e que havia sido esquecido por todos. Por tudo isso é que meu pai referia-se a ele como um sertão bruto. Foi neste cenário que em Janeiro de vinte e três nascia o quarto dos doze filhos que tiveram o Sr. Leopoldino Rodrigues da Silva e Dª. Rita Rosa Batista . O casal nascidos, ele em Minas Gerais e ela em Goiás foram criados na mais absoluta ignorância . Para eles o único tipo de vida que conheceram era a vida do trabalho duro, onde o correto era levantar bem cedo, ir para o mato balançar um machado ou para a roça puxar uma enxada do amanhecer ao entardecer. Isto era o mínimo que um cidadão que pretendia se candidatar a homem podia fazer. Tendo sido criados assim é compreensível que o Sr. Leopoldino não julgasse ser importante os estudos e dessa forma ele alem de não incentivar os filhos a estudar ainda tornava isso proibido para as filhas, com a justificativa baseada na seguinte frase: Pra que mulher aprender a ler? Só pra arrumar rolo e escrever carta pra namorado? Quanto aos filhos homens ele considerava perda de tempo os estudos mas neste caso era um pouco mais maleável e influenciado pela esposa que levava ate ele a súplica dos filhos acabava Por aceitar e até mesmo a ensinar o pouco que ele sabia, mas isso sempre depois do trabalho pois pra ele não se podia perde nem mesmo um minuto de trabalho com os estudos. Assim quando meu avô comprava alguns cadernos para os filhos e ele ou outra pessoa que soubesse escrever passava alguma lição para meu pai e seus irmãos no outro dia e nos dias que se seguiam, correndo o risco de serem descobertos, eles ficavam como bandidos, escondendo-se aqui e ali para fazerem as lições e quando os cadernos acabavam, com pedaços de pau eles escreviam no chão ou em folhas de bananeiras as lições aprendidas . Essas lições podiam não ser grandes mas eles jamais esqueciam porque sabiam que outra oportunidade talvez demorasse meses ou ate mesmo anos para chegar. Assim meu pai e seus irmãos foram acumulando o que para eles era uma grande riqueza e com o passar dos anos acabaram por aprenderem a ler e escrever e mesmo sem jamais ter tido a alegria de se sentar em um banco de escola meu pai lia, escrevia e fazia contas as vezes sem nem mesmo precisar de lápis e papel. Cada vez que meu pai me contou esta história eu pude perceber em seu rosto uma certa tristeza por seu pai não ter se esforçado para lhe dar a chance de estudar mas pude ver também que ele jamais teve a intenção de condena-lo já que ele sempre terminava esta história dizendo: “coitado ele foi criado nesse sistema”, numa clara declaração de que jamais guardou rancor. Enquanto eu pensava sobre isso, e depois de alguns minutos de viagem, meu ônibus já havia andado trinta e seis quilômetros e estávamos chegando a Porto Espiridião e por alguns instantes meu pensamento fugiu da história de meu pai mas, não por muito tempo já que a cidade era pequena e este ônibus não fazia parada nela. Desta forma um minuto após já tínhamos passado pela cidade e então meus pensamentos voltaram para as lembranças de meu pai e sua vida. Por alguns instantes fiquei pensando como seria viver naquele sistema onde alem de tudo ser absolutamente difícil ainda havia a ignorância daqueles que mandavam. Conclui que seria praticamente impossível suportar e foi inevitável a pergunta a mim mesmo. Como então meu pai conseguiu? Pelo que ele contava, não tinha opção mas, eu sabia que ele jamais concordou com aquela vida pois me lembro de vê-lo dizer que a partir de certa idade a maior ocupação de sua cabeça era tentar descobrir uma maneira de conseguir sair da casa de seus pais e ganhar a liberdade que ele tanto sonhava. Isso passou a ser objetivo de vida e foi assim que ele viveu a sua adolescência. Este objetivo tornou-se ainda mais forte quando chegou a sua juventude.
Foi nessa época que seu pai movido pela necessidade de ter um certo crescimento financeiro resolveu adquirir umas terras um pouco maiores para poderem trabalhar. Sendo assim após poucas vindas a Mato Grosso eles já estavam prontos para se mudar da região do buracão onde viviam para uma outra região no município de Itiquira - MT, mais precisamente na cabeceira do rio Jurigue. Para fazerem a mudança foram utilizados três carros de bois e alguns cavalos. Era o ano de trinta e seis e o casal Leopoldino e Rita já tinham nove filhos. Nesta época meu pai já estava com treze anos de idade e pelo fato de ser um dos filhos homens mais velhos ele foi encarregado pelo meu avô de fazer esta viagem a pé para tocar os porcos. Parece brincadeira mas não é. Ele tinha que viajar tocando os porcos da mesma maneira que se toca gado, fazendo com que eles andem vários quilômetros por dia. Para quem nunca teve a oportunidade de fazer tal trabalho talvez não imagina o grau de dificuldade, mas para quem já passou por isso sabe que porco não é muito a favor de longas caminhadas. Sabendo que a dificuldade em realizar este trabalho era imensa, para que meu pai, o Juca Lipurdino, ganhasse tempo, meu avo o chamava às quatro horas da manha. Ele se levantava, lavava o rosto, tomava uma caneca de café e sem muita demora iniciava sua jornada enquanto minha avó iniciava a preparação do almoço. Depois do almoço pronto, e os carros de bois carregados com a traia de cozinha, a comitiva se colocava a caminho e aproximadamente depois de duas horas de caminhada, ao passarem por meu pai lhe entregavam seu caldeirão de comida que servia como almoço, merenda e às vezes janta. A comitiva ia embora e quando estava anoitecendo escolhiam um novo ponto de pouso onde iam fazer a janta e esperarem que lá pelas nove ou dez horas da noite meu pai chegasse com a porcada para dormir e no outro dia repetir tudo de novo.
Essa labuta lhe rendeu muita correria no mato atrás de porco desembestado, exigiu muita paciência com porco que afrouxava e lhe trouxe muita solidão. O caminho que eles utilizaram podia ser feito totalmente nu sem a menor preocupação de cometer atentado ao pudor. Ali não passava uma viva alma o dia todo. E depois de trinta longos dias nessa verdadeira batalha, finalmente eles chegaram ao local onde meu avo havia adquirido as terras. Apesar do cansaço que todos estavam sentindo, eles tinham uma fazenda para montar e uma roça que meu avô e meu pai haviam feito alguns meses antes e que precisava ser tocada. Por isso não tinham tempo a perder e a rotina do trabalho de sol-a-sol voltou novamente.
Alguns anos se passaram e a tarefa inicial de montagem da fazenda ia sendo realizada por etapas. A falta de estudos não era impedimento para o aprendizado. O pouco conhecimento que tinha de matemática e português aliados a sua sede de conhecimento, foi o bastante para que ele aprendesse o oficio da carpintaria e com poucos anos ele já sabia fazer quase tudo na profissão. Na carpintaria, você precisa aprender e se treinar nos trabalhos básicos como: cortar com o serrote aparando madeira; usar a enxó para realizar alguma lavragem e algum acabamento; aparar com um gurpião a madeira que ainda está em toras, você também precisa saber usar um esquadro ou um compasso para riscar e marcar antecipadamente onde cortar a madeira; ou utilizar uma plaina para dar acabamento ou para desbaste da madeira. Alem de tudo isso, você precisa principalmente, avazar e afiar estas ferramentas para que elas façam sempre um corte macio e linear. De posse destes conhecimentos, o desenvolvimento profissional depende muito mais da esperteza do que de ensinamentos de terceiros. Para meu pai aprender nunca foi problema já que tudo que ele queria da vida era exatamente ter esta chance.
De volta à minha realidade, mais alguns quilômetros haviam se passado e agora estávamos chegando ao Cacho, um restaurante que fica no entroncamento para Mirassol D oeste na BR – 174 que liga Cuiabá – MT a Porto Velho – RO. Ali eu já me sentia um pouco cansado e resolvi descer para descansar um pouco. Fiquei ali fora do ônibus por algum tempo mas sem vontade de conversar com as pessoas, achei que cinco minutos de espera já estavam demasiadamente demorados e resolvi entrar e aguardar lá dentro. Ao entrar novamente no ônibus e caminhar pelo corredor foi que percebi algo que me deixou bastante surpreso e assustado. Em uma poltrona duas ou três filas atrás de onde eu estava notei uma senhora aparentando trinta anos de idade sentada em uma poltrona com uma criança deitada na poltrona do lado. Tudo seria perfeitamente normal não fosse o esforço da criança na tentativa de chorar. Achei o som um tanto estranho para um choro de criança e sem coragem de me aproximar, sentei no braço de minha poltrona e fiquei imaginando o que poderia estar acontecendo. Alguns minutos se passaram e sem que eu esperasse tornei a ouvir o som que desta vez foi mais alto. Dava-me a impressão de que ali tinha uma criança que estava sufocada por alguma coisa e que por isso não conseguia emitir o som característico do choro. Pensando que talvez a mãe da criança tivesse se descuidando da mesma disfarcei a minha curiosidade e fingi necessidade de ir ao banheiro apenas para passar perto e verificar o que estava havendo. Ao chegar perto da senhora que me cumprimentou com um aceno de cabeça quase não consegui responder tamanha foi minha surpresa. Olã a todos!
Ao olhar para a poltrona ao lado vi uma criança de aproximadamente um ano de idade porem com uma cabeça maior que a de um adulto. O garotinho sofria de Hidroensefalite congênita, uma doença que leva ao crescimento exagerado da caixa craniana. Algo desse tipo. Minha surpresa foi imensa e na tentativa de disfarçar minha reação me dirigi à mãe um pouco envergonhado e indaguei sobre o que era aquilo. A mãe que parecia uma pessoa simples e acredito que fragilizada pelo problema me respondeu com muita humildade dizendo o nome daquela terrível doença. Continuei no que havia me proposto a fazer e mesmo sem muita vontade fui ao banheiro. Por alguns momentos quase esqueci que estava ali levado pela possibilidade de que poderia estar acontecendo algo de terrível dentro de minha família. A visão daquela criança tão pequenina e com aquele peso imenso para carregar era algo tão terrível e impressionante que daquele momento em diante tudo que eu queria era poder fazer algo por ela. Mesmo sem muita coragem para encarar aquela situação, ao voltar do banheiro não consegui ir para minha poltrona e sentei-me numa poltrona no outro lado do corredor. Pouco a pouco fui me acostumando com aquela visão tão nova para mim e pude observar melhor aquela criança. Ela tinha a cabeça do tamanho de uma melancia de porte grande, os olhos eram saltados com sessenta por cento do globolo exposto e, o que mais me impressionou foram as tentativas inúteis da criança em se virar na poltrona. Cada vez que ele tentava eu via apenas seu corpinho se virando sem que a cabeça acompanhasse e aquilo me causava uma aflição muito grande. O ônibus começou a andar novamente e meio sem graça comecei a conversar com aquela senhora. Assim fiquei sabendo que ela estava indo para Londrina no estado do Paraná para tentar fazer uma operação cujo objetivo não era reduzir mas, apenas impedir o crescimento da caixa craniana daquela criança. Perguntei a ela sobre seu marido e ela disse que ele havia ficado em sua cidade no estado de Rondônia e que não a acompanhava porque não tinham dinheiro suficiente. Contou-me que para fazer aquela viagem eles haviam contado com a colaboração das pessoas que fizeram uma campanha publica para esse fim. Depois de algum tempo de conversa e já um pouco mais a vontade ela me contou que, segundo o que os médicos haviam dito a ela e ao marido, a doença age da seguinte forma: O liquido que passa pelo celebro para irriga-lo fica armazenado por algum tempo e depois é liberado por uma válvula e absorvido pelo organismo. No caso daquela criança essa dita válvula não funciona e esse líquido acaba por acumular no celebro provocando o crescimento da caixa craniana. Me lembro bem que daquele momento em diante meu coração continuava muito triste e meus pensamentos divididos entre a preocupação com meu pai e com a criança que me provocou aquela visão que, certamente leva a maioria das pessoas a desejarem, assim como eu , jamais te-la tido. Mesmo
com os meus pensamentos vacilantes, me veio a lembrança de como meu pai se lamentava ao contar sobre o desencontro que foi a história de seu alistamento. O ano era mil novecentos e trinta e nove e no ano seguinte ele iria se alistar.
Ele viu neste fato uma grande chance de ter seu sonho realizado já que sendo aceito pelo Exercito ele finalmente sairia da casa de seus pais e tomaria o rumo que quisesse a partir dai. Tudo estava indo muito bem e ele aguardaria mais e no ano de quarenta ele se alistaria. Uma informação de alguém que passava pela região do Jurigue porem, mudou tudo. Esta pessoa dizia ter ouvido falar que o Exercito estava prevendo a falta de contingente no ano de trinta e nove e que por isso todos os alistados neste ano seriam aceitos. Ouvindo aquela informação ele não teve dúvidas e providenciou com urgência a antecipação de seu alistamento. Para isso naturalmente ele teve que mentir sobre sua real idade e aproveitando-se do fato de que até esta época ele ainda não era registrado, ao faze-lo aumentou em um ano seu nacimento. Ele nasceu em vinte e três mas registro-se como se tivesse nascido em vinte e dois, conseguindo assim seu tão sonhado alistamento. Feito isto restava a ele apenas esperar pela chamada do Exercito Brasileiro. O tempo passou e ele continuava em sua dura rotina de trabalho nas roças de seu pai e também em trabalhos de carpinteiro que agora ele já realizava com grande destreza . Depois de muita espera finalmente chegou a hora dele saber o resultado, e ansioso ele partiu para a cidade de Alto Araguaia na divisa dos estados de Goiás e Mato grosso as margens da BR 364, onde ele havia se alistado. Baseando-se na informação que havia recebido ele contava como certa a entrada para o Exercito. Para sua mais absoluta surpresa, devido ao excesso de contingente daquele ano, a grande maioria dos alistados que eram nascidos no ano de vinte e dois foram dispensados do serviço obrigatório. Tristemente ele descobriu que fazia parte desta maioria. A dispensa do Exercito tirou de meu pai alem da oportunidade de sair do domínio de meu avô, a chance de fazer carreira militar. Não querendo me desfazer da carreira militar nos dias de hoje, mas com o objetivo de valorizá-la, esta era uma das carreiras mais importantes da época. Ela só perdia para a carreira de Professor que alem de ser visto como mestre, era tido como alguém que havia conseguido acumular conhecimento e merecia respeito. Assim ele viu mais uma chance ir embora e, apesar deste desencontro promovido pelo destino a vida continuava e lá dentro ele sabia que a oportunidade chegaria. Ele queria crescer e iria buscar as oportunidades em qualquer que fosse a área e, em sua cabeça ficou firme a idéia de ser um militar. Sonho que ele não alcançou.
A vida da família continuava na mesma rotina e apesar de meu avo ser um homem muito rígido, por outro lado era também muito festeiro. Bom tocador de viola, gostava muito de cantar, de dançar catira, de beber e farrear. Características que foram herdadas por alguns dos filhos, principalmente meu pai que ainda rapaz aprendeu tocar a viola e cantar. Um dos motivos para eles sempre serem chamados para as festas da região. Meu pai, assim como meu avo era moreno, esbelto, forte e tinha olhos claros. O que sem dúvida nenhuma lhes traziam algumas vantagens com as mulheres e despertava a preocupação dos homens. Isso jamais foi motivo de preocupação para eles e, meu pai não imaginava que tais características seriam suas aliadas na realização de um de seus sonhos. O de sair da casa de seu pai.
Em mil novecentos e quarenta e um, ele estava agora com dezessete anos e as características físicas aliadas a sua característica festeira fez com que a mulher de um vizinho se enrabichasse por ele. O marido dela claro não achou aquilo nada engraçado e acabou por fazer uma jura de morte passando a persegui-lo. Este fato levou meu avo a tomar a decisão de protegê-lo, mesmo que para isso fosse necessário afastá-lo dali. Nesta época chegou naquela região um homem também chamado José e que também atendia pelo apelido de Juca, só que neste caso Juca Pudico. Este homem viajava no trajeto buracão/Jurigue vendendo e comprando mercadorias que transportava em carro de boi. Ao saber da situação acabou por tomar as dores de meu pai por considerá-lo parente seu. Na verdade meu pai era primo de sua esposa. Ele combinou com meu pai de tirá-lo da região escondido no seu carro de bois. Em um determinado dia ao cair da tarde, sabendo que os responsáveis pela jura estavam de tocaia perto da casa de meu avo, o Juca Pudico carregou seu carro de tal forma que os homens pudessem constatar que meu pai não estava dentro do mesmo e depois disso, colocou-se a caminho. Andou alguns quilômetros ate ter certeza que não estava sendo seguido e alguns quilômetros à frente meu pai que já estava esperando por ele escondido na mata, entrou no carro e o Juca Pudico o tampou com um couro de vaca e jogou mercadorias e depois com mantimentos (milho, arroz...) por cima. Meu pai viajou ali respirando com o ar que entrava pelas gretas (frestas) das tábuas do assoalho do carro por toda a noite e também no outro dia. Durante este tempo o Juca Pudico e seu carro foi parado duas vezes em mais duas tocaias que haviam sido armadas, mas o fato do Juca Pudico ser muito conversador e conhecido na região fez com que os agressores não achassem meu pai. Assim ele chegou são e salvo no Buracão onde ele ficou morando na casa de uma de minhas tias chamada Francisca. Aliás, a tia Francisca é um caso a parte, pois ela conseguiu superar minha avó no numero de filho tendo nada mais nada menos que vinte e um sem a ajuda de médico e sem jamais entrar em um hospital. Todos seus filhos nasceram em casa sendo que desses, dezessete sobreviveram. Tenho grande carinho por ela que ainda está viva aos noventa e três anos. Ali, na casa da tia Francisca, meu pai ficou morando e trabalhando. Ali ele tinha comida e roupa lavada, mas, aquilo não era o bastante e ele sabia que dali para frente sua vida estava em suas próprias mãos. Por isso, sabendo que teria muito a realizar e que não podia perder tempo, tratou logo de arrumar trabalho a fim de se manter. Em sua primeira empreitada trabalhando por conta própria, ele foi ajustado (contratado) pôr um fazendeiro chamado Ilidio Caetano. Lá ele ia roçar e derrubar uma mata para plantar vinte mil covas da cana que seriam usadas na moagem para a produção de rapadura, cachaça e açúcar de barro. Naquela época a cana era plantada em covas de 40x40cm e não da forma que é plantada hoje dentro de valas compridas. Essa empreita foi pega na companhia de dois companheiros que eram cunhados da tia Francisca. O que parecia algo fácil de realizar acabou por se tornar um problema, pois, após a abertura de duas mil covas, os companheiros tiveram que sair para resolver problemas pessoais deixando-o com uma imensa dificuldade nas mãos e obrigando-o a correr atrás de outros companheiros para terminar o serviço. Este fato apesar dos problemas que causou lhe foi muito benéfico, pois enfrentar sozinho aquela empreita lhe deu confiança e disposição para continuar sempre derrubando as dificuldades que o destino pudesse lhe ter reservado.
Durante a realização desta empreita ele conheceu e contratou um rapaz por nome João Maia e que acabou se transformando em um grande companheiro não só pelo fato de se tornarem parceiros de cantoria mas, também porque este lhe apresentou sua cunhada, uma moça chamada Gertrudes, filha do casal Gabriel e Benedita Paniago. A relação de trabalho dos dois rapazes foi se tornando cada vez mais próxima e, pela amizade surgida, em determinado momento o João Maia convidou o Juca para cortejar sua cunha o que foi aceito por Juca de bom grado. Naquela época, ser convidado para se casar em uma família era uma verdadeira honra e, sabendo muito bem disso, Juca passou a cortejar aquela que viria a ser sua primeira esposa. Tudo estava correndo muito bem e com pouco tempo de namoro o que havia começado como um convite de um amigo se transformou em amor e eles acabaram marcando a data do casamento. Após o termino daquela empreita, e já com os preparativos do casamento em pleno andamento, meu pai voltou até a casa de seus pais já que sua mãe havia mandado recados para ele cobrando uma visita. O recado foi levado por seu próprio pai e por isso quando ele partiu em direção ao Jurigue já não havia mais a preocupação com as reações de seu pai. Sendo assim ao passar por Alto Araguaia, Juca fez uma parada em uma loja para comprar um tecido para sua mãe fazer uma roupa para ela e também algumas caixas de balas. A viagem continuou por mais dois ou três dias e quanto mais ele se aproximava da casa de seus pais, mais forte seu coração batia, afinal já faziam alguns anos que ele havia saído dali e voltar era no mínimo bom. Quando ele já estava a poucos quilômetros da casa ele e seu companheiro de viagem, seu pai, sacaram os revolveres e começaram a atirar para o alto numa espécie de saudação comum naquela época. Seus irmãos perceberam que aquela saudação vinha de alguém que trazia no peito muita saudade e concluíram que se tratava do retorno de Juca que a algum tempo precisou ir embora. Certos disso pegaram suas arma e responderam a saudação dando tiros para o alto. Minha avó Dª Rita, saiu apressada em direção a estrada afim de receber o filho por quem ela tanto tinha chorado de saudades. A chegada não podia ser melhor ele foi muito bem recebido por todos pois, trazia consigo alguns dos símbolos de independência dos rapazes da época; um revolver 38 da marca Shimit, um bom cavalo bem arreado e algum dinheiro no bolso. Antes de chegar em casa durante a viagem a sua preocupação não era com a forma como seria recebido, mas com a possibilidade de seu pai não levar em consideração a independência que ele havia conquistado e que por nada perderia. Ele sabia que se seu pai resolvesse criar algum problema, dificilmente ele manteria aquela conquista pois, de forma nenhuma um filho ousaria desobedecer o Sr Leopoldino. Se o fizesse com certeza sofreria as conseqüências. Sobre esse assunto conta-se que em certa época um de seus irmão, o tio Antônio, caiu na besteira de tentar a desobediência e fugiu de casa numa madrugada. Quando meu avo ficou sabendo do fato, montou em um cavalo e saiu a caça do fugitivo alcançando-o apenas dois ou três dias depois. Por coincidência neste dia alguém estava indo de carro de boi em direção a sua casa e meu avo não teve duvidas, pediu uma carona amarrando o tio Antônio pelas pernas e cuidando para que ele não fugisse. Ao chegar em casa deu-lhe um bom corretivo e disse a ele: Você vai trabalhar para mim mais um ano e depois disso eu mesmo vou lhe dar um cavalo arreado e ai sim você poderá ser dono de seu nariz! Quando isso aconteceu o tio Antonio já tinha sua maioridade, fato sem importancia no pensamento de seu pai.
Desta forma era compreensível a preocupação de Juca porem, logo que chegou ele percebeu que as coisas não estavam muito tranqüilas naquelas bandas. Alguns vizinhos da familia estavam criando problemas para meus avós, o que impedia que meu avo se preocupasse com a liberdade conquistada por Juca. Ele indagou sobre os motivos e logo ficou sabendo que era por inveja ao grande numero de benfeitorias na terra de meu avo e quer haviam sido conseguidas a cada ano que passava. Meu avo era homem muito trabalhador e todos os anos tocava muita roça, abrindo com rapidez suas terras. O fato de ter muitos filhos e também de sempre ter peões a seu serviço lhe trazia certa vantagem, e assim em pouco tempo sua fazenda já estava bem formada e com muito desenvolvimento. Com inveja de suas realizações e sem ter como fazer tanto quanto ele conseguia, esses vizinhos passaram a criar todo tipo de dificuldades do tipo provocações e insultos, chegando até mesmo a conseguir mandato de prisão para meu avo e seu filho mais velho o tio João, acusando-os de invasão de terras na construção de uma cerca de divisa. Nesta época a policia foi mandada ate a casa de meu avo para cumprir o tal mandato de prisão e coincidentemente chegou na fazenda no dia em que eles realizavam um baile...
Ao serem avisados com alguns minutos de antecedência sobre a presença da policia os homens que estavam no baile e que andavam armados correram todos para o mato incluindo entre eles meu avo e meu tio. Quando a policia chegou foi logo pulando dos cavalos e sem querer saber de nada foram apontando suas armas para minha avó exigindo que ela desse conta de meu avô sob pena de sofrer as conseqüências. Ao apontarem as armas para ela os filhos que ainda eram pequenos e em boa quantidade, correram todos para junto dela agarrando na barra de sua saia. Ela disse que não sabia do paradeiro do vovô, porem eles insistiram colocando os fuzis em seu peito e exigindo que ela desse conta de seu marido. Após algum tempo naquele lenga lenga e convencidos de que ela dizia a verdade, os policiais resolveram abandonar a missão. Era muito tarde da noite e a cidade mais próxima ficava muito longe. O comandante dos policiais resolveu que eles não iriam voltar naquela noite e, sem ter muito o que fazer o resultado acabou sendo o abandono das armas. Sem perda de tempo um soldado pegou a sanfona o outro o violão e cada qual mandou brasa como pode e o baile rolou a noite toda. Os homens que haviam corrido sem saber o motivo da presença da policia, deixaram seus revolveres, facas, peixeiras e punhais escondidos nas moitas e pouco a pouco foram voltando meio ressabiados para o baile que só acabou com o raiar do dia. A exceção neste caso foi meu avo e meu tio que avisados por alguns freqüentadores do baile, trataram de fugir e só retornar quando fossem avisados que estava tudo bem. Acredito que esta tenha sido a primeira vez que a policia realizou um evento social de diversão. Duro mesmo, foi no outro dia após a saída da policia os homens que deveriam ir cada qual para suas roças tiveram que passar o resto do dia procurando suas armas de moita em moita, pois na presa ninguém mais lembrava onde havia deixado. Neste dia o problema para meu avo foi resolvido com certa facilidade mas, como um dia é da caça e outro do caçador, essa perseguição tomou corpo e se tornou mais tarde o motivo de meu avô ter que vender por preço muito baixo tudo que havia construído e voltar a viver na região do buracão em Goiás afim de preservar sua vida e de seus filhos.
Voltando à minha viagem, neste momento tive minhas lembranças interrompidas por uma parada bastante rápida do ônibus. Olhei pelo corredor entre as poltronas tentando enxergar o motorista para ver se descobria o que estava acontecendo mas, não consegui ver nada porque eu estava sentado muito atrás. Me levantei e pude perceber que havia algum problema pois percebi que o motorista olhava pêlos retrovisores numa clara demonstração de que tentava estacionar o veiculo. O ônibus parou e entre os passageiros ficou um clima de curiosidade com todos olhando para todos como se estivessem perguntando o que houve sem encontrar as respostas. Resolvi então verificar o que estava acontecendo e me encaminhei para a cabina do motorista, que a essas alturas já havia descido do veiculo e estava pegando algumas ferramentas. Tratava-se apenas de um pneu furado o que para a maioria dos passageiros era um alívio mas, para mim significava mais algum tempo de atraso, mais algumas horas sem saber a verdade do que estava acontecendo com meu pai. Procurei ajudar o motorista na tentativa de diminuir o tempo perdido porem, como todos os passageiros homens tiveram a mesma iniciativa resolvi voltar ao interior do ônibus para ocupar minha poltrona. Tentei imaginar o que estava acontecendo em Alto Araguaia, pois ate este momento ainda não sabia que meu pai havia sido levado para Goiânia. A única coisa que consegui foi aumentar o aperto no coração. Procurei deixar de pensar naquilo voltando meu pensamento para o que tinha acontecido na história antiga da tentativa de prisão de meu avo. Nesse momento pude ate sorrir imaginando os soldados tocando viola e sanfona e o povão todo dançando.
Retomei a seqüência e cheguei ao momento em que a visita de meu pai terminou e ele retornou para cuidar de seu casamento que já estava marcado. Gertrudes sua noiva era moça frágil e muito bonita o que fez com que ele se apaixonasse e fizesse todo esforço para ter uma vida boa a seu lado. Como resultado desse casamento vieram quatro gravidez que resultaram em aborto e, apenas na quinta tentativa quando a gravidez foi cercada de todos os cuidados é que o destino resolveu tramar a favor do casal permitindo o nascimento de um bebe. Nasceu uma menina forte e saudável e que foi batizada com o nome de Benedita numa homenagem à avó. Aquele que parecia ser um momento de grande felicidade era apenas o começo do desespero de Juca. Quis agora o mesmo destino que desta vez a mulher que ele amava viesse a morrer após trinta e oito dias do parto, em função de uma recaída no resguardo. O desespero tomou conta de meu pai e sem ter controle da situação ele saiu pelo mundo andando de fazenda em fazenda sem ter um destino certo e deixando para traz tudo aquilo que ele havia conseguido durante muitos anos de trabalho pesado...
... Deixou para traz seu gado, sua roça, e até mesmo sua filha ficou com seus sogros. Enquanto ele promovia uma verdadeira andança desembestada na sua cabeça a única coisa que entrava era a imagem da perda da mulher que em tão pouco tempo ele aprendeu a amar e respeitar. Por muito tempo ele vagou se perguntando se era justo tudo aquilo, se ele realmente merecia um castigo daqueles e que pecado tão grande ele teria cometido. Em um determinado dia após muitos meses vagando sem destino, ele chegou na casa de um tio de sua falecida esposa, o Sr. Geronimo Rocha que lhe chamou a atenção e o levou para trabalhar em sua fazenda conseguindo assim que ele retomasse seu processo de crescimento. Dos serviços que fez ali, ele contava com certo orgulho que
nos meses de junho e julho quando começava a moagem de cana para a fabricação de rapadura, pinga e açúcar-de-barro ele e mais três companheiros alem de dois filhos do proprietário formavam duas equipes. A primeira equipe levantava às duas horas da manha para moer dois carros de cana em um engenho puxado por quatro bois carreiros e, quando o dia amanhecia após tomarem um café reforçado a mesma equipe ia para o canavial cortar mais dois carros de cana para a outra equipe que trabalharia na noite seguinte. Nesta sucessão continua eles passavam os dois meses mais frios do ano ate por fim a todo o canavial que poucos dias depois seria replantado para o ano seguinte. Daquele período em diante sua rotina passou a ser a de trabalhar nas fazendas pegando diversos tipos de serviços como confecção de carros-de-boi, currais, salgadeiras, bicas d'água, monjolos e outros. Durante muito tempo ele continuou nesta vida de muito trabalho que lhe trazia a cada nova empreita um bom crescimento financeiro mas, também alguns riscos. Em uma destas empreitas por duas vezes sua vida esteve por um fio. Ele havia pego uma fazenda para montar e nesse tipo de empreita o proprietário levava o empreiteiro, geralmente de carro-de-boi, até o local onde será montada a nova fazenda que, quase sempre era dentro de uma mata muito fechada e ali ele permanecia por vários meses trabalhando sem ter nenhum contato com ninguém. Como o proprietário já havia passado as informações de como queria o serviço eles se encontravam bem pouco e em alguns casos, eles só voltavam a se falar na entrega da fazenda totalmente pronta. Após alguns dias de trabalho ele e apenas um companheiro que chamava Francisco e que era tratado por França, já haviam derrubado várias arvores que seriam lavradas e preparadas conforme o emprego a ser dado a cada uma. Naquele dia não seria diferente, eles saíram do barraco e foram para a mata para continuar derrubando arvores que seriam usadas mais tarde. Ao chegarem como de costume cada homem escolhia a arvore que iria derrubar e começava o trabalho. Meu pai escolheu uma arvore que seria usada para a confecção de um cocho para a salgadeira(local onde se reunia o gado para comer sal de tempos em tempos) Ele começou a cavar no pé da arvore pois essa não podia ser cortada e sim derrubada com as raízes para diminuir o risco dela rachar na queda. Neste tipo de serviço você verifica para onde a arvore vai cair e do lado contrario faz-se uma picada para facilitar sua fuga durante o tombo da mesma. Assim ele fez e quando a arvore começou a cair, meu pai instintivamente virou-se de costas para ela e saiu andando na picada afim de afastar-se do perigo. Sem perceber que devido ao vento forte que soprava nesta hora e a alguns cipós que a estavam segurando, a arvore mudou de direção caindo exatamente para o lado que ele estava. Quando seu companheiro percebeu o desarranjo gritou desesperado para avisa-lo e meio sem saber o que fazer ele correu e se escondeu atras do toco de uma grande arvore que já havia sido derrubada. A arvore caiu com o tronco justamente em cima do toco e com os galhos a poucos centímetros de sua cabeça. Por um bom tempo eles ficaram ali meio bobos sem ter nenhuma reação e quando refizeram do susto os dois companheiros deixaram o serviço e voltaram para o barraco a fim de descansarem. No outro dia já refeitos, eles retornaram ao trabalho e após aparar a gaiada e o toco da arvore que quase o havia matado, meu pai começou a lavragem da tora para que depois de esquadrejada ela pudesse ser cavada ate se tornar um grande cocho que seria colocado na salgadeira daquela fazenda. Eles começaram o trabalho e após pouco tempo ouviram os latidos de um pequeno cachorro que os acompanhavam e, que havia levantado um bicho que estava passando ali por perto. Seu companheiro que adorava caçadas, logo se uriçou e saiu correndo em direção aos latidos até encontrar o bicho que foi acuado muito próximo de onde eles trabalhavam. Meu pai porem gostava mais do trabalho e por isso observou a cena por alguns instantes e depois curvou-se novamente sobre a tora e continuou o trabalho. Não demorou muito e o França o chamou para ajuda-lo pois, tratava-se de um cateto acuado numa loca que ficava no barranco de uma grota. Meu pai largou sua ferramenta encostada na madeira e foi ao encontro de seu companheiro. Chegando lá ele verificou que tratava de um local com muitas locas e que certamente era ali que aqueles animais se escondiam quando corridos de cachorro. Os dois observaram o tipo de loca e após algum dialogo combinaram que um, faria o fechamento da loca com estacas de pau afim de conseguir que o cateto ao sair da loca passasse por um determinado local em velocidade reduzida para facilitar o tiro, enquanto o outro, com uma cavadeira improvisada cavaria um buraco que terminaria no fundo da loca afim de que pudesse cutucar o animal com uma vara. Assim foi feito e eles se preparavam para realizar a ultima parte do plano e, antes que o França cutucasse o animal, meu pai procurou a melhor posição para que pudesse fazer um tiro perfeito. Aquele cateto representava a carne de alguns dias para eles e, mesmo sem ser muito fã de caçadas, ele não queria correr o risco de perder aquele tiro. Antes porem, meu pai foi quebrar um pequeno ramo que nascia no barranco da grota e que estava atrapalhando a sua visão e, ao levar a mão direita em direção ao ramo, após ter colocado o revolver na mão esquerda, ele sentiu uma forte pancada em seu braço pouco acima do cotovelo. Foi uma pancada tão forte que por um ou dois segundos ele ficou zonzo e sem controle de seus sentidos. parecia que um objeto de meio quilo em alta velocidade havia batido em seu braço causando uma reação enorme em todo seu organismo. Ao olhar para o lado ainda um pouco confuso e um tanto assustado ele viu parte do corpo de uma imensa cobra capitão que o atacou certamente por acreditar que ele a estava atacando. Neste momento sem nenhuma explicação tive meus pensamentos interrompidos por uma zonzura repentina e não tive certeza se eu estava acordando de algum cochilo ou se fui trazido à realidade por algum solavanco do ônibus. O fato é que aquilo não demorou muito e naquele pequeno espaço de tempo olhei para meu relógio e verifiquei que estava próximo das dezessete horas e, logo depois e , sem dar muita importância para aquilo retornei a história no instante em que ele havia sido atingido pela cobra. Ao ser picado sua reação imediata foi pegar o revolver para atirar na cobra, mas foi contido pelo seu companheiro que pulou de cima do barranco para ajuda-lo, e que ao ver o sangue que merejava através dos buracos em sua camisa feito pelas quatro presas da cobra, acabou por ter um principio de desmaio. Mesmo ferido meu pai segurou o amigo, e na tentativa de mostrar que aquilo era menos grave do que parecia, agachou para pegar um pedaço de pau dizendo que aquela picadinha de formiga não era nada pra ele. Neste momento ele percebeu que já estava sem controle de seus atos e como se quisesse vingar daquela que o atacara tão sem motivo, pediu ao França que não a deixasse sair viva daquele local. Por ordem de meu pai após matar a cobra e tirar uma imbira da casca de madeira para amarrar no braço dele, o França foi em direção ao barraco para pegar uma garrafa de querosene e depois encontrar meu pai um pouco mais à frente no caminho afim de irem procurar recurso. O França que era homem esperto e bem disposto saiu em disparada mas ao chegar no local marcado não encontrou meu pai que a essas alturas já não conseguia enxergar devido a ação do veneno. Ao perceber isso seu companheiro ficou ainda mais desesperado e foi procura-lo, achando-o tateando e se segurando de arvore em arvore. Eles estavam ali sem nenhum preparo para uma emergência e por isso ele tomou uma boa dose do querosene como a única opção de remédio que tinham. Eles seguiram a pé em direção a fazenda mais próxima e no caminho não se sabe se pela ação do veneno ou do querosene por várias vezes o frança teve que larga-lo a beira do caminho para ir a alguma grota buscar água em seu chapéu, mas finalmente chegaram a fazenda onde eles haviam largado seus cavalos e que neste dia encontrava-se totalmente deserta. Seus cavalos estavam soltos na larga e, acha-los seria uma missão muito difícil e que certamente os atrasariam muito. Neste momento meio que por encanto ou por imaginação a cegueira que o acompanhava parou por alguns segundos e ele viu os cavalos do fazendeiro que estavam pastando próximo da casa. Eles pegaram esses cavalos pertencentes aos proprietários daquela fazenda e puseram a caminho da casa de um tio de sua falecida esposa. Quando chegaram, após muitos quilômetros e já quase no fim do dia imediatamente foram tomadas algumas providencias. O França foi na cidade mais próxima que ficava a dezoito quilômetros para buscar remédio e quase conseguiu arejar o pobre do cavalo pois, ele foi e voltou correndo num total de trinta e seis quilometras. A dona da fazenda foi cozinhar uma panelada de jiló para que ele pudesse comer já que, havia a crença de que o jiló ajuda a cortar o efeito do veneno assim como o querosene. Um peão que trabalhava para este fazendeiro foi até a casa de seus ex-sogros avisar para que a Dona Benedita fizesse as benzições necessárias. Naquela noite ele passou por maus pedaços e os outros peões que pertenciam a fazenda ficaram cuidando dele e revezavam na tentativa de dar-lhe algum conforto. Tomadas todas as providencias restava agora esperar e durante seis dias tudo que as pessoas presentes na fazenda puderam fazer foi observar e torcer para que tudo corresse bem. Neste período ele ficou sangrando pelas gengivas e pela raiz dos cabelos alem de ter passado por vários ataques de soluços. No sétimo dia já um pouco melhor saiu em seu corpo centenas de bolhas que ao serem furadas pela sua ex-sogra, soltavam um liquido verde que dava a impressão de ser o veneno. Depois de muita luta contra o veneno daquela cobra que por pouco destruiu os sonhos e a vontade de vencer de um homem simples, finalmente ele se sentiu curado e voltou a sua rotina. A vida continuava e alem do trabalho pesado e dos riscos que sempre corria, havia também as festas, o violão a pinga em fim o divertimento. O espirito fanfarão que ele herdou de seu pai só foi esquecido durante o tempo em que ele vagou pelo sertão desesperado com a morte de sua esposa, mas com o tempo ele foi se recuperando e agora ser um fazendeiro, sonho que nasceu na convivência com os amigos e parentes de sua falecida esposa, estava bem próximo e menos de um ano depois que ele e seus sogros mudaram-se para Mato Grosso, ele voltou a Goiás e trouxe consigo sessenta cabeças de gado, o bastante para dar inicio a um bom rebanho.
Havia ainda muita história para ser relembrada e eu estava com o olhar perdido na paisagem que passava pela janela do ônibus e que com sinceridade, eu mau percebia do que se tratava. De repente como se eu estivesse saído de um sonho comecei a identificar algumas imagens conhecidas como o morro de Santo Antônio e a chácara do viveiro tangará, ambos à margem direita de que vem no sentido Cáceres/Cuiabá. Isso me trouxe para a realidade e então a ansiedade aumentou por perceber que estava chegando a Cuiabá. Dentro de meu coração eu não alimentava grande esperança mas em minha cabeça tentei manter a idéia de que chegando na cidade ia encontrar meus familiares e eles diriam que tratava apenas de um susto e que meu pai já estava bem novamente. A partir daí busquei ansioso cada um destes pontos de identificação que me eram familiares. O bar na entrada para Poconé demorou muito a chegar, o Posto São Luís parecia ter mudado e quanto mais o ônibus andava ainda mais ansioso eu ficava. Pensei... merda... cadê a droga do trevo do largato. Há! Ali está ele. Finalmente entramos em Várzea Grande atravessamos a ponte da rodovia Ciriaco Cândia e chegamos a rodoviária de Cuiabá. Ao chegar mal pude esperar que o ônibus parasse e desci imediatamente tentando encontrar um orelhão para ligar para meu irmão. Encontrei o orelhão e liguei o mais rápido possível e depois de algum tempo sentado em um banco com a cabeça baixa, subi para a plataforma que dá acesso a entrada frontal da rodoviária e, pouco depois avistei o carro de meu irmão que trazia consigo meu tio Helmo e meus sobrinhos. Eles desceram e vieram em minha direção e pêlos rostos pude perceber tudo. Caminhei afim de encontra-los e sem que eu pudesse controlar a minha ansiedade, esta me fez ficar um pouco aéreo e tive a impressão de que estava só em meio a tantos. Todos me cumprimentaram e meu irmão Valdir me abraçou tentando me confortar ou proteger do que ia dizer, e disse:... Perdemos o Papai!... Ele havia sido declarado morto às dezessete horas em conseqüência de um derrame cerebral sofrido no dia 10 de janeiro de 93, cinco dias antes dele completar setenta anos de idade.



Segunda Parte

Saímos das rodoviária para irmos para a casa do Valdir e em meio ao caminho ele me contou como tudo tinha acontecido. Tudo o que ele me disse de certa forma já não era novidade e, só veio confirmar tudo que eu senti quando minha esposa me encontrou à beira daquele minadouro na Fazenda Santo Antônio. Apesar de eu ter praticamente certeza do que estava acontecendo, durante a viagem do Pedro Neca até Cuiabá tentei acreditar na verdade que eu queria. Fomos até a casa do Valdir e lá já estavam nos esperando a sua esposa Lindinalva e a Marcia esposa de meu tio Helmo alem de alguns vizinhos que permaneceram ali durante algum tempo a fim de nos confortar. Entre a minha chegada na rodoviária e o momento que fomos dormir, lembro-me que por várias vezes me veio o choro porem, parecia que algo o segurava como se na realidade eu não estivesse acreditando no que estava acontecendo. Tarde da noite sem ninguem por perto, consegui me livrar daquela angustia que estava sentindo e, quase que num protesto, chorei em silencio por alguns instante. Apesar da angustia, do choro e de tudo mais, mesmo sabendo da realidade, no fundo parecia que eu ainda acreditava que algo reverteria aquela situação e, nesses momentos fatalmente eu voltava a lembrar da história de meu pai, que após ter passado pelo perigo da picada da cobra, passou algum tempo na casa de seus sogros para descansar e recuperar suas forças. Alguns dias depois ele voltou ao local do serviço que havia deixado e, em seu retorno foi inevitável que em sua mente voltasse os momentos de dor e angustia que ele havia sentido em sua ultima passagem por aquele caminho. Quando já chegava perto do local do trabalho, aos poucos ele foi voltando à realidade e antes que chegassem ainda teve tempo de agradecer a Deus por estar ali novamente e poder continuar aquele e os outros trabalhos que com certeza viriam. Depois de montar esta fazenda ele continuou na região trabalhando e também se divertindo. Nesta época seu cunhado chamado Nativo, já era homem feito e havia se tornado seu principal companheiro de trabalho e de diversão. Meu pai tocava violão e um pouco de sanfona de oito baixos e o Nativo já era bom tocador de viola de dez cordas, o que facilitou na formação por eles de uma dupla sertaneja que tinha como objetivo único a diversão nas festas da região. Durante seis meses após a morte de sua primeira esposa ele vagou pelo sertão sem um destino certo e nos dezoito meses seguintes ficou andando de fazenda em fazenda, construindo casas, monjolos, bicas-d'agua, cangas, cambão, canzis e carros-de boi. com isso construía também um patrimônio que estava sendo formado por algumas cabeças de gado adquiridas com aquilo que lhe sobrava após cada empreita. Nesta época devido a maneira como se sentia era preferencia sua trabalhar com poucos companheiros e com isso o lucro era um pouco maior do que seria normalmente. A imagem de homem desnorteado aos poucos foi dando lugar a uma imagem menos triste. A imagem que agora ele passava a assumir trazia uma grande influencia daquilo que foi meu avo, ou seja, homem trabalhador e fanfarrão e isso parecia incomodar a algumas pessoas como por exemplo sues ex-sogros que logo começaram a tentar exercer influencias em seu destino.
Naquela época era comum que os viúvos se casassem novamente dentro da mesma família pois, desta forma, conseguia-se manter a amizade e o carinho daquelas pessoas que já pertenciam ao seu convívio e, principalmente, para evitar a divisão do patrimônio já que, saindo de dentro da casa de seus ex-sogros, naturalmente o viuvo levaria consigo os bens pertencentes a filha falecida. Com meu pai isso aconteceu de maneira muito forte, pois alem dos motivos já citados havia também a questão de sua filha que agora estava com dois anos de idade e que sua avó não permitia que fosse criada por nenhuma estranha. Sendo assim, os familiares de sua finada esposa sabendo que mais cedo ou mais tarde outro relacionamento iria surgir, procuram influencia-lo a aceitar o noivado com uma moça que era prima de sua finada esposa e, que se chamava Iracema Paniago. Este novo relacionamento foi aceito por ele, até mesmo para agradar aos familiares de sua amada Gertrudes , porem até este momento, o único amor de sua vida havia sido ela e, o novo noivado lhe trouxe pouca ou quase nenhuma impolgação. Esta conversa surgiu no mês de Agosto de um mil novecentos e cinqüenta e conforme a combinação os dois ficariam noivos no mês de Novembro do mesmo ano. O tempo correu e permitiu que ele trabalhasse bastante e, se divertisse muito mais. Nesta época ele era capaz de trabalhar a semana inteira de sol a sol e, no sábado montar em seu cavalo, andar dezoito quilômetros ou mais, festar a noite toda tocando violão, cantando, bebendo e dançando e, no outro dia já com o sol alto fazer a viagem de volta, dormir apenas a noite e acordar de madrugada para manter sua rotina na semana seguinte. Seus dias e semanas eram dedicados ao trabalho, ao lazer e também a sua filha Benedita que crescia e lhe fazia feliz. Os meses passaram rápido e o noivado que se aproximava seria já no próximo mês porem, em Outubro ele recebe uma carta de um fazendeiro que havia pego parte de seu gado para tomar conta. A carta dizia que por problemas particulares do fazendeiro, este não mais poderia cuidar do gado e que portanto se tornava necessário que meu pai fosse tomar posse do mesmo. Imediatamente foi improvisado uma invernada nas terras de seus ex-sogros e, ele partiu em busca desse gado que foi colocado neste pasto cercado de ultima hora. Após colocar o gado em uma área de aproximadamente cinqüenta alqueires, ele voltou para a fazenda onde ele trabalhava rachando algumas dúzias de lascas de aroeira para fazer cerca de arame. Intertido no trabalho ele nem percebe que Novembro havia chegado e que trazia consigo os dias em que ele deveria cumprir a palavra empenhada e procurar a moça com a qual ele assumiu o compromisso de noivar e consequentemente se casar. Naturalmente ele iria cumprir aquilo que prometeu mesmo que no fundo do coração ele sabia que não era o que ele queria. "Palavra dada não volta atras". Esta é uma frase que todo homem conhecia decór e salteado já que eles viviam em uma época em que o maior documento que podia existir entre duas pessoas era a própria palavra. Época em que um homem era capaz de entregar um fio de seu bigode como garantia de um negócio e, alguns meses ou anos depois, vir pagar sua divida com a mais clara intenção de levar de volta seu fio de bigode. Desta forma com a chegada de novembro em um determinado final de semana ele monta em seu cavalo e, na companhia de seu companheiro Nativo vão até a casa da moça. Durante a viagem como era de costume os dois amigos iam cantando algumas conções e, quando se aproximavam da casa de alguma fazenda, silenciavam em respeito aos donos da casa. Ao se aproximarem da casa da moça com quem ele iria firmar compromisso, não foi diferente e, neste caso a cantoria parou muito antes para não deixar má impressão na família para a qual ele entraria. Sendo assim, a moça já o esperava porem, sem saber a hora exata de sua chegada, ela estava encostada em uma porteira de frente da casa, conversando com um outro rapaz, o que fez com que ela não percebesse a aproximação dos dois companheiros que chegaram bem perto e constataram o fato, antes que ela saísse apressadamente para dentro da casa. Este encontro inesperado foi o bastante para que terminasse ali o compromisso assumido. Uma moça comprometida com um rapaz, ser pega conversando com outro, mesmo que por amizade, era considerado no mínimo desrespeitoso ao primeiro. Naquele dia ele saiu dali absolutamente descompromissado e com toda certeza que conduziria sua vida da mesma forma que vinha fazendo nos últimos dois anos. Porem ao saber do ocorrido sua sogra Benedita o procurou e fez todo esforço no sentido de que ele não levasse aquele fato em consideração e depois de muita conversa ficou acordado entre eles que seria respeitado um tempo para que ele pudesse pensar no assunto. Já era quase o fim de Novembro e sua vida continuava na rotina do trabalho e das festas. A envernada que ele havia fechado era formada apenas por cerrado e capim jaragua e seu gado sentiu a diferença e emagreceu muito obrigando-o a alugar pasto em uma outra fazenda. Um dia Juca recebeu a noticia de que parte de seu gado havia fugido e, após consertar a cerca por onde o gado havia saído e fazer uma recontagem do gado ele verificou que eram vinte e seis as fujonas e, na companhia de um amigo saiu andando de fazenda em fazenda a procura das mesmas. Depois de alguns dias de procura eles conseguiram reunir vinte e três das vinte e seis rezes, considerando o restante como perdidas. O tempo passou e durante seis meses ele foi procurado varias vezes por sua sogra Benedita que queria o reatamento do compromisso de casamento com sua sobrinha mas, ele continuava sem dar uma resposta definitiva. a essas alturas ele próprio já achava difícil escapar daquela situação e tudo parecia encaminhar no sentido de que ele se casasse novamente conforme era a vontade dos familiares de sua finada esposa, e que seu patrimônio fosse agregado ao da moça, aumentando o patrimônio familiar e mantendo assim a tradição. Tudo levava para esse caminho e, ele próprio já não oferecia muita resistência. A vida continuava e em um determinado dia apareceu na casa de seus sogros, um homem trazendo noticias de que em uma fazenda retirada quarenta e oito quilômetros dali havia aparecido três novilhas perdidas e pela descrição dada pelo viajante, tratava-se das três furonas que ele já nem cotava mais como suas. Na companhia de um tio de sua finada esposa, o Sr. Geronimo Paniago, que não era pai da moça oferecida pela família, ele pegou quinze de suas novilhas para serem usadas como madrinhas e saiu para buscar as outras três. Eles viajaram o primeiro dia e já cansados pediram pouso em uma fazenda que ficava a beira do caminho. No outro dia se colocaram em marcha bem cedo e quando já era quase dez horas da manha eles chegaram na fazenda de um senhor muito conhecido e respeitado na região. Eles não fizeram parada mas, ao passarem pelo canto da cerca do quintal, do alto de seu cavalo Juca avistou duas belas jovens que estavam na bica-d"agua cuidando de seus afazeres. Ele as cumprimentou com um aceno de cabeça e elas responderam e isso já seria o bastante para a época e, pelas regras ele deveria seguir seu caminho sem olhar pra traz mas, a beleza daquelas jovens havia lhe atraído muito e por alguns instantes ele manteve seu olhar fixo nas duas. Mesmo sabendo que se fosse pego, aquele fato poderia ser encarado pelo fazendeiro como um ato de desrespeito a sua família, por alguns instantes ele esqueceu que estava apenas de passagem, deixando que seu cavalo fosse diminuindo a marcha até quase parar. Encantado pelas duas moças ele ficou ali por instantes perdido no tempo e no espaço e só retornou a realidade ao ouvir os gritos fortes de seu companheiro tentando colocar o gado na direção certa. Depois daquele momento indiscritível ele continuou seu trabalho cutucando firme com as esporas no subaco de seu cavalo que imediatamente respondeu alcançando o gado. Naquele dia eles chegaram ate a fazenda onde se encontrava as novilhas e com a autorização do fazendeiro ainda foram ate a invernada e tocaram o gado para o curral afim de separarem as três novilhas e coloca-las para dormir junto com as outras quinze que ele trouxera para que naquela noite acontecesse o amadrinhamento. À noite após a janta, eles foram para o galpão e lá armarão suas redes para dormirem e, depois de conversarem um pouco os dois se calaram afim de dormir pois teriam que acordar muito cedo para fazer o caminho de volta. Isto seria sua rotina em todas as noites de sua vida mas, naquela noite seria diferente. Seu companheiro dormiu com facilidade e ele ficou durante muito tempo dentro de sua rede se deliciando com a lembrança da imagem daquelas duas jovens e somente lá pelas dez horas da noite já vencido pelo cansaço é que ele pegou no sono. No outro dia às quatro horas da manhã os dois companheiros levantaram e logo que arrumaram suas traias e arriaram seus cavalos estavam prontos para pegar o estradão e, depois de agradecerem ao fazendeiro colocaram-se a caminho com muito cuidado, pois aquelas três novilhas que estiveram longe por muito tempo certamente iriam dar trabalho para serem levadas de volta.
São quatro horas da manha mas, neste caso do dia treze de Janeiro de 1993 e após tentar dormir por toda a noite sem sucesso, levanto-me e chamo meu irmão. Ele se levanta e após alguns preparativos estamos prontos para iniciar nossa viagem para Alto Araguaia. Desta vez, eu começava minha viagem sem a angustia de não saber dos fatos, ao contrario eu agora saia com a certeza de que estava indo para a minha cidade natal, o lugar que eu mais gosto neste planeta, a fim de participar de um ritual cujo objetivo é despedir para sempre de alguém que você ama. Pouco tempo depois estávamos na estrada eu, meu irmão Valdir e meu cunhado Sebastião Siqueira. Logo que saímos de Cuiabá, o cansaço e o sono me derrubaram e deitado no banco de traz do carro, acabei por adormecer vindo a acordar muitos quilômetros depois. Depois de dormir por algum tempo, acordei mas fiquei deitado no banco. Nos bancos da frente o Valdir e o Sebastião conversavam porem, eu não consegui prestar atenção naquilo que falavam. Com o olhar perdido no teto do carro, busquei lembrar onde meus pensamentos estavam quando adormeci, e lembrei que após se levantarem de madrugada e se colocarem a caminho, durante a volta apesar dos cuidados que os dois companheiros precisavam tomar, por várias vezes sua atenção se desviou do trabalho e em sua cabeça veio a imagem daquelas lindas jovens e sempre que isto acontecia ele apertava o passo na intenção de chegar logo à casa das duas. Apesar da demora, isso veio finalmente a acontecer e, como eles chegaram na hora da merenda lá pelo meio dia, naturalmente foram convidados a apiarem de seus cavalos e entrarem na casa para merendar. Durante esses momentos seu olhar percorria todas as direções na tentativa de rever aquelas moças mas, ele sabia que seria muito difícil ve-las pois o costume mandava que as moças não se mostrasse para as visitas para que não fossem tidas como fáceis. Neste caso, este fato era levado ainda muito mais a sério pois, tratava-se de filhas do Sr. Rodolfo Severino Rodrigues, conhecido na região por Rodolfo Léco, homem muito severo e por isso mesmo muito respeitado por todos. Quase convencido de que não veria as moças, ele montou em seu cavalo para continuar sua jornada e logo que colocou o gado na estrada passaram pelo canto daquela cerca do quintal e para sua surpresa lá estavam elas. As duas estavam novamente na bica-d"agua e desta vez uma delas sorriu e fez um gesto de cumprimento mais explicito e direto. Sem poder parar seu cavalo, ele continuou andando mas correspondeu acenando com a cabeça e retomando em seguida a atenção naquilo que fazia. Tocar gado é trabalho complicado no inicio pois, o mesmo parece não querer sair de onde está mas, depois de um certo tempo o gado se acostuma e então torna-se mais tranqüila a viagem. Neste caso aconteceu tudo como se previa e no inicio tiveram certo trabalho com uma novilha que entrava para o cerrado, outra que tentava voltar mas, com muita gritaria, com o cerca daqui pega dali, depois de um certo tempo tudo acalmou e os dois companheiros já podiam conversar. Foi neste clima um pouco mais calmo que depois de conversarem sobre diversos assuntos que o Juca disse ao Sr. Geronimo Paniago que se casaria com uma das filhas daquele fazendeiro. Ao ouvir esta afirmação o Sr. Geronimo disse a ele que deixasse de ser besta em pensar que umas moças tão bonitas iriam querer casar com ele. Ele repetiu a afirmação sem se importar com a opinião do companheiro e a viagem continuou normalmente ate a chegada na casa de seus sogros onde ele ainda passaria algum tempo. Naqueles dias talvez por instinto ou por ter ficado sabendo de alguma informação, sua sogra o procurou novamente e, mais uma vez tentou fazer com que ele se decidisse pelo casamento com sua sobrinha. Desta vez porem, ela encontrou um homem decidido, que sabia o que queria e que estava disposto a novamente tomar as rédias de seu destino. A Dona Benedita disse a ele que havia marcado uma visita à casa de sua sobrinha para que pudessem conversar e buscar uma solução para o caso. Ele ouviu tudo o que ela tinha a dizer com a cabeça baixa e continuou assim por mais alguns instantes para então, preservando o respeito que ele sempre teve por ela e por seu sogro, dizer com todas as palavras que não se casaria com sua sobrinha. Aquela atitude foi muito mal recebida e, Dª. Benedita chegou ao ponto de esbravejar dizendo que ele não podia fazer aquilo mas, seus argumentos não foram o bastante para lhe tirar do rumo que ele desejava seguir dali em diante. A partir daí o destinou começou a tecer suas teias e enquanto ele trabalhava nesta empreita de rachar aroeiras par fazer lascas de cerca, em um determinado dia chegou em seu local de trabalho o Sr. Rodolfo, pai das moças que ele havia visto e que estava viajando naquela direção afim de realizar negócios de seu interesse. Imediatamente Juca o reconheceu e o convidou-o a apear para poderem conversar. O Sr. Rodolfo que já estava viajando a algum tempo aceitou e, depois de descer de seu cavalo passou a observar o trabalho que estava sendo feito enquanto trocavam algumas informações. A conversa estava muito boa e ficou melhor ainda quando o Sr. Rodolfo perguntou ao Juca se este sabia fazer bica - d"agua. Sentindo que ali poderia estar a possibilidade de vir a trabalhar para aquele senhor e assim poder rever aquelas moça, ele não teve nenhuma dúvida e disse que sim e, depois de alguns minutos já estava acertado com o Sr. Rodolfo que assim que Juca acabasse aquele trabalho, este deveria ir para sua casa para confeccionar e instalar as novas bicas-d"agua da fazenda. O fazendeiro foi embora e Juca continuou o trabalho que agora ele tinha muita presa em acabar. Este trabalho estava sendo feito em uma fazenda perto das terras de seus sogros e por isso ele passava a semana fora de casa e só retornava no sábado à tarde. Sendo assim ele passou o restante da semana trabalhando mas, com uma ansiedade imensa pois, agora ele mal podia esperar o momento de retornar à aquela casa. A ansiedade era tamanha que fez com que ele se esquecesse que mesmo já tendo dado a resposta para sua sogra a respeito da sobrinha dela, ela com certeza não iria desistir tão fácil e ainda insistiria no assunto. Dito e feito, logo que ele retornou naquela semana, novamente foi procurado por ela para tratarem do mesmo assunto. Ele agora estava muito cauteloso pois, conhecia a opinião dela e, mesmo tendo certeza daquilo que queria e, sendo dono de seu nariz, o respeito lhe recomendava que evitasse qualquer tipo de atrito com aquela pessoa que até aquele momento tinha sido uma verdadeira mãe para ele. E foi o que ele fez, procurou evitar o assunto e não dar resposta definitiva na esperança de que aos poucos tudo fosse se ajeitando. Assim ele continuou e terminou aquela empreita ficando livre para ir procurar o Sr. Rodolfo para que pudesse começar o trabalho solicitado por ele. Isto aconteceu e após o termino desta empreita foram aparecendo outras já que o fazendeiro gostou de seu trabalho. O tempo passava, os trabalhos eram feitos e a cada dia ele se tornava mais conhecido e respeitado pelo Sr. Rodolfo que agora lhe dava todo tipo de serviço tanto nos pastos através de roçadas como também trabalhos pesados com a madeira, já que os trabalhos leves com madeira o Sr. Rodolfo mesmo fazia pois ele era considerado o melhor carpinteiro da região. Como empreiteiro ele ganhou a confiança da família e assim pode se manter perto de Adalzira que agora era sua namorada, mesmo sem o conhecimento dos pais da moça. O namoro acontecia através de cartas que eram entregues por um dos irmão da moça, um menino chamado Orlando, que é claro passou a ser cúmplice do casal. Depois de algum tempo de namoro escondido, em um belo dia sem que Juca esperasse o menino lhe trouxe mais uma carta e esta tratava de assunto muito sério pois nela Adalzira indagava se ele queria pedir-lhe em namoro para seus pais e que caso isso fosse sua intenção, que ele podia firmar o pedido que ela aceitava. Aquilo era tudo o que ele queria e, como aquele dia era um sábado ele foi para a casa de seus sogros para ver sua filha e passar o fim de semana. Lá chegando passou o resto do sábado e todo o domingo pensando na proposta e antes de voltar para o serviço foi mais uma vez procurado pela Dª. Benedita que insistiu com o assunto de sua sobrinha. Procurando não ofender, ele falou para ela sobre a proposta e sobre sua intenção de aceita-la. Ao ouvir esta afirmação ela ficou novamente furiosa e sem muito pensar indagou sobre quem era a moça. Ele deu a informação sem nenhuma preocupação com o que ela iria dizer pois, sua decisão já estava tomada. Dª Benedita se zangou e novamente esbravejou que ele não podia fazer aquilo. Ele abaixou a cabeça e depois de alguns minutos sem dizer nada, saiu de dentro da casa, foi até o portão, montou em seu cavalo e virando as costas colocou-se em marcha em direção ao seu trabalho. Na Segunda feira logo que teve oportunidade tratou de mandar um bilhete para Adalzira marcando um encontro para falarem do assunto e, após conversarem ficou acertado entre os dois que o pedido de casamento seria feito em breve. Por mais algum tempo o namoro continuou as escondidas, mas o Juca não era o único pretendente que a moça tinha nas redondezas, por isso eles trataram de oficializar o pedido de namoro e, após isto ter sido feito, conta-se que a Dª. Leonora, mãe de Adalzira disse em certa ocasião: "entre eles,(referindo-se aos pretendentes) é preferível que seja o Juca". Esta preferencia veio de encontro com os desejos dos dois e daquele momento em diante os planos para o casamento começaram a ser traçados. Os pais de Adalzira a mandaram para Alto Araguaia, cidade mais próxima, a fim de que ela fizesse o curso de corte e costura, indispensável para alguém que tinha como objetivo casar-se e comandar uma casa. Enquanto isso, Juca trabalhava como balizeiro de um agrimensor chamado Jeronimo de Barros Vilela, vulgo Samita Vilela, que havia sido contratado por um tio de sua noiva para fazer uma medição em sua fazenda. Na Segunda feira Juca ia para o trabalho com o Sr. Samita e só retornava no Sábado, dia em que Adalzira também voltava de Alto Araguaia. Era a oportunidade que o casal de noivos tinha de se verem e com muita dificuldade se falarem. Em uma dessas raras oportunidades, os dois foram juntamente com mais algumas dezenas de pessoas, a um baile que estava acontecendo em uma fazenda vizinha e, achando que já eram donos da situação por terem recebido autorização para o noivado, caíram na besteira de sentarem um ao lado do outro no mesmo banco, dentro do salão de baile e diante de todos. Este fato foi o bastante para o Sr. Rodolfo absolutamente desapontado e nervoso com o casal fazer o seguinte comentário com sua esposa." acho que não precisamos fazer mais o casamento pois, aqueles dois parecem que já estão casados". Mesmo com este acontecimento o noivado que aconteceu em Dezembro de quarenta e nove continuou e deveria seguir até a realização do casamento no mês de Maio de um mil novecentos e cinqüenta mas, em um determinado fim de semana, ao chagarem de suas ocupações o casal foi surpreendido pelas atitudes de Dª. Leonora que, a essas alturas preferia ver o diabo ao homem que sua filha havia escolhido para seu futuro marido. Tal atitude foi uma imensa surpresa para ambos e, meio atordoada Adalzira foi falar com a mãe na tentativa de descobrir o que estava acontecendo. Com muito jeito e cuidado ela conseguiu conversar com sua mãe e a resposta obtida foi que ela, Dª. Leonora, havia se contrariado com seu noivo e não aceitava que ela se casasse mais com aquele homem que agora ela achava que era simplesmente o pior de todos os pretendentes que já havia aparecido. Adalzira não se entregou e foi atrás da verdade e na procura acabou sabendo que o motivo da raiva de sua mãe eram algumas conversas que ela havia tido com um casal de velhos que tinha visitado a fazenda naquela semana. O Juca também ficou sabendo desta visita misteriosa e procurou descobrir o que aquilo tinha a ver com seu relacionamento mas, por mais que o casal de noivos fizesse, não conseguiam descobrir o verdadeiro motivo da raiva de Dª Leonora. Nada era suficiente para convence-la a autorizar a realização do casamento e, mesmo assim, eles continuavam se encontrando às escondidas e se comunicando através de bilhetes que eram levados pelo garoto Orlando, irmão de Adalzira. Em um determinado dia Juca que estava trabalhando em um a fazenda vizinha recebeu um recado de Dª Leonora pedindo que ele fosse até a casa dela para os dois conversarem. Ele atendeu ao pedido de sua futura sogra e foi ao encontro. Ao chegar na casa de Dª Leonora, Juca que achava que talvez tivesse aparecido uma solução para seu problema, percebeu logo que ele estava enganado pois, sem nenhum rodeio ou disfarce, ouviu a mãe da moça lhe dizer com todas as palavras, que ela havia se contrariado com ele e, que não aceitava mais o casamento. Ao final da conversa antes mesmo que ele falasse algo ela ainda completou " Se o senhor é homem de vergonha como diz ser, então termine o noivado com minha filha. Um bom dia para o senhor". Ele pensou apenas por alguns segundos e como resposta Juca disse: "A senhora pode falar com sua filha e, se ela concordar, eu farei suas vontades". Ele disse aquilo e saiu e, o que parecia ser uma desistencia da parte dele, na verdade refletia apenas a confiança que ele tinha na vontade dos dois pois, alguns dias antes ele a havia chamado para acabar com o noivado e ela se recusou com firmeza. Os dias foram passando e neste meio tempo foram feitas inúmeras tentativas para resolver o problema mas, sem se importar com a quantidade e nem com a qualidade dos argumentos ela continuava firme em sua posição. alem de tomar mais raiva do agora ex-noivo de sua filha, Dª Leonora tomava raiva também das pessoas que intercediam a favor do casal, fosse ela um parente ou um amigo. Após algum tempo de tentativas frustradas em um determinado dia depois de mais um vai e vem de bilhetes, o casal se encontrou e Juca fez novamente a proposta de acabar com toda aquela dificuldade mas, Adalzira novamente recusou e foi ela mesma falar com sua mãe. As duas conversaram um pouco mas, firme em sua decisão mais uma vez sua mãe negou e ainda disse a seguinte frase "Maldita hora em que eu fui falar aquilo" referindo-se ao dia em que ela disse que entre os pretendentes ela preferia o Juca. O casal estava desesperado mais continuavam sua rotina diária comum em uma fazenda e sendo assim durante a semana Juca ia para a casa de um padrinho de Adalzira chamado Sr Fidencio onde estava ajudando o Sr Samita a fazer uma medição de terras. A essas alturas Adalzira já nem ia mais para a cidade e ficava mesmo na fazenda. Em um determinado dia, após largarem o serviço no fim da tarde, Juca voltou para a sede da fazenda e, vendo a situação em que estava aquela história e, por gostar muito de sua afilhada, o Sr Fidencio se propôs a fazer uma ultima tentativa em falar com Dª Leonora. Na situação em que se encontrava, Juca não podia recusar nenhuma possibilidade de mudança de rumo e naturalmente aceitou a oferta. No outro dia bem cedo o Sr Fidencio foi até a casa do Sr Rodolfo e, depois de longa conversa também se convenceu de que diante daquele radicalismo palavras não seriam o bastante pois, ma situação era a seguinte: A Dª Leonora não aceitava o casamento; A Adalzira não desistia; O Sr Rodolfo não era contra porem não queria contrariar a esposa e o Juca queria a moça mas respeitava muito os velhos e certamente preferia morrer de paixão do que arranjar uma briga declarada. Sendo assim, depois de receber mais uma negativa, o Sr Fidencio voltou para casa disposto a tomar outros caminhos para ajudar sua afilhada e, ao chegar em sua fazenda logo que teve oportunidade chamou Juca para uma conversa . Um pouco afastados da casa os dois homens falaram de como era difícil conseguir aquilo que queria quando a pessoa que podia decidir, não considerava os sentimentos dos envolvidos e muito menos os caminhos da razão. Eles falaram de como a Dª Leonora parecia outra pessoa, como ela parecia estar comandada por alguém ou até mesmo por algo que eles não conseguiam entender. Depois de alguns bons minutos de conversa, em um determinado momento o Sr Fidencio perguntou ao Juca! Você quer mesmo casar com essa moça? Mesmo sabendo que assim você não será bem vido na família dela? Ser rejeitado não te incomoda? Ele pensou por alguns instantes com a cabeça baixa e depois erguendo-a respondeu de maneira firme e decidida. Sim, eu quero me casar com ela e, se para isso eu tiver que ser rejeitado , isso não me importa, afinal de contas eu vou viver é com ela! O Sr Fidencio que observava tanto sua reação a pergunta como também a maneira como veio a resposta permaneceu calado por alguns segundos e convencido de que em sua frente estava alguém que achava que sabia o que queria, lhe falou. Seu problema não pode ser resolvido através de conversa e muito menos com humildade. O que eu vi na casa do Rodolfo, não se trata apenas de má vontade e sim de coisa feita por gente maldosa. Bem distante daqui, em uma outra localidade, existe um homem que pode te ajudar. Ele é capaz de resolver todas essas questões e desmanchar qualquer coisa que tenha sido feita e que esteja atravessada em seu caminho. Amanha de manha você pega um de meus cavalos que esta mais descansado do que o seu e vá encontrar este homem que, com toda certeza ele vai resolver seu problema . Só depois de encontrar a casa é que ele ficou sabendo que se tratava de um senhor que se chamava Diolino e, que este era um homem humilde e trabalhador e que todos os anos ajudava a comandar uma folia de reis que rodava sua região em busca de donativos. Convencido de que não lhe restava mais nada a fazer no outro dia bem cedo ele pegou o cavalo e saiu na direção indicada afim de tentar uma solução definitiva para aquela situação. A viagem era longa e ele estava indo meio pelo rumo sem saber ao certo a quem procurar. Ele tinha um nome e algumas poucas informações sobre um local por onde ele jamais havia andado mas, tinha principalmente um objetivo e uma determinação imensa. Depois de dois dias de viajem andando sozinho pelo meio dos serrados e das matas ele já estava se sentindo cansado e meio descrente quando já no finalzinho da tarde avistou uma casa coberta com capim sapé e ao aproximar-se concluiu que tratava da casa indicada como sendo a do Sr Diolino. Ele aproximou-se e parou seu cavalo na porta e bateu palmas. Após alguns instantes foi recebido por um senhor que o cumprimentou e o convidou a apear. O Sr Diolino estava cuidando do terreiro, ou seja, tratando dos porcos, das galinhas, colocando lenha pra dentro etc., por isso após receber o Juca na porta e um breve papo, indicou onde ele podia tomar um banho e onde dormiria e convidou-o para após o banho vir pra dentro da casa para jantar. Juca ficou achando meio esquisito pois, ele esperava encontrar um homem totalmente diferente, do tipo com turbante na cabeça ou coisa parecida porem, o Sr. Diolino parecia uma pessoa simples por demais e, mostrava uma imagem que certamente não passava a idéia de que ele pudesse resolver aquela questão que a essas alturas parecia tão imensa e pesada. Enquanto tomava seu banho e se preparava para a janta Juca ficou pensando em que aquele homem tão simples podia ajudar, mas agora que ele já o estava ali o certo era esperar para ver. Todos aqueles pensamentos e aquelas dúvidas deixavam de existir quando ele lembrava do que o Sr Fidencio havia falado pois, ele havia sido muito firme no momento em que afirmou que naquele pequeno barraco estaria a solução para todos os seus problemas. Após a janta enquanto sua esposa arrumava a cozinha o Sr Diolino ouvia o Juca que contava a história como se esta fosse a de um amigo e não a sua própria. Apesar de saber que ali estava talvez a única chance de resolver seus problemas e, de querer muito isso, muitas dúvidas ainda existiam e, por isso durante todo o tempo em que conversaram naquela noite, Juca procurou disfarçar a realidade. Depois de ouvir toda a história, sem nenhuma indagação o Sr Diolino convidou-o para dormir dizendo a seguinte frase: "vamos dormir e amanhã bem cedo eu darei a resposta para o seu problema". Ele se sentiu um pouco confuso e envergonhado ao perceber que mesmo sem ter dito que tratava-se de sua história o Sr Diolino já sabia de tudo. Durante a noite ele deitou em sua rede e ficou de orelhas em pé tentando ouvir o rufar dos tambores ou gritos desordenados porem, enquanto conseguiu ficar acordado, nenhum barulho foi ouvido, nenhum movimento estranho, apenas o silencio que acabou por ser seu aliado fazendo-o dormir. O dia amanheceu e enquanto o Sr Diolino tirava o leite de umas poucas vacas que tinha, Juca foi até o piquete para pegar seu cavalo e trazer para a porta afim de arria-lo para tão logo obtivesse as respostas que esperava se colocasse a caminho de volta. Ele ficou ali esperando enquanto o terreiro era arrumado e depois disso ao tomarem o café o Sr Diolino falou: seu caso é muito mais difícil do que parece pois, trata-se de trabalho feito no sentido de colocar a mãe da moça contra você. alguém de dentro de sua casa contratou um casal de velhos para fazer o trabalho. Trata-se de um casal cujo homem é muito doente e tem uma doença incurável que faz cair os dedos. Imediatamente Juca se lembrou do casal que havia visitado seus futuros sogros e desviou um pouco o pensamento lembrando que tratava-se de um casal de vizinhos de sua ex-sogra cujo homem era portador de lepra (Hanseníase). Sua atenção voltou novamente para o Sr Diolino que continuou: foi feito um trabalho com três espíritos, dois bancos e um preto, os dois brancos estão mais fáceis de ser convencidos mais o preto será mais difícil. A expressão "Dois brancos e um preto" não ficou clara se tratava de espirito de pessoas brancas e pretas, ou se era uma referencia a outro tipo de comparação comum na região ou no linguajar daquele cidadão. Depois de dizer isso perguntou: você quer mesmo continuar com este casamento? Você acha que compensa? A resposta dada ao Sr. Diolino foi a mesma que ele havia dado ao Sr. Fidencio pois ele continuava firme naquilo que queria. Depois de ouvir aquela resposta o homem continuou falando! você pode seguir com Deus o seu caminho de volta e aguarde pois, dentro de no máximo quinze dias seu futuro sogro vai te procurar e, uma solução será apresentada. Porem eu aviso, tanto ela pode ser no sentido de manter o casamento, como também pode acabar de uma vez com ele pondo fim nesta situação. Juca agradeceu e sem perguntar se lhe devia alguma coisa pois, pela tradição a pessoa que pratica esse tipo de serviço para o bem, se sente ofendida ao lhe ser oferecido qualquer tipo de pagamento, e montou em seu cavalo para começar sua viagem de volta. Ele já havia virado seu cavalo mas, foi interrompido pelo Sr Diolino que chamou sua atenção dizendo: tem mais uma coisa Juca. Seja qual for a solução, como conseqüência da teimosia de vocês dois, sua futura sogra passará exatos sete anos sem conversar com você, serão sete anos em que você não terá o direito de entrar naquela casa, sete anos isolado de todos que apesar de não terem nada contra você com certeza não iram desafiar a força que esta mulher possui! Mesmo assim você quer que eu continue? Ele parou para pensar e por alguns instantes seu olhar se perdeu na imensidão do cerrado verde fazendo com que em sua cabeça se formassem imagens que representavam aqueles sete anos vindouros. Ele olhou para aquele senhor e com muita firmeza novamente ele disse: sim eu quero! Ele cutucou seu cavalo com as esporas e colocou-se a caminho de volta. Durante a viagem muitos pensamentos passou pela sua cabeça, e as lembranças dos momentos bons e ruins retornaram de maneira bastante real e, em meio a tudo isto ele se lembrou do dia em que sua ex-sogra havia feito sua ultima investida no sentido de tira-lo da idéia de casar com Adalzira. Eles haviam conversado pela terceira ou Quarta vez e, já não tendo mais argumentos Juca disse para ela que não desistiria de sua idéia. Dª Benedita não querendo aceitar o fato lhe falou na ocasião que não aceitava aquele casamento e que faria de tudo para que ele não fosse feliz. Com a paciência esgotada e sabendo que aquela decisão pertencia apenas a ele próprio, virou as costa para ela, montou em seu cavalo e antes de ir embora desabafou dizendo: "Praga de urubu não pega em garça branca".
Esta e muitas outras lembranças fizeram com que tudo ficasse claro em sua cabeça. a insistência de sua ex-sogra, a visita do casal na casa de seus futuros sogros, o mesmo casal que aparecia na visão do Sr Diolino, a raiva repentina de Dª Leonora etc. tudo agora se encaixava e com muita clareza mostrava que ele estava certo em ser teimoso e insistir naquela idéia. Cada momento que passava naquela viagem ele se convencia mais e mais que seu amigo o Sr Fedencio tinha razão naquilo que havia pensado e que a solução para eles já não estava no diálogo e que aquela viagem realmente era necessária. Se por um lado ele se sentia aliviado e esperançoso, por outro ele tinha nova preocupação. Como seria conviver em uma família onde ele não poderia sequer chegar na casa? Como sua noiva reagiria àquela situação? Aquelas eram perguntas para as quais ele não tinha respostas mas, essas preocupações eram bem menores que a euforia pela possibilidade de se casar com a moça que ele havia escolhido e que ele acreditava cegamente que lhe faria muito feliz. Ao chegar de volta depois de dois dias de viagem, imediatamente ele contou para o amigo o que havia sido dito. O Sr Fidencio lhe disse que não duvidasse daquelas palavras, porque aquele homem, não tinha motivo nenhum para mentir. Por mais um ou dois dias ele ficou ali descansando mas, ele precisava voltar ao seu trabalho por isso agradeceu ao amigo por tudo e se dirigiu para Alto Araguaia onde ele havia pego uma empreita para construir uma ponte sobre o córrego Araras, não muito distante dali.
Atento ao seu trabalho o tempo parecia não passar porem, com muito custo os quinze dias previstos pelo Sr Diolino terminaram e, nada aconteceu. Ele trabalhava em sua empreita enquanto via passar o décimo sexto, o décimo oitavo, o décimo nono e, finalmente no vigésimo dia, quando ele já não acreditava em mais nada, chegou uma carta endereçada a ele e tendo como remetente o Sr Rodolfo. Ela trazia em seu texto apenas e tão somente a convocação para que ele estivesse no dia e no local ali marcados para que o tão sonhado casamento fosse realizado. O que parecia distante, já não era; as dificuldades impostas, já não existiam; o medo já não assustava; nada mais tinha muita importância pois tudo o que havia sobrevivido o era fato de mais dias ou menos dias eles estariam finalmente juntos e felizes. Assim eles pensavam. A carta mandada pelo Sr Rodolfo falava apenas que ele deveria estar em Alto Araguaia dentro de poucos dias para a realização do casamento mas, não trazia maiores informações de como este seria realizado. Naturalmente sem ter estas informações Juca acreditava que tudo havia sido resolvido e que seria realizada uma cerimonia de casamento sem pompas porem, com o testemunho dos familiares da moça. A ansiedade tomou conta de sua alma fazendo com que aqueles dias fossem difíceis de serem vividos e, quando finalmente chegou o dia, ele levantou ainda com escuro e acordou um de seus companheiros de trabalho para que este o acompanhasse até a cidade. Tudo correu normalmente no rancho onde os trabalhadores dormiam. A rotina de levantar muito cedo para pegar no serviço naquele dia não foi quebrada e tudo foi feito como de costume. Enquanto o mestre cuca preparava o café uns foram ate o córrego para lavar o rosto, outros fazia um bom cigarro de palha enquanto alguém enrolava a rede para amarra-la ao esteio. Juca e seu companheiro Júlio Martins, que era primo de sua falecida esposa, foram procurar seus cavalos que depois de encontrados, foram arreados da melhor forma possível. Aquele era um dia muito especial e, apesar da rotina no barraco ser mantida, em algumas coisas não seriam tratadas com a mesma simplicidade costumeira. Sendo assim ao arrear seus cavalos os dois tiveram a preocupação em faze-lo de tal maneira que ao chegarem na cidade fossem vistos como homens de boa aparência. O noivo recebeu os parabéns dos trabalhadores e os dois companheiros se colocaram a caminho da cidade. Depois de um bom dia de viagem a cavalo e de muita conversa entre os amigos, finalmente eles chegaram. Alto Araguaia naqueles tempos não passava de uma pequena vila que começava as margens do rio Araguaia e ia até a rua ( ) onde ficava o Hotel Vargas que pertencia ao Sr. João Porfirio e que era a única opção de hospedagem fora da casa de parentes. Bairros como o Boiadeiro, gatelândia (Laura de Vicunha) e Gabiróba eram chácaras ou fazendas e só viriam a se tronar bairros anos mais tarde. Para chegar na cidade era preciso descer uma ladeira grande onde hoje fica o Laura de Vicunha e depois de atravessar o córrego Boiadeiro no meio da subida do outro lado havia uma velha porteira que ao ser aberta ou fechada produzia um rangido que parecia o choro daqueles que perdem seu grande amor. Esse choro vinha acompanhado de um barulho provocado pela batida do batente no moerão e servia como uma espécie de aviso que servia como alerta para quem estava ate a quinhentos ou seiscentos metros dali. Esta era mais ou menos a distancia que Juca e Julio Martins se encontravam, após passarem pela porteira, quando ouviram novamente o choro e em seguida a batida. Numa reação quase que automática e sincronizada os dois pararam seus cavalos e se viraram afim de ver quem estava vindo logo atrás. Com certa facilidade verificaram que se tratava de um casal porem, somente depois de alguns instantes e que a proximidade mostrou que tratava-se do Sr. Rodolfo acompanhado apenas por sua filha Adalzira. Este fato causou uma certa estranheza que Juca fez questão de guardar para se. Com certeza ele esperava que acompanhando o casal estivesse também a Dª Leonora, e pelo menos mais um ou dois de seus filhos. Ele esperou a aproximação do casal e como se estivesse ciente de tudo e depois de cumprimenta-los os quatro seguiram montados em seus cavalos em direção a vila. O clima era amistoso mas, não deixou de existir um certo constrangimento de ambas as partes depois que o Sr Rodolfo explicou o porque da ausência de sua esposa. A raiva que Dª Leonora sentia de Juca era tão grande que fez com que ela não só deixasse de assistir o casamento, como também não permitisse que o Sr Rodolfo ajudasse na compra do enxoval para sua própria filha. Sendo assim a ida dele a vila era somente para levar Adalzira e entregar a uma prima sua chamada Nica para que esta cuidasse da moça até o casamento ser realizado. Não se sabe ao certo se, por decisão própria ou se influenciado pela atitude do Sr Fidencio que ofereceu para pagar a festa e todas as despesas do casamento, antes de retornar para casa o Sr Rodolfo fez o seguinte trajeto: Deixou a filha na casa de sua prima e foi até a igreja, deu os nomes dos noivos e pagou a igreja; foi até o cartório e fez o mesmo; e repetiu o gesto indo até o Hotel Vargas e deixando pago três diárias em nome do casal. Feito isto retornou a casa de Dª Nica para informar sobre estas atitudes e ainda deixou uma boa quantia em dinheiro com sua filha. Não era só o Sr Fidencio que não aprovava as atitudes de Dª Leonora. Isto ficou visível quando o Sr. Rodolfo explicou que não ficaria para assistir o casamento para evitar confusão com sua esposa. Esta atitude de Dª Leonora com certeza não tinha a aprovação de várias pessoas e, isso poderia ate ser motivo para que o casal numa atitude de vingança, aceitassem a proposta do Sr. Fidencio porem, Adalzira recusou terminantemente por acreditar que aceitando esta oferta, ela estaria desonrando seus pais. Apesar de terem ficado tristes pela situação que estava criada o casal aceitou com certa naturalidade já que, tudo isso havia sido previsto pela visão do Sr Diolino. Como o casamento foi marcado para três ou quatro dias depois ainda houve tempo para que os noivos arrumassem os padrinhos e convidassem verbalmente alguns amigos. Foi neste clima de abandono e sem o apoio da família, tão necessário a um casal que está iniciando uma vida a dois mas, com a presença de alguns amigos e principalmente, com a sensação de que haviam vencido uma guerra, que no dia 10 de Fevereiro do ano de um mil novecentos e cinqüenta e um , casaram-se José Rodrigues da Silva (Juca) e Adalzira Severina de Mendonça.






Terceira Parte

Durante a viagem de Cuiabá a Alto Araguaia não houve nada extraordinário , paramos por uma ou duas vezes para esticar as pernas e lá pelas dez horas da manha, entramos na cidade. Foram dezenas as vezes em que eu havia feito aquela viagem e a entrada na cidade seguia sempre um roteiro mas, desta vez tudo parecia diferente. A impressão que eu tinha é que a cidade que amo e onde passei uma infância feliz tomando banho no boiadeiro, comendo frutas no quintal de meus pais e de meus avós, descendo o rio Araguaia de bóia, agora não passava de uma cidadezinha sem graça e maldosa. Naquele dia com certeza eu culpei Alto Araguaia por ter me levado alguém tão especial. Ao passarmos pela ponte do boiadeiro, ao contrario das outras vezes, não fiquei ansioso olhando para a chácara do vovó para ver quem estaria na porta, também não dei importância para a condição em que o boiadeiro se encontrava, não olhei para a casa do Sr. Antoizin Faria que servia como marco de alerta para a curva forte da avenida enfim, nada do que eu sempre fiz, foi importante naquele dia. Seguimos direto para a casa de minha mãe e fomos recebidos por ela e por minha irmã Solimar. Ao nos cumprimentarmos notei nos olhos de minha mãe algum resquício de choro que nesta hora me pareceu ser uma espécie de pedido de desculpas. Neste dia pela primeira vez, não senti alegria em entrar na casa em que fui criado. Ficamos por ali esperando a chegada de meus irmãos Adilson e Suely que haviam saído para dar encaminhamento nas questões burocráticas referentes ao enterro. A presença de minha mãe me fez lembrar do inicio da história do casal que, após a realização do casamento, ficou por insistência de Dª Nica, morando em sua casa por um bom tempo. Juca terminou a ponte do araras e continuou na rotina das empreitas que pegava de fazenda em fazenda, enquanto que Adalzira ficava esperando por ele em meio aos afazeres de casa. Trinta dias após o casamento o casal recebeu uma carta do Sr Rodolfo pedindo a presença deles na fazenda afim de receberem o gado que pertencia a Adalzira. Assim que retornou do serviço no final de semana e recebeu esta notícia os dois providenciaram a ida. Durante a viagem em direção a fazenda Juca estava muito preocupado por não saber como agir naquela situação. Como ele faria para ir buscar o gado já que ele se sentia envergonhado por tudo que havia sido dito e por tudo que havia sido deixado de fazer. Na conversa entre os dois surge então a idéia de ir até a casa do vizinho mais próximo e pedir a ele que acompanhasse Adalzira até a casa de seus pais. Assim eles fizeram e, ao chegarem na casa do Sr Lázaro Sebastião, conhecido por lazo bastião, Juca explicou o que estava acontecendo e pediu que ele fizesse este favor. Ele atendeu prontamente mas, naquele dia uma Segunda feira, o Sr Lázaro tinha como tarefa carrear uma viagem de milho e outra de mandioca da roça para sua casa. Naturalmente Juca se sentiu constrangido por estar incomodando aquele senhor e, para que a situação ficasse boa para ambas as partes foi feito uma troca de serviços. Enquanto o Sr Lázaro ia ate a casa do Sr Rodolfo acompanhando Adalzira para trazer o gado, Juca iria ate a roça puxar e guardar os mantimentos em seus lugares devido. Já estava quase no fim do dia e Juca a muito tempo havia cumprido sua tarefa quando o Sr Lázaro retornou. Ao avista-lo vindo em direção a casa Juca achou estranho e ficou todo preocupado com a ausência da esposa e mil coisas passaram por sua cabeça ao tentar imaginar o que teria acontecido. Ele veio só e trouxe um recado de que Adalzira iria dormir na casa de seus pais e que o Sr Rodolfo havia solicitado que ele fosse até a casa para receber o gado pessoalmente. Aquele convite poderia muito bem significar que havia uma chance de que com alguma insistência, logo logo ele poderia estar freqüentando a casa de seus sogros, mas talvez por vergonha ou por estar totalmente convencido que a previsão do Sr Diolino estava correta, ele não percebeu este fato e não atendeu ao chamado. No outro dia cedo ele saiu em companhia do Sr Lázaro e foram ate a casa de seus sogros mas, ficou aguardando a uma distancia em que 'já conseguia enxergar a casa da fazenda. Depois de pegarem o gado eles o levaram para a fazenda do Sr Lázaro para que ali ele fosse marcado antes de ser levado para a envernada onde se encontrava o gado de Juca. A vida continuou correndo normalmente, Juca trabalhava bastante e conseguia melhorar seu patrimônio financeiro e, quanto a Adalzira era uma ótima companheira e os dois tinham o apoio de Dª Nica que ao saber da gravidez do primeiro filho do casal, agiu como uma verdadeira mãe e exigiu do casal que eles continuassem morando em sua casa para que ela pudesse ajudar ainda mais. Para quem havia se casado dentro de um ambiente absolutamente desfavorável como aconteceu com eles, os primeiros meses da vida de casados estava indo muito bem. Eles viviam aparentemente em armonia mas, não se sabe se em conseqüência daquele ambiente desfavorável ou da falta de dialogo nas relações amorosas daquela época, o casal não havia conversado sobre seus sonhos para o futuro. Sendo assim nenhum, nem outro sabia exatamente aquilo que o outro queria. Este fator passou desapercebido durante algum tempo porem, este mesmo tempo permitiu a convivência e com esta surge a primeira e grande discordância entre eles. De um lado Juca que se casara com a filha de um fazendeiro, acreditava que aquele era o momento certo de iniciar uma boa criação pois, juntando suas sessenta cabeças de gado com as vinte e oito de sua esposa, era mais do que suficiente para eles terem um bom começo porem, do outro lado Adalzira estava cansada da vida de trabalhos pesados e mau remunerados da fazenda de seus pais. Alem do desejo de sair daquele tipo de trabalho, ela tinha como objetivo maior, dar a chance para que seus filhos pudessem estudar. Sendo assim, era obvio que ela não haveria de gostar das idéias do marido pois, se ela o acompanhasse, teria que desistir de tudo aquilo que sonhou. Ali estava formado um problema grande o suficiente para que os dois tivessem muito assunto para conversar e muito trabalho para resolver. Com certeza esta é uma daquelas situações em que, ou um ou outro sairia magoado, e neste caso somente o tempo seria capaz de dizer quem suportaria a maior carga. E ele, o tempo, foi passando e trazendo as oportunidades para o casal mas, neste caso ele, o tempo acabou por ser dispensado de tal tarefa pois, como Adalzira não aceitava as propostas que foram surgindo, automaticamente ele, o Juca, se magoava. O tempo, aquele mesmo tempo, passou e eles agora já tinham dois filhos, dois garotos, Valdir e Adilson e, Adalzira já estava gravida pela terceira vez. Se por um lado as coisas estavam pesadas e, ele continuava sonhando com algo que agora ele mesmo não acreditava que iria acontecer, por outro ele estava muito feliz pois, pelo ao contrario do que acontecera no primeiro casamento, neste nasciam filhos sempre muito fortes e saldáveis. Exceto o quarto filho que nasceria com jeito de calango e não os deixaria dormir nem uma noite sequer até que ele completasse seis meses de idade. Eles continuavam morando na cidade e este fato era extremamente prejudicial para ele porque a profissão de carpinteiro que, no passado havia lhe dado um bom crescimento financeiro, devido aos trabalhos em fazendas, agora mal pagava as despesas, que cresciam fazendo com que para sobreviver, tivessem que vender parte do gado que possuíam. Os conflitos surgidos entre o casal continuava e, cada qual tentava buscar saídas para que as coisas se resolvessem a sua maneira. Juca trabalhava se revezando entre empreitas nas fazendas e na cidade sempre na tentativa de achar uma solução que lhe trouxesse alem de tranqüilidade também a preservação de seu pequeno patrimônio. Todos esses fatores aliados a outros que não vem ao caso, vieram contribuir para justificar os acontecimentos seguintes. Em 1955 depois de várias propostas de trabalho e de negócios que Juca considerava de grande valor mas, que não foram aceitos, surge o Sr Sebastião Ferreira, padrinho do primeiro filho do casal. Sorrateiramente ele se aproxima e faz uma proposta no sentido de que ele e Juca abrissem em sociedade uma loja de tecidos e calçados na cidade. Juca era conciente de que não tinha capital para investir e, sendo assim procurou dispensar seu compadre que insistiu dizendo para que ele vendesse seu gado afim de aplicar naquele negócio que em pouco tempo ele teria dinheiro o bastante não só para comprar outro gado mas, também para comprar as terras que ele sempre sonhou. Ao ouvir a proposta Juca ficou preocupado pois, o que seu compadre estava propondo era que ele vendesse tudo aquilo que ele juntou durante muito tempo com o suor de seu próprio rosto, para investir em algo que ele não conhecia. Apesar de não sentir nenhuma vontade de realizar aquele negócio, ele prometeu ao compadre que iria pensar. Ao chegar em casa naquele dia e comentar com sua esposa, esta achou que o negócio poderia ser realmente uma grande oportunidade e, vendo nisso a oportunidade da família ficar definitivamente na cidade, procurou incentiva-lo. Depois de muita conversa e de Juca resistir o quanto pode, ele acabou por concordar e assim acreditando que faria um bom negócio, vendeu o resto de seu gado para fazer o tal investimento. O acordo firmado entre os dois rezava que enquanto o Sr Sebastião Ferreira ia até São Paulo para buscar mercadorias, Juca ficaria em Alto Araguaia coordenando a construção de um cômodo onde funcionaria a loja. O tal sócio saiu em viagem para cumprir o combinado e quatro dias depois, seu compadre retornou dizendo que não havia ido a São Paulo e que não comprou as mercadorias porque ouviu um boato de que dentro de poucos dias haveria uma baixa nos preços e que portanto ele esperaria para que pudessem comprar muito mais mercadorias com o mesmo dinheiro. Juca ficou preocupado pois, de certa forma ele sabia que aquilo não estava cheirando bem porem, resolveu aguardar para ver o que ia acontecer. A final de contas, ele estava tratando com alguém a quem ele havia escolhido para ser seu compadre e, pelas regras da moral e da boa educação da época, no mínimo teria que haver sinceridade entre eles. Pensar assim foi um erro lamentável porque dias depois a verdade apareceu. Seu "compadre" havia investido todo o dinheiro na compra de uma serraria que montou em sua própria fazenda. Neste dia ele viu seu sonho cair por terra e, tudo aquilo que ele imaginava para o futuro, agora estava absolutamente distante e de certa forma inalcançável . futuro ele praticamente não tinha e o presente era apenas a casa onde morava, a mulher, três filhos, seus braços fortes e sua fé, em Deus e na vida.
Alguns anos se passaram e Juca continuava sua luta pela sobreviver. Sem ter muito o que fazer na cidade, ele se viu obrigado a tocar roça a meia nas terras de seu sogro na tentativa de melhorar sua renda e começar novamente a formação do patrimônio que havia perdido. Lembram-se daquele "compadre". Pois é, o homem por quem meu pai um dia teve tanta consideração a ponto de lhe dar um filho para batizar, nunca lhe deu nenhuma satisfação e muito menos algum pagamento pelo dinheiro que apossou indevidamente. Viver trabalhando e dependendo da chamada roça de subsistência, com certeza não é a melhor forma de se ganhar dinheiro hoje em dia, mas naquela época e, principalmente para quem não tinha estudo, esta se tornava a melhor ou até a única opção. A roça tocada a meia apesar de um pouco injusta pois, aquele que planta, carpe, e tem todos os cuidados necessários para que a planta cresça e produza, ao final tem que dividir sua colheita com o proprietário da terra, é sem dúvida fruto de um acordo que proporciona ao sem terra poder trabalhar e produzir. Em Janeiro de um mil novecentos e cinqüenta e três o Sr Rodolfo já havia se mudado com sua família para uma chácara muito próxima de Alto Araguaia e, depois que Juca sofreu este golpe do maldito compadre, se por um lado ele enfrentou uma barra pesada se desdobrando para conseguir manter suas despesas, por outro lado este período lhe trouxe alguma satisfação. O fato de estar tocando roça a meia na fazenda do Sr. Rodolfo acabou por leva-lo a se tornar por necessidade, e por um bom tempo o carreiro de seu sogro e, foi justamente realizando o trabalho de carreiro que durante este tempo ele conciliou o trabalho e algum prazer. Amante que era de um bom conjunto de carro e bois, ele tanto conseguia viajar dentro da melodia produzida pelo atrito do eixo no chumaço e nos dois cocão do carro, como também ficar arrepiado ao presenciar certas atitudes vindas de uma ou de outra boa junta de bois. Mesmo com o passar do anos ele nunca se esqueceu dos nomes de cada uma das peças que fazem parte de um carro de bois bem como da arreata utilizada para ligar as juntas. Assim elas são distribuídas e chamadas:
Lembro-me de vê-lo contar de certa vez em que ele foi buscar uma carga de arroz em uma fazenda vizinha. O local era um baixadão e, para se chegar até o rancho onde o arroz estava estocado precisava descer uma forte ladeira. Ele desceu e ao chegar no rancho rabiou o carro deixando-o de frente para a subida. Ele e os outros homens ali presentes começaram a carregar o carro a mais rápido possível pois, estava quase escurecendo e fazia um certo jeito de chuva . O carro foi carregado com sua capacidade total e quando ele já se preparava para ir embora o fazendeiro lhe chamou e pediu que ele colocasse mais catorze sacas de arroz no carro para levar até sua casa que ficava a mais ou menos dois quilômetros dali na beira do caminho em que ele iria passar. Ele não aceitou o pedido porque sabia que o carro já estava com sua carga completa mas, o fazendeiro insistiu muito usando todo tipo de argumentos possíveis até que, sem ter mais como dizer não ele concordou em fazer aquele favor. Começava ali a construção de um dos fatos que mais tarde lhe deixaria arrepiado ao contar. "Logo que nós começamos a colocar mais sacas de arroz no carro, os dois bois de guia que atendiam pêlos nomes de Riacho e Rialeicho começaram a fazer um movimento estranho e que parecia um alerta. esturrando como se tivesse pedindo socorro, cavacavam o chão com os cascos e com os joelhos jogando a terra pra traz . Pensei no que estava fazendo e sabia que era errado mas, agora já não podia voltar atrás porque já havia dado minha palavra. Desci de cima do carro e ao observar a atitude daqueles bois, por alguns instantes tive a impressão de que tudo e todos a minha volta haviam sumido, ficando apenas o carro e os bois. Naquele silencio repentino veio em minha mente dois pequenos relâmpagos e neles pude ver as cenas do que estava para acontecer. No primeiro senti o quanto era grande o esforço que aqueles bois teriam que fazer para subir e, tive a impressão de ver canzil quebrando, ajojo arrebentando, boi sendo arrastado... o segundo relâmpago me trouxe a visão de uma caminhada tranqüila que terminava com os homens descarregando o carro. Acreditando que aquilo não tinha importância diante da fé em Deus, peguei a vara de ferrão, andei em voltado carro, tomei minha posição, fiz o sinal da cruz e gritei... Eeeeeiio... Segura Riacho... Firma Rialeicho... novamente me sentindo sozinho pude ver que não só os bois de guia mas toda a boiada, sem exceção, furou o chão ora com os cascos e ora com os joelhos, num esforço coletivo poucas vezes visto e, após um ou dois minutos de esforço em que quase se arrebentaram por completo, os bois arrastaram o carro até o alto da ladeira". Nesta parte ele fez uma pausa e notei que seu olho brilhou dando inicio a formação de uma lagrima que não chegou a rolar interrompida quando ele completou. " Naquele dia eu tive a certeza de que aquela boiada realmente tinham alma. A mesma alma cabocla, forte e responsável que ela herdou de seu dono ao longo dos anos". Várias foram as vezes em que ele elogiava seu sogro e, fui testemunha em muitas ocasiões, do respeito que ele tinha pelo Sr Rodolfo. Ouvi ele contar orgulhoso que meu avo era o melhor carpinteiro que ele havia conhecido, capaz de fazer uma caixa de madeira com as juntas entre as tábuas tão perfeitas, que ele próprio dizia que podia colocar água dentro dela e se a água vazasse, ele não cobrava o serviço. Que fazia uma porteira ou um carro-de-bois e que se esses fossem desmanchados depois de vinte ou trinta anos a madeira de dentro dos encaixes continuavam novas como no dia que foram cortadas. Que tratava-se de um homem tão sistemático que não aceitava em sua traia de carro de boi, sequer um canzil feito por outra pessoa. Que conhecia seu carro só de ouvir a sua cantiga e que era caprichoso a ponto de exigir que seus bois de carro fossem todos amarelos e com os nomes assim colocados: Rialecho e Riacho; Riune e Rolante; Recortado e Ritinto; Rojão e Rondão; Retrato e Reservado; Recreio e Restaurante e Respeitado e Rompante, todos começando com a letra R de Rodolfo . As emoções vividas ao lado daquela boiada foram muitas, e as vezes cheias de perigos como era o caso da descida do Ribeirão Claro, um rio de barrancas altas e que fica na antiga estrada que dava acesso à Barra do Garças. Para realizar tal façanha ao chegar no inicio da descida o carreiro tinha que parar o carro e coloca-lo na espera, desatrelar os bois, ir até o mato, cortar com um machado uma arvore de bom tamanho, amarra-la atras dos bois e arrasta-la até o carro para que ela fosse amarrada na traseira do mesmo para agir como reforço no freio. Feito isto atrelava-se os bois no carro novamente e só então e com muita calma iniciava-se a descida. Quando se chegava no final da descida, enquanto os bois descansavam, o carreiro picava toda a arvore em pedaços que ele podia carregar para que a mesma fosse retirada do caminho e não servisse de atrapalho para outros carreiros que viessem depois. Chegar no fim da descida ainda não era o fim das dificuldades pois, todo aquele que desce tem que subir e, como o solo da beira deste ribeirão é formado por uma piçarra resistente, a estrada carreira passou com o tempo a ser formada por degraus que eram verdadeiras armadilhas na arte de quebrar as rodas ou o eixo de um carro-de-bois. Este fato exigia do carreiro perícia e paciência para fazer com que o carro parasse com as rodas próximas aos degraus e os subissem, um a um, bem devagar. Este processo de trabalho com o carro-de-bois durou alguns anos e momentos como a descida do Ribeirão Claro, sempre eram acompanhados pelo Sr. Rodolfo que nesta época já estava morando em Alto Araguaia numa chácara que havia comprado e, em apenas uma vez, durante os muitos meses em que carreou para meu avo, meu pai fez essa descida sozinho. Neste dia quando o carro de bois chegou a uma distancia aproximada de quatro ou cinco quilômetros da chácara, o Sr Rodolfo virou-se para sua esposa e disse não saber o que havia acontecido para que seu carro estivesse vindo na Quinta feira e não na Sexta como havia sido combinado. Dª Leonora querendo tranqüiliza-lo, disse que podia não ser o seu carro, e ele sem nenhum medo de errar retrucou: É o meu carro! Eu conheço o canto dele!
Sempre que Juca chegava de uma viagem, ao passar na porta em direção do galpão para descangar os bois, o Sr. Rodolfo saia na porta da casa e ficava observando tudo e, caso houvesse um canzil quebrado ou um ajojo arrebentado, ele pegava uma das peças em seu estoque e que eram feitas por ele mesmo, escondia atras das costas e, conversando como quem não queria nada, fazia a substituição da mesma. Durante os anos em que Juca trabalhou como carreiro para seu sogro, os dois mantiveram sempre uma boa relação mas, isso não modificava sua rotina de chegar da fazenda, descarregar o carro, descangar os bois e ir embora para a sua casa sem por os pés dentro da casa de seus sogros. Mesmo quando ele aproveitava a viagem, para trazer da fazenda as frutas que a chácara ainda não produzia, ele as levava até a porta da casa porem, deixava que seu sogro ou algum de seus cunhados as levassem para dentro.
Muitos anos já haviam se passado e o casal vivia uma vida bastante harmoniosa apesar das dificuldades financeiras e das diferenças na forma de pensar. Adalzira que era mulher trabalhadeira sempre fazia sua parte cuidando da casa e dos três filhos mas, continuava firme em sua idéia de manter a família na cidade. Sua experiência de trabalho na casa de seus pais, lhe havia mostrado que se ela quisesse dar uma chance a seus filhos de ter uma vida um pouco melhor que a sua, o correto era, na hora certa, coloca-los em uma boa escola. Sem que eles percebessem essa hora chegou, e apesar das dificuldades os dois filhos mais velhos foram matriculados no Grupo Escolar da Cidade e mais tarde no Colégio Padre Carletti, um colégio administrado pêlos Padres Salesianos. Sabedores das dificuldades financeiras do casal, os Padre que administravam o colégio sempre eram compreensivos a ponto de esperarem até um semestre inteiro, incluindo ai a matricula, para só então receberem as mensalidades. Desta forma com a ajuda destes compreensivos Padres, Juca conseguiu dar o primeiro grau completo aos três filhos que tinham e também aos outros dois que ainda teriam.
O ano era 1958 e ele já estava a três anos na luta com as roças na fazenda. As dificuldades eram tantas que, muitas das coisas que haviam sido ditas já nem eram lembradas e, outras como era o caso da antipatia que Dª Leonora sentia por ele, havia marcado de tal forma, que depois de tantos anos vivendo como se fosse um leproso que na época de Cristo era isolado de tudo e de todos que amavam, em sua cabeça não havia mais a idéia de ser parte daquela família. Sendo assim ele havia se acostumado a não ser convidado para nenhuma festa ou reunião que ali fossem promovidas e, por isso mesmo e que foi uma imensa surpresa para ele os acontecimentos que seguiram. Era dia de festa e a família estava comemorando com um almoço, o aniversário de Dª Leonora. Como Juca havia chegado na Sexta feira à tarde de mais uma de suas viagens e, como sempre fazia, após descangar os bois e guardar a traia foi para sua casa. Neste dia porem, como era um sábado e não haveria trabalho e, como também não seria convidado para mais uma festa na família, ele tomou um bom banho e, aproveitando que sua esposa estava na casa de seus pais, foi até o bulicho mais próximo para tomar uma pinga antes de voltar para casa e comer a comida que sua esposa já havia deixado feita antes de sair. Ao chegar no bulicho, encontrou alguns companheiros, e como era de costume, eles sempre jogavam conversa fora em longos e bons papos. Conversa vai, conversa vem, toma-se uma pinga, depois outra e em meio a um desses papos bem animados é que chegou um de seus cunhados, que ainda era criança, dizendo que sua mãe Dª Leonora, havia lhe mandado ali para chama-lo para ir almoçar na casa dela. Juca ouviu o recado e deixou que o garoto fosse embora e, sem dar a menor importância, continuou tomando sua pinga. O menino foi embora rápido e ele ficou no mesmo lugar fazendo exatamente aquilo que fazia porem, apesar de seu esforço no sentido de esquecer, aquele assunto não saiu mais de sua cabeça. Ao mesmo tempo que batia papo com seus conhecidos, a lembrança daquele menino vindo ao seu encontro insistia em não lhe deixar e ele pensava que motivos aquele garoto para fazer aquilo. Naquela época não era comum garotos daquela idade mentir porem, aquela era uma história sem pé e nem cabeça. Ele pensou muito mas, convencido de que tratava apenas de uma malinagem do garoto ele já se preparava para ir embora, quando de repente, pela porta do bulicho entra a figura esguia e marcante do Sr Rodolfo que após breve cumprimento aos presentes, fez novamente o convite e confirmou que este, havia partido de sua esposa. Ele se sentiu meio atordoado e sem ação mas, teve que ser firme já que seu sogro permaneceu ali até conseguir a confirmação de que ele iria para o almoço. O Sr Rodolfo voltou em seguida para a chácara enquanto que Juca ficou perdido sem saber o que fazer com aquela situação já que, naquela altura dos acontecimentos, para ele já não fazia muita diferença, ser ou não, recebido dentro daquela casa. Ele saiu do bulicho e, a medida que se aproximava de sua casa, tomava consciência do momento e gradativamente foi crescendo nele uma boa dose de ansiedade. Ele pensava, como deveria se comportar? o que devia dizer? como as pessoas iriam olhar para ele? Sem saber as respostas para tantas perguntas, e em meio a tantos pensamentos ele se lembrou que a tal festa era para comemorar o aniversário de Dª Leonora e resolveu ir até a loja do turco Jamal para comprar um presente. Ele entrou na CASA JAMAL que foi durante muitos anos, a maior referencia em calçados e tecidos para confecção, e ao conversar com o proprietário e dizer para quem era o presente, este lhe informou que a dois ou três dias passados, Dª Leonora havia estado na loja e gostou muito de um determinado tecido. Juca mandou tirar um corte de vestido daquele tecido e, após pagar por ele, saiu em direção da chácara de seus sogros. Ele estava um tanto confuso e, tantos pensamentos vieram em sua cabeça e, entre eles as imagens de sete anos atras quando o Sr Diolino havia feito aquelas previsões. Naquele dia ele pode constatar que tudo que aquele homem havia dito era a mais pura verdade e, que ele estava terminando de pagar a divida que contraiu ao ter desafiado a vontade de duas mulheres muito fortes e determinadas, a Dª Benedita e a Dª Leonora, sua ex e sua atual sogra respectivamente. Sete anos havia se passado e ele pensou! Quantas coisas deixaram de ser feitas? Quanta falta lhe faria a ausência desta relação entre eles? Como teria sido se eles tivessem vivido em harmonia durante este sete anos? Havia muitas perguntas e nenhuma resposta porem, uma coisa ele sabia ! eles jamais teriam a chance de recuperar as coisas que haviam sido perdidas, sejam elas boas ou ruins e assim ele pode comprovar mais uma vez que os senhores tempo e destino, são absolutos e implacáveis com quem os desafia. Enquanto caminhava ele chegou a esta conclusão mas, não deixou de se preocupar pois, ele ainda não sabia como seria aquele encontro depois de sete anos e, ao chegar na chácara, Juca foi recebido como qualquer outro convidado. Dª Leonora o cumprimentou, recebeu e agradeceu o presente e, procurou deixa-lo a vontade. Daquele dia em diante ela passou a ser tratado como se nada tivesse acontecido durante aqueles sete anos em que, um não existia para o outro. Era como se uma borracha tivesse apagado todo o passado para os dois e se nunca tivesse havido nenhuma contrariação entre eles.
Neste momento meus irmãos Adilson e Suely já haviam voltado da rua e finalmente estávamos os cinco na casa onde fomos criados e onde passamos por tantos momentos bons em nossas infância e adolescência. Eles entraram em casa e nós nos cumprimentamos com uma mistura de tristeza pelo acontecido e alegria por estarmos nos revendo depois de quase dois anos. Ficamos conversando um pouco mas, naquele dia parece que nenhuma conversa tinha valor e, talvez por isso não me lembro qual era o assunto porem, lembro que acabei me perdendo dentro da tristeza que sentia e, numa breve análise conclui que talvez a situação tenha sido resolvida apenas para Juca e Dª Leonora, porque a relação com outras pessoas continuava da mesma forma e tudo aquilo que havia sido feito e dito não havia deixado de existir. O fim dos problemas com a Dª Leonora lhe trouxe um grande alivio e o deixou mais tranqüilo para tentar ser feliz com sua esposa mas, existia ainda muita vida para viver e, isso naturalmente significa muitos momentos que podem ser bons ou ruins. Depois desse período em que ele tocou roças a meia com o Sr. Rodolfo, a vida continuou e as dificuldade aumentavam cada vez mais. Eles agora já tinham cinco filhos no total pois, já havia nascido o garoto Ilto e a caçula Solimar alem é claro da filha mais velha, nascida do primeiro casamento e que vivia com sua avó. Aliás quando lembrei do fim de uns problemas e da possibilidade de vir outros, era exatamente da relação dele com sua ex-sogra que me lembrava. Por uma ou duas vezes o casal tentou trazer sua filha Fia como a chamamos, para morar com eles porem, todas as tentativas foram frustradas e a relação com a ex-sogra e com a própria filha foi ficando cada vez mais longe. Se isto não bastasse havia ainda a história da insatisfação de Dª Benedita sua ex-sogra, quanto ao fato de Juca ter se recusado a casar com sua sobrinha o que fez com que ele chegasse ao extremo de dizer a ela que "Praga de urubu não pega em garça branca" logo após ouvir dela que caso ele se casasse com Adalzira, eles jamais haveriam de serem felizes e, que suas vidas seria um verdadeiro inferno. Apesar das evidencias, ele se recusava a acreditar que tal fato já estava acontecendo e, em sua cabeça ele sabia que nunca poderia admitir isto, sob pena de ficar sem nenhum horizonte para seguir já que, tudo aquilo que ele havia construído ao longo dos anos, ele perdeu no negócio com seu compadre trapaceiro. Pensando assim ele se mantinha como podia trabalhando pra aqui pra ali e pegando as mais diversas empreitas. Ele montou fazenda para o Sr. Clarimundo, plantou mudas de bambu e capim napie na beira da BR ao lado da fazenda do Sr. Onecidio, construiu vária casas na cidade, fez vária pontes de madeira no Estado em fim, ele lutou com toda a força que ainda lhe restava e, com todas as dificuldades conseguiu dar saúde, vestuário, um teto para a família e principalmente, como ele mesmo dizia, um alicerce para os filhos através dos estudos até a oitava série. Toda aquela situação era muito difícil mas, ele conseguia manter vivo dentro de se, o velho desejo de um dia se tornar um fazendeiro, sonho que ele alimentou desde rapaz e que foi frustrado na primeira oportunidade pela morte de sua primeira esposa e que agora, ele via escorregar por entre os dedos, nas várias vezes tentou sem sucesso, convencer sua esposa a acompanha-lo para viver em uma fazenda que certamente ele ainda tinha forças para montar. Talvez tenha sido o velho desejo de se tornar um fazendeiro e ter uma condição financeira que lhe permitisse dar a família o conforto que ele não teve, é que tenha lhe dado tanta força para se levantar após cada tombo que o destino lhe proporcionava. Quantas e quantas foram as vezes que pude vê-lo todo animado fazendo planos para o futuro, encaminhando algum negócio que ele julgava ser de importância para a realização de seu sonho e, a seguir sempre vinha algo do tipo doença na família ou, alguém que acabava por faze-lo desistir. Várias e várias foram as vezes que presenciei este fato porem, várias e várias também foram as vezes em que o vi começar novamente e, é por isso que pego emprestada de dois grandes compositores (Enrique Urquijo Prieto e Cláudio Rabello) a frase "Um campeão se mostra na derrota, na força pra lutar quando já cansou" na maioria das vezes é assim que me lembro dele, como o campeão que em cada uma das vezes que foi derrubado, ressurgiu das cinzas para continuar lutando. Apesar da sua força interior e do campeão que tinha dentro dele, existe um ditado popular que diz que: A água é mole a pedra é dura mas, tanto bate até que fura. Por mais que ele quisesse manter-se numa determinada direção e tentar construir seu sonho, as inúmeras tentativas frustradas acabaram por se tornarem pesadas demais até mesmo para ele e, depois de tantos anos brigando contra tudo e contra todos, gradativamente ele começou a se sentir cansado e sem animo para continuar. Triste com aquela situação e sem vontade de ficar brigando o tempo todo, ele passou a cada vez mais buscar trabalhos longe de casa numa tentativa de resolver sozinho os seus problemas. Foi nesta época que por informações de pessoas conhecidas reapareceu em sua vida aquele antigo amigo Agrimensor o Sr. Samita Vilela que veio lhe trazer uma proposta de realização de um trabalho de grande porte para o qual exigia-se experiência e principalmente coragem para enfrenta-lo. Tratava-se da medição de umas terras pertencentes a fazenda Ariranha, famosa pelo numero imenso de mortes que havia em função das disputas pela posse da mesma. A fazenda tinha muitas mil hectares de terra e aqueles que eram donos estavam dividindo-a para separar a parte que já estava com posseiros do restante e devido as brigas por disputa da mesma, ninguém queria realizar o tal serviço. Esta fazenda fica localizada próxima da serra preta, que hoje pertence a parte desmembrada do município de Alto Araguaia para a formação do município de Alto Taquari. Ela foi palco de altas barbaridades de ambas as partes, na luta entre aqueles que se julgavam donos e aqueles que queriam a todo custo serem os donos. Eu estava um tanto perdido em meus pensamentos e em minha tristeza e nem percebi que já era hora de sairmos para ir até a casa de meu pai onde o corpo dele estava sendo velado. Saímos os cinco irmãos acompanhados de nossa mãe e fomos nos juntar à Fia, nossa irmã mais velha e que era fruto do primeiro casamento e que já estava nos esperando no velório. Ao chegarmos foi impossivel segurar a angustia e o momento ficou com um misto de tristeza e desespero alem é claro de trazer consigo a confirmação definitiva de tudo o que eu não queria acreditar. Encontrei minha irmã Fia e seus dois filhos Zaide e Zoraide alem de muitas outras pessoas como a Tia Francisca, Tia Maria, Tio Nenem, Tio Dorvalino e muitos amigos e conhecidos. Eu entrei na casa e passei pela sala onde ele estava sendo velado mas, sem ter coragem de olhar para o corpo, vi apenas um caixão como outro qualquer e, em seguida fui para debaixo de uma mangueira usufruir de sua sombra. Não demorou muito e me sentindo bastante perdido, meus olhos correram ao redor na tentativa de conhecer o espaço já que nós, os filhos, ainda não conhecíamos a casa onde meu pai morava nos últimos seis ou sete meses. Meus olhos correram ao redor e fatalmente fixaram a parte alta da cidade onde ficava a saída para a Ronda, uma fazenda que meu avo possuía e onde na minha infância por várias e várias vezes, eu o ajudei a levar e trazer seu gado durante o período da seca. Por um instante foi sublime relembrar de algo que fez parte de minha vida e que até aquele momento estava perdido em minha mente. A saída para a Ronda era próxima da saída para a ariranha e isso fatalmente reavivou em minha cabeça a empreita que ele havia pego no passado. Ele aceitou o desafio de medir aquelas terras tão cheias de sangue derramado em sua disputa e, durante quarenta dias conviveu tanto com os perigos proporcionados pêlos encontros com os posseiros, como também com as dificuldade oferecidas pala região. O local era isolado e cheio de abelhas e mosquitos de toda natureza, o que fazia com que eles só conseguissem fazer suas refeições, após acenderem um fogo e fazerem bastante fumaça para espantar os insetos. Este havia sido um grande desafio e, ao terminar o trabalho e acertar as contas com seu empreiteiro o Sr Samita, este ofereceu um desafio ainda maior. Juca foi convidado a pegar como empreita, a abertura de uma picada com cinqüenta quilômetros de comprimento, dentro da fazenda Guaporé pertencente a um Sr. Ovídio Miranda Brito e que fica na região de Vila Bela da Santíssima Trindade. Esta fazenda era formada por uma mata absolutamente fechada e com algumas arvores que chegavam a medir até dois metros e oitenta centímetros de diâmetro. Aparentemente este trabalho não parece ser tão difícil assim porem, neste caso especifico existiam ai três condições impostas pelo Sr Samita e pela natureza, que vinham a ser agravantes da situação. Uma, a região era formada por muitos córregos e baixadas alem de muitas formações de pedras imensas. Duas, uma vez começado o trabalho, nem Juca com sua turma e nem a fazenda, dispunha de pessoas para ficar levando mantimentos para eles, o que os obrigava a carregar todo o equipamento de trabalho como também a traia de cozinha e os mantimentos para comerem. Três, a maior recomendação do Sr. Samita foi que ele não aceitava que fosse tirada nenhuma paralela durante todo o percurso. Tirar uma paralela quer dizer o seguinte: quando você esta fazendo uma picada em linha reta e, de repente encontra um obstáculo intransponível, você faz um angulo de noventa graus e mede digamos cem metros a partir da linha de sua picada. volta nesta mesma linha para traz uns trezentos metros e torna a medir outros cem metros. Feito isto você liga a ponta das duas linha que nasceram com as duas novas medidas e você tem ai uma linha paralela a linha da picada que você estava fazendo porem fora do rumo do obstáculo encontrado. Passado o tal obstáculo você retorna para o rumo original usando a mesma formula, só que agora para o lado contrário.
Depois de aceitar o desafio e pegar a tal empreita, ele e seus oito companheiros de trabalho foram deixados de um lado da mata para iniciarem o trabalho, tendo a promessa de serem esperados quarenta dias depois do outro lado no local onde deveria sair a picada. Ao deixar Juca com sua turma no inicio do trabalho, o Sr Samita tirou o rumo que eles deveriam seguir e entregou o trabalho nas mão do homem que a mais de vinte anos atras havia sido seu picadeiro, e em quem ele agora confiava novamente um serviço de tamanha importância. A turma de picadeiros se embrenharam na mata como quem entra em uma arena para brigar contra leões, ou seja, sabiam que estavam entrando porem, não sabiam como, onde, quando e se sairiam de dentro dela. O picadão começava dentro de uma capoeira que havia sido roça a pouco tempo atras e por isso o primeiro dia de trabalho, foi dedicado ao transporte da traia para um rancho abandonado que existia no local. Eles terminaram de carregar os mantimentos, as ferramentas e a traia de cozinha tarde da noite e, como Juca já tinha experiência em trabalhos daquela natureza, enquanto faziam as primeiras viagens ainda com dia claro, procurou verificar onde havia uma boa mina d'água para que pudessem utilizar-se dela para apanhar água e fazer a janta. Naquele dia a janta saiu bastante tarde e como estavam demasiadamente cansados, os homens mal terminaram de comer e caíram em suas redes para dormir. O novo dia mal havia nascido e a turma já estava de pé pronta para pegar no pesado e, foi o que fizeram naquele dia, no segundo, no quinto, no décimo e também no décimo quarto dia. Durante este tempo muitas coisas aconteceram e, eles encontraram onça pintada, dezenas de cobras venenosas, muitas arvores que os obrigava a trabalhar as vezes um dia inteiro para corta-la sem ter que tirar uma paralela, mosquitos e marimbondos de toda espécie mas, encontraram principalmente, muita força de vontade para não desistir daquele trabalho que com certeza foi feito apenas para os brutos. Problemas era coisa com a qual eles já nem se preocupava pois, sabiam que querendo ou não eles estariam sempre ao lado deles, por isso a turma encarou com certa tranqüilidade quando um de seus membros começou uma certa rixa contra Juca por este te-lo tirado do comando de um dos moto serras que só vivia enroscado na madeira atrasando muito o desenvolvimento do trabalho. O mal companheiro acreditou que teria o apoio da maioria e começou fazendo ameaças de morte porem, toda a turma sem exceção percebia que seu trabalho não rendia muito e por isso, acabou por apoiar a decisão tomada. A situação começou ficar um tanto perigosa quando este rapaz disse aos outros que dali de dentro daquela mata só sairia um vivo, ou ele ou o Juca. Ouvindo aquela promessa alguns dos rapazes informaram Juca da situação e se ofereceram para proporcionar a permanência eterna do mal companheiro dentro daquela mata. Juca pensou um pouco e depois chamou alguns deles dizendo: primeiro vou conversar com ele e manda-lo embora do barraco, caso ele obedeça, vamos deixa-lo ir e até vamos acompanha-lo durante um certo tempo, do contrário se ele não obedecer e tentar cumprir a promessa, vocês fiquem a vontade para fazer o que achar melhor. A conversa foi marcada para a manhã do vigésimo terceiro dia e quando o dia clareou, Juca deixou que ele tirasse o jejum e logo em seguida o chamou para uma conversa séria. Ele ouviu tudo e não ofereceu nenhuma resistência por ver que os outros rapazes haviam se posicionado contra ele e, principalmente estava prontos a defender o patrão contra tudo e contra todos. Após ouvir o que Juca tinha a dizer, ele saiu e foi picada a dentro buscando alguma forma de chegar a uma das sub sedes da fazenda onde certamente encontraria recursos. Depois que ele saiu todos se prepararam para voltar ao trabalho porem, após alguma discussão ficou decidido entre a turma que dois homens deviria segui-lo para ter certeza de que ele não voltaria a noite para cumprir sua promessa. Assim foi feito e dois rapazes viajaram por dentro da mata a uma distancia que lhes permitia ficar anônimos e, só retornaram depois de quatro dias até sua chegada na sub sede da fazenda onde o rapaz já estava prezo por suspeita de que tivesse aprontado alguma dentro daquela mata. Os dois rapazes chegaram em seguida e contaram o que havia acontecido e assim depois de receberem uma boa quantia de suprimentos, retornaram com a ajuda da fazenda e foram novamente se juntar a turma. Este fato atrasou o trabalho em pelo menos dois dias porem com a boa vontade e coragem de todos o picadão continuou se embrenhando mata a dentro e quando foi no trigésimo sexto dia, ao pararem para almoçar, com o silencio das moto serras, quase que por acaso eles escutaram barulho de motor e acharam que podia ser alguma outra equipe trabalhando em outra empreita. Depois de trinta e seis dias dentro da mata sem ver ninguém diferente, a possibilidade de encontrar alguém, se tornava com toda certeza em motivo para festa e, sendo assim eles imediatamente começaram a promover uma barulheira danada ligando as moto serras e dando tiros para o alto. As pessoas que estavam do outro lado ouviram e promoveram outro barulho a fim de manterem um contato. Juca e sua turma trabalharam mais do que nunca para fazerem o serviço progredir e finalmente lá pelas três da tarde eles fizeram o picadão encostar na estrada que ligava a sede Aguapé ate a sede São José. Foi um grande encontro deles com o gerente e o supervisor da fazenda que só deveriam estar ali quatro dias depois conforme combinado. Os dois homens ficaram bastante surpresos por ver que a turma havia adiantado o serviço em quatro dias e, principalmente por constatar que sendo a margem de erro neste tipo de serviço, avaliada em até cinco por cento, eles haviam saído com uma diferença de apenas quinhentos metros do marco final, ou seja, um por cento de diferença. Aquele momento foi repleto de alegria e a sensação do dever cumprido tomou conta de toda a turma. Aqueles trinta e seis dias dentro da mata os havia roubado vários quilos e os deixara absolutamente amarelos pela falta de sol, já que, numa mata tão fechada como aquela, ver e ter a luz do sol sobre você é coisa que acontece de vez em quando.
Após o bom desempenho desta tarefa, Juca ficou durante um bom tempo trabalhando na Fazenda Guaporé e, ali realizou outros trabalho do tipo confecção de pontes e mata burros e depois de certo tempo acertou com a empresa e foi embora. Nesta época sua família que morava em Goiânia - Goiás, com exceção do filho mais velho o Valdir que já residia em Cuiabá, em função das necessidades do momento acabou se separando. Os filhos Adilsom e Suely que já eram casados permaneceram em Goiânia, o Ilto e a Solimar vieram para Cuiabá a fim de estudar e, Adalzira sua esposa voltou para Alto Araguaia. Juca ficou trabalhando em Cuiabá e, o casamento que já não trazia satisfação aos dois, se mantinha apenas pela necessidade de sustentar uma imagem. Ele trabalhava em pequenas empreitas para uns e para outros e mensalmente o casal se encontrava, ora em Cuiabá quando Adalzira vinha e, ora em Alto Araguaia quando Juca ia visita-la. Assim muitos anos se passaram e, a maneira em que os dois viviam, dava a entender que já estava tudo acabado entre eles porem, em Setembro de Oitenta e Sete, ele se aposentou pelo então INPS após muitos anos em que seus dois filhos mais velhos pagaram mensalmente sua contribuição para o tal órgão. Estando aposentado e, já não tendo muita preocupação com o fator sobrevivência, o casal conversa entre se e decidem pela volta de Juca para Alto Araguaia a fim de tentarem recuperar o relacionamento que praticamente já não existia. Ele retorna e, o que podia ser um momento de paz na vida de uma casal que, apesar dos contratempos e das lutas que tiveram que travar, tiveram momentos felizes, passou a ser a confirmação da profecia ou talvez da praga que lhe fora rogada no passado. Qualquer coisa passou a ser motivo para as brigas entre eles e, por mais que eles se esforçassem, nada encaminhou para a felicidade dos dois e, sem muitas opções os dois passaram a se suportar. Era evidente as diferenças que haviam entre eles mas, também ficava claro o esforço que eles faziam no sentido de minimizar os problemas. Mesmo com certa dificuldade eles conseguiam se manterem juntos e, no ano de Um Mil Novecentos e Oitenta e Oito, no mês de Novembro toda a família se reuniu para comemorar o aniversário de Adalzira. O casal estava muito felizes pela presença de todos e, num daqueles momentos em que se fala aquilo que quer dentro de uma festa, Juca chamou a atenção de todos e fez a seguinte promessa: Em Noventa e Três eu vou completar Setenta anos e vou reunir todos vocês novamente aqui em casa. Todos nós ouvimos aquela promessa mas, não sei por que cargas d'agua, enquanto ele falava eu tive a impressão que ali estava meu corpo porem, meu espirito havia se afastado por alguns instantes. Fiquei naquele estado de suspensão até que fui despertado pêlos vivas e pelas palmas da família. Voltei a sentir a mesma sensação três anos depois em Noventa e Um, quando ao retornar de uma viagem e ao passar por Alto Araguaia, reencontrei meus pais e minha avó Rita que neste ano completava exatamente noventa e um anos de idade. Ao pergunta-la sobre o que ela esperava da vida dali em diante ela olhou para o céu e disse: Espero que deus dê saúde e se possível mais uns dez anos de vida. Foi muito bonito ver aquela senhora com noventa e um anos, com todos os cabelos brancos e que já havia sofrido tanto na luta pela sobrevivência, ter a humildade de pedir apenas saúde e vida para viver. Eu estava sentado nos braços dos dois sofás pequenos, exatamente entre ela e meu pai e enquanto ela falava, novamente eu parecia não estar ali. Poucos segundos depois meu pai chamou minha atenção para reafirmar que em noventa e três ele fazia questão da presença de todos para comemorar o seu aniversário. Aquele foi um momento bonito mas, com toda certeza aquilo que queremos nem sempre é o que está marcado em nossos destinos e, no ano de Noventa e Dois, morreu Dª Rita Rosa Batista, mãe de Juca e minha avó. Os meses foram passando e a vida do casal continuava na mesma e, após tantos desencontros e convencidos de que não havia nenhuma outra solução para aquele caso, no ano de Noventa e Dois o casal se separa judicialmente.
Agora são quatro horas da tarde do dia quatorze de janeiro de Noventa e três e estamos todos reunidos rezando um terço e vendo o padre dar a extrema unção como parte do ritual de enterro. A pequena sala da casa de meu pai estava cheia e, por isso não pude me mover para ajudar minha irmã Solimar, que desmaiou por estar esgotada fisicamente em função da viagem que havia feito acompanhando meu pai até Goiânia após o derrame que ele sofrera. As pessoas a socorreram e a levaram para descansar um pouco. Ela estava realmente cansada pois desde o dia onze de janeiro quando ela foi avisada do acontecido, ela viajou para Alto Araguaia ficando sem dormir e, depois para Goiânia dentro de uma ambulância ao lado do corpo de Juca já sem movimentos e nem controle. Terminados os rituais, iniciamos a saída com o corpo para o cemitério e, naquele dia eu vi aquela situação por outro lado. Muitas e muitas vezes quando estava vindo um cortejo funerário, eu observava porem, continuava fazendo tudo normalmente e, neste dia olhando de dentro do carro para as pessoas que estavam nas ruas e calçadas, eu pensava comigo o quanto elas eram desalmadas. Estávamos nós sofrendo a perda de um ente querido e aquelas pessoas se preocupavam apenas com o trabalho, com a limpeza da porta das casas e, em alguns casos, simplesmente tomavam uma pinga no butéco sem se preocupar com o que estava acontecendo. O cortejo composto por nós, familiares e alguns amigos e parentes, subiu a ladeira que dá acesso ao cemitério e aproximadamente às cinco horas daquela tarde, apenas um dia antes dele completar setenta anos, enterramos o homem que passou a vida inteira lutando. Ele havia cumprido sua promessa e conseguiu nos juntar no dia de seu aniversário. Este foi Juca Lipurdino, um homem que sonhou com um banco de escola sem jamais ter podido sentar em um, que aprendeu uma profissão e que dela tirou seu sustento e de sua família. um homem que sentiu a alegria de amar e ser amado e depois perder esse amor para sempre, que conheceu o desespero e que vagou sem rumo a procura da mulher amada. Um homem que superou seu drama com a ajuda de amigos e que foi capaz de se divertir e trabalhar enquanto esperava inconsciente pela chegada de um novo amor. Ele passou por diversos perigos e em muitas oportunidades esteve diante da mesma morte que agora o levava porem, ela nunca o assustou. Ele conheceu o desprezo das pessoas que deveriam ama-lo e soube com humildade esperar que o destino lhe colocasse em seu lugar tapando a boca daqueles que falaram contra ele. Dentro de sua época, ele foi trabalhador, mas também foi fanfarrão, preservou o respeito pêlos mais velhos mas, não se curvou diante deles. Naquele dia vendo-o ser enterrado eu fiquei imensamente frustrado por acreditar que para ele só tinha restado uma placa em seu túmulo com dizeres saudosistas porem, revendo sua história, hoje sei que restou muito mais. Restou o exemplo de vida, a força de vontade, a humildade para recomeçar, a certeza de que em tudo aquilo que se faz tem que haver paixão e, principalmente restou a certeza de que no esporte da sobrevivência, ele foi um campeão que nem mesmo a morte derrotou pois, ele estará vivo para sempre em sua história.
FIM

Um comentário:

  1. Parabens muito bom esse livro sou neto da sua tia Maria Leopoldina e filho da Luzia. Meu nome é Clésio e estou no sétimo semestre de Administração pública

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